Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Onde mora o Paulo Freire filósofo?

Atempa lança o livro "Do lado esquerdo do peito. Paulo Freire: Presente"! com live nesta sexta-feira (29), às 17h30

Porto Alegre | BdF RS |
"Paulo Freire Filósofo mora no lado esquerdo do peito das educadoras, educadores, dos/das servidoras públicas" - Arte: Paulo Q.

Como identificar e qualificar o que transborda em amplitude? Como reter a água límpida e abundante que escorrega por entre as mãos? Como dizer o indizível? Nomear é, sem dúvida, um lugar de saber-poder.  

Ele é denominado pedagogo, pensador, humanista, filósofo, escritor, educador, intelectual, Patrono da Educação Brasileira. Para outros, desavisados ou detratores, um doutrinador marxista, ideólogo da educação comunista, idealista messiânico e ultrapassado. Em se considerando as múltiplas denominações habitualmente atribuídas a Freire, seria ele, de fato, um filósofo?   

Paulo Freire (1921-1997) não criou nenhum sistema filosófico, no sentido clássico da expressão. Não se inseriu como membro da comunidade filosófica existente, não publicou nenhum livro que pudesse ser qualificado como de teor estritamente filosófico. Aliás, em nenhuma de suas obras, publicada em vida, sequer inseriu em algum título a expressão Filosofia.

Seria, portanto, equivocado chamá-lo de filósofo? Ou seria uma espécie de filósofo em um ramo específico do conhecimento, um filósofo da educação? Em 1959 doutorou-se em Filosofia e História da Educação. Um filósofo na educação? Um educador que criou uma filosofia especulativa própria? Ou apenas um educador que flertou e fez uso livre de leituras, conceitos e métodos propriamente do campo filosófico?  

Filosofia em Freire

Freire declaradamente sofreu grande influência no seu pensamento de Filósofos com os quais conviveu, Álvaro Viera Pinto e Ernani Fiori talvez sejam os mais marcantes, em se tratando dos brasileiros. Teve e assumiu uma influência teórica eclética. Nele percebemos as marcas de um existencialismo encarnado, da teologia da libertação, de leituras marxianas e do nacionalismo desenvolvimentista, muito presente em seus primeiros livros. Pode-se dizer que três filosofias marcaram sucessivamente sua obra: o existencialismo, a fenomenologia e o marxismo sem, no entanto, adotar uma posição ortodoxa em relação a essas influências. Já ao final da vida, abriu a possibilidade de deixar-se influenciar por leituras da pós-modernidade crítica e incorporá-la em seus ensaios. 

Sua obra mais importante e difundida, Pedagogia do Oprimido, está largamente assentada em um diálogo criador e historicamente situado com Karl Jaspers, E. Husserl, Karel Kosik, Frantz Fanon. Emmanuel Mounier, Martin Buber, Lucien Goldman, M. Heidegeer, Simone de Beauvoir, F. Hegel, Karl Marx e Friedrich Engels, Simone Weil, Gabriel Marcel, G. Luckacs, J. Paul Sartre e Merleau-Ponty, H. Marcuse, entre outros/as.

Filósofo? Sim senhor, sim senhora!

A quem se interessar, recomendaria a leitura da instigante, heterodoxa e encantadora biografia de Freire, que se constitui ao mesmo tempo como ensaio filosófico, de Walter Kohan, professor de Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). "Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica" (2019, Vestígio; 2020 Clacso), disponível para acesso gratuitamente. E, na continuidade, o recente “Paulo Freire: um menino de cem anos" (2021, NEFI). Trata-se de leituras das histórias de vida de Freire como um problema filosófico, e na qual não se apartam biografado e sua obra. Originalíssimos.

Para Kohan, Freire teve uma vida política impregnada de pensamentos forjados pelo estar no mundo, de pensar-se constantemente com e no mundo, situar-se diante, pronunciar sua existência, esperançar outros mundos, revisitar sua trajetória, assumir suas errâncias, reinventar-se, portanto, afirmando a premissa de que não há educação filosófica que não tocada e afetada politicamente pela história, pela política e pela vida – curiosamente, o que falta, e muito, à parcela dominante de certos filósofos e filosofias. Nesse sentido, específico, sim, ele é um Filósofo. E dos bons! 

Um excerto do próprio Freire, da Pedagogia da Indignação, é revelador sobre o tema. “Filosofar, assim, se impõe não como puro encanto, mas como espanto diante do mundo, diante das coisas, da História que precisa ser compreendida ao ser vivida no jogo em que, ao fazê-la, somos por ela feitos e refeitos. O exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o conhecimento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o para quê, o como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem são exigências fundamentais de uma educação democrática à altura dos desafios do nosso tempo.” (p.112)

Diante do banimento genocida, lembrar é imprescindível!

Não admira, portanto que a renúncia e o apequenamento da Filosofia, da Sociologia, da História e da Geografia no famigerado Novo Ensino Médio sejam o símbolo e ao mesmo tempo materialização do anti-humanismo e da anticrítica nas reformas operadas na escalada autoritária que vimos sofrendo no pais, sob a hegemonia da Aliança Conservadora. Ontem, na Grécia ateniense clássica, cicuta à Sócrates. Hoje, sob a condução de Audino e Sarmento na Educação de Porto Alegre, o eufemismo da oferta de um “espaço filosófico” nas “nuvens” sem Filosofia? Por favor, não ofendam nossas inteligências desse modo.

É preciso superar a tradição do cânone ocidental na Filosofia: europeu, masculino, branco, da elite. É preciso oxigenar com Filosofias no plural, de(s) coloniais, femininas, ameríndias, negras, LGBTs, periféricas, contra-hegemônicas e insurgentes. Mas, em primeiro lugar, é preciso que a Filosofia exista como tal, num espaço que nós professores/s chamamos sala de aula. Como muito bem afirmaram, em um contundente e recente artigo, as profs. Spinelli e Sardi, “Fica Filosofia, na sala de aula!”

A coruja de minerva e o luzeiro

Uma educação filosófica crítica necessariamente precisa problematizar os limites do senso comum e construir alternativas para um novo patamar de compreensão da realidade, estimulando ações transformadoras no avanço possível, dentro das condições existentes. Portanto, compartilho de uma velha máxima, atribuída ao filósofo Confúcio: é melhor acender uma vela do que praguejar contra a escuridão.

Estamos todos e todas convocados/das a acender as velas, lamparinas, lâmpadas e lanternas, juntos à velha senhora da razão! Uma educação para a emancipação humana requer que seja recuperado o papel da racionalidade e do próprio legado iluminista para o bom combate ao obscurantismo e alienação, evidenciando a potência radicalmente problematizadora e reflexiva da filosofia. Afinal, a banalidade do mal, na expressão da filósofa Hannah Arendt, não pode trafegar incólume, travestida de uma cruzada dos “homens de bem” e das “mulheres em Cristo”, sob as consciências e os narizes de educadores/as críticos/as que somos. Nossa primeira tarefa? Como nos ensinou Freire, a escuta sensível e densa de nossos educandos e educandas. Suas falas significativas são temas geradores, prenhes de vida. A segunda tarefa? Fazer perguntas!

Onde ele mora?

O Paulo Freire Filósofo mora no lado esquerdo do peito das educadoras e educadores, dos/das servidoras públicas que, todos os dias, ralam e dão o melhor de si, para fazer a vida de nossos/as estudantes ser melhor do que é, que interrogam a vida, problematizam, partejam o conhecimento, explicitam o contraditório, e não abdicam dos sonhos e o ideário da justiça social. Paulo Freire mora nas nossas salas de aulas!


Livro foi organizado por Marco Mello, professor da RME, Marcus Viana, diretor da ATEMPA e professor da RME e pela professora da UFRGS, Caroline Pacievitch / Divulgação

Do lado esquerdo do peito

Nesta sexta-feira, 29 de outubro, 17h30, ascenderemos um luzeiro poderoso e estão todas e todos convidados a se juntarem a nós. A Associação dos Trabalhadores em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa) e o Coletivo das Professoras e Professores de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (CPHIS), em parceria com um conjunto de organizações afins, através de live no Youtube da ATEMPA, lança uma publicação resultado do processo formativo em torno da Educação Popular e do legado de Paulo Freire, levado à cabo ao longo do ano na celebração do centenário de nascimento do mestre pernambucano.

O lançamento, nessa semana que é marcada pelo dia do/a Servidor/a público/a, é também simbólico e importante, nossa defesa do serviço público passa pelos ensinamentos de Freire, assim como a defesa da educação 100% pública, a produção de conhecimento e ciência 100% pública, como forma de garantir o acesso aos direitos, pela população.

O título do livro, que será disponibilizado para livre acesso e download, é ele próprio um convite que aconchega e nos conduz pela mão para que desvendemos seu belo e atualíssimo conteúdo.

Do lado esquerdo do peito, Paulo Freire: Presente!     

* Professor na Rede Municipal de Educação de Porto Alegre 

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko