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Capoeira, uma família patriarcal?

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"Na sociedade sempre existiu família fora do padrão patriarcal. Se capoeira é família, é a fora do padrão e a diversa" - Arte: Ana Paula Fagundes
Capoeira é um encontro entre pessoas por livre escolha, que desenvolvem laços de camaradagem

Escuta que eu vou cantar

Escuta que eu vou dizer

Eu vou te dando a letra camaradinha

Que é pra tu não esquecer

Que na história da capoeira

A mulher soube fazer

Olha muitas foram as guerreiras

Que mostraram o seu saber

Olha teve Doze Homens

Salomé, Catu e Chicão

Angelica Endiabrada

Almerinda e Palmeirão

Dona Maçu e Menininha

Comandavam o batalhão, camaradinha

(Mestra Samme)

A narrativa dominante da capoeira de ontem e de (muitos) de hoje é de que é uma “prática de macho”. Até no imaginário popular há Besouro, mas Rosa Palmeirão e tantas outras são colocadas em dúvida quanto à existência, aos feitos e sem o devido reconhecimento enquanto capoeiristas. Dizem que “capoeira é família”, mas se ela excluir a presença e potencial da mulher, há que refletir qual é este entendimento sobre família.

O conceito dominante na sociedade é o da família patriarcal, mas, se capoeira é uma luta contra o sistema, os elos mais oprimidos deveriam ser os mais protegidos, como a mulher negra que sofre a opressão de classe, gênero, raça, certo? Nem sempre. Assim como a estatística de que abusos dentro de casa são silenciados pelo próprio núcleo familiar, o mesmo quer se repetir na capoeira.

Em 2020 houve a denúncia de estupro de mestra negra por homem negro, considerado até então como um mestre de referência e renome na angola. Choramos, mas nossas lágrimas regam a ira e a organização.

Em junho deste ano, as denúncias de violência sexual praticado por Suassuna - Grupo Cordão de Ouro contra crianças desde a década de 1970 tiveram ampla divulgação. Vários processos já correm na justiça, porém o agressor continua indo a eventos e exercendo atividades educacionais, enquanto as denunciantes (muitas negras) são perseguidas e sofrem ameaças.

Capoeira é prática de resistência e não reprodução da podridão social. O machismo deveria envergonhar e enojar a comunidade da capoeira como um todo, já passou da hora de expurgar abusos e abusadores. O Grupo de Intervenção Marias Felipas e várixs capoeiristas, ao qual nos incluímos, se posiciona frente as denúncias e mostra o fazer de uma capoeira mais igualitária.

Mestres se posicionam contra outras opressões, mas não quanto a de gênero, e assim se perpetua os privilégios e uma hierarquia de centralização de poder. De forma hipócrita, no 8 de março muitos grupos tentam mostrar que não são machistas, mas a mulher não tem espaço durante o ano, com baixa possibilidade de ascensão enquanto profissional, humilhação, chegando até a já citada violência sexual.

Questionar o que uma mulher não pode fazer por ser mulher, adotar posturas afirmativas para gênero, sair do palco, dar visibilidade, poder e voz às demais pessoas, parece ser uma ameaça ao patriarcado incrustado na capoeira.

A força e potência está na diversidade, como ensina Audre Lorde. Eu não preciso ser igual a você para te respeitar. Eu não preciso ser negrx, indígena, homoafetivo para entender e respeitar a outra pessoa. Na sociedade sempre existiu família fora do padrão patriarcal. Se capoeira é família, é a fora do padrão e a diversa.

Quando eu cheguei na capoeira, eu tinha dificuldade com o ritmo. Eu tinha dificuldade em escutar e aceitar a minha voz ao cantar. Meu corpo não coordenava o movimento. Minha agressividade não era expressiva. Passados anos, ainda tenho estas dificuldades. A diferença é ter encontrado um local onde as pessoas ajudam para que a gente se fortaleça, sem ter moeda de troca. Fui acolhida e incentivada a romper meus bloqueios. Aí sim, pode se falar em família.

O conhecimento e tradição da capoeira não pertence ao homem, mas àquelas pessoas que lutaram pelo bem comum e contra um sistema desigual, e muitas foram as mulheres que mostraram o seu saber, como canta Mestra Samme. Capoeira é um encontro entre pessoas por livre escolha, que desenvolvem laços de camaradagem. Você pode vir também, porque nossa família não para de crescer.

Ana Paula Fagundes, capoeirista no Coletivo de Capoeira Angola Gira Ginga, treinos no Quilombo das Artes do Assentamento Urbano Utopia e Luta, viaduto da Borges de Medeiros 719, email: [email protected]

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko