Rio Grande do Sul

EDUCAÇÃO

Artigo | Carta aberta a Janaina Audino, secretária municipal de Educação de Porto Alegre

Nova Proposta Pedagógica para rede pública de ensino tem gerado amplo debate tanto na sua forma quanto no seu conteúdo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Ainda muito machucada pela gestão anterior, a comunidade escolar quer ser realmente ouvida" - Foto: Giulian Serafim / PMPA

Prezada Janaina Audino,

Gostaria primeiramente de agradecer a disponibilidade para leitura desta carta que, embora seja direcionada a você, diz respeito a este grande coletivo chamado Porto Alegre, razão pela qual decidi torná-la pública. Imagino o quão difícil deve ser a gestão da educação em um município tão complexo como o nosso, e que traz em suas entranhas cicatrizes vivas da desigualdade social cada vez mais crescente e de binarismos políticos por vezes inconciliáveis.

Nos últimos meses temos acompanhado de perto as movimentações em torno da nova Proposta Pedagógica para nossa rede pública de ensino, proposta que tem gerado amplo debate tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Ainda que eu seja do campo da educação, minha intenção é discutir somente a forma como esta proposta tem sido apresentada, os impactos que uma estratégia de proposição como esta podem gerar em toda a comunidade escolar, incluindo, é claro, a atual equipe gestora da Secretaria Municipal de Educação, SMED.

Faço aqui um parêntese para compartilhar com você um incômodo que vem muito antes da sua posse nesta secretaria: ao longo dos anos, nas inúmeras parcerias entre a UFRGS e as escolas públicas do município, nos deparamos com frases do tipo “lá na SMED”, como se a SMED fosse um corpo estranho e a parte do grande corpo representado pela comunidade escolar. Este talvez seja um dos sintomas mais complicados de se lidar em se tratando da gestão de políticas públicas, uma vez que o “lá” é também o “aqui”, que as decisões do “lá” afetam diretamente o “aqui”, e que as reações do “aqui” são sentidas diretamente no “lá”.

Trago isto pois imagino que você deve estar vivendo literalmente na pele as críticas vindas de “lá” (das escolas) relacionadas à nova Proposta Pedagógica, em que você e sua equipe propõem uma série de modificações nos currículos escolares do município, algumas destas interessantes, diga-se de passagem. No entanto, da maneira como as coisas estão se dando, com pouca disponibilidade para o diálogo coletivo, há sempre o perigo de uma proposta se tornar uma imposição, o que historicamente já se provou ser uma estratégia de fracasso.

Para não me tornar vago demais (perdendo-me em datas e épocas distantes), trago aqui uma cicatriz histórica recentíssima. Em janeiro de 2017, na gestão do prefeito Nelson Marchezan, tomava posse da SMED o professor universitário Adriano Naves de Brito. Assim como você, Adriano tinha alguns atributos profissionais que nos faziam acreditar que sua gestão pudesse contribuir significativamente na qualidade de ensino no nosso município (há sempre a esperança de que o título de “doutor” possa representar alguma coisa, que os anos dedicados à pesquisa acadêmica possam garantir sobriedade, inteligência e prudência na tomada de decisões). De toda forma, o que vivemos na pele ao longo de toda a gestão do secretário Adriano Naves de Brito foi uma total falta de diálogo e a consequente catástrofe na condução do que ele e sua equipe julgavam ser “o melhor” para nossa comunidade escolar.

Peço desculpa pelo tom do palavreado, mas “catástrofe” me parece ser a melhor palavra para designar o trabalho da SMED na gestão anterior. O resultado pragmático desta catástrofe é o que você, e todos nós, estamos vendo e vivendo: uma comunidade escolar bastante traumatizada e, como tal, avessa às práticas de violência institucional perpetuadas na gestão anterior, e que parecem se revelar presentes na maneira como esta nova proposta está se dando.

Como professor de psicologia social e institucional, sinto-me à vontade para esclarecer alguns pontos sobre o que penso ser uma violência institucional. Como a própria violência doméstica (que tristemente assola o interior de nossas famílias, sobretudo das famílias das crianças e jovens de nossas escolas públicas), a violência institucional se dá na maioria das vezes de forma velada e com consentimento de alguns dos seus pares (embora a vítima costume ser o indivíduo mais frágil, toda a rede familiar se vê violentada).

Não sei o que boa parte das pessoas que trabalham aí na secretaria pensam da maneira como esta nova Proposta Pedagógica está sendo instituída, mas pelo que conheço do seu corpo funcional e administrativo, imagino que estejam se sentindo muito desconfortáveis diante disso tudo. O certo é que a opção pela falta de diálogo e por tentativas arbitrárias de impor suas próprias concepções fez com que Adriano Naves de Brito e sua equipe ficassem literalmente isolados, perdendo o que me parece ser o coração, as mãos e as pernas de toda e qualquer gestão municipal, que são seus servidores públicos. Ao perder o vínculo com professoras, supervisoras, diretoras, técnicos, estudantes e comunidade, a gestão de Adriano Naves de Brito foi se isolando cada vez mais, sendo hoje lembrada como uma das piores (senão a pior) de toda nossa breve história democrática.

Esta é uma cicatriz pública e subjetiva que as pessoas diretamente envolvidas terão que lidar ao longo dos próximos anos. Não sei como está a vida das pessoas que estiveram presentes na gestão anterior, mas o certo é que elas têm nome próprio e estes nomes não serão assim tão fáceis de se esquecer. Lembrei de uma educadora latinoamericana que dizia que nada mais somos do que as memórias que deixamos nos outros. Em outras palavras, o que esta educadora nos diz é que precisamos cuidar muito da nossa presença no mundo, na maneira como nos relacionamos com os outros e com as diferenças que toda e qualquer relação nos impõe. Trago estas palavras na tentativa, não de constrangê-la, mas de mostrar um outro lado do problema.

Em janeiro de 2022 fechará um ano da atual gestão, com muitos desafios ainda a serem enfrentados em relação aos graves impactos da pandemia no contexto das nossas escolas. Se não há mapas certeiros que apontem para o melhor caminho (seria tão bom se tivéssemos), há ao menos a possibilidade de não embarcarmos em caminhos já trilhados e que se mostraram calamitosos.

Não quero com esta carta rebater criticamente o conteúdo da nova Proposta Pedagógica da SMED, uma vez que, conforme havia escrito, há aspectos interessantes e que podem muito bem dar certo. A questão que me parece mais grave é o grau de tensão que a SMED está produzindo junto aos seus colaboradores diretos (professores, gestores e técnicos), dando pistas de que os próximos capítulos serão uma triste repetição de nosso recente passado.

Ainda há tempo para que, ao contrário de “Adriano Naves de Brito”, o nome próprio “Janaina Audino” seja lembrado no futuro como o de uma pessoa que fez a diferença na gestão da educação da cidade de Porto Alegre, uma vez que em políticas públicas não há outro meio que não seja o da participação, do fazer, agir e se comprometer juntos. Até porque, quando fazemos e pensamos juntos, nos responsabilizamos coletivamente pelos riscos que toda a mudança impõe. Parece ser isso que essa gente “lá das escolas” está querendo lhe dizer, de que, sem uma real participação, elas e eles não pegarão junto, que você e sua equipe ficarão sozinhas e, como tal, cada vez mais fragilizadas.

O que leio nesta revolta toda não é mimimi, ranço, ideologia, preguiça de mudar ou qualquer coisa do gênero. Ainda muito machucada pela gestão anterior, a comunidade escolar quer ser realmente ouvida, sentir-se de fato participante, comprometida na mudança que entende ser necessária. Do contrário virá de novo o que já veio (e com ainda mais resistência), um enredo já conhecido, mas com os nomes atualizados.

* Luciano Bedin da Costa é professor da UFRGS

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira