Rio Grande do Sul

Entrevista Especial

“Temos que chamar os homens para discutir a violência contra a mulher”, defende Mary Del Priore

Escritora e historiadora afirma que é preciso conversar com os homens porque “o patriarcado não vai acabar por decreto”

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Mary Del Priore estará no Diálogos Contemporâneos, nesta segunda-feira (29), às 19h, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre - Foto: Karen Louise

A carioca Mary Lucy Murray Del Priore construiu uma carreira alentada dentro e fora da universidade. Ex-professora da USP e da PUC/Rio, fez pós-doutorado na Ecole Des Hautes Etudes En Sciencies Sociales, de Paris. Longe da cátedra, Mary Del Priore tornou-se escritora de sucesso, o que confirmam seus 52 livros, boa parte deles voltados não à descrição das grandes histórias e seus grandes protagonistas, mas das pequenas vidas, seus costumes, falares, divertimentos, hábitos, roupas. Uma história mais íntima.

Com esta abordagem cativou leitores além do público acadêmico. Nesta segunda-feira (29), ela vai falar no evento Diálogos Contemporâneos, às 19h, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Seu assunto será “A construção da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Antes, conversou com Brasil de Fato RS sobre os muitos caminhos da mulher – submissão, emancipação, sexualidade, família, autonomia, conformismo, rebeldia – ao longo dos cinco séculos de Brasil e também das novas mulheres que estão chegando para fazer história agora.

Brasil de Fato RS - Porque, como historiadora, ao invés de investigar os grandes movimentos e grandes protagonistas da História, escolheu a chamada vida privada, as individualidades comuns?

Mary Del Priore - Sempre fui apaixonada pela possibilidade de enxergar nas coisas pequenas as grandes coisas. Aprendi que os objetos tinham história e que contavam histórias das pessoas. Essa fascinação pelo pequeno, pelos anônimos da história, sempre me cativou. Junta-se a isso o fato de que, nos anos 80, isso entrou na moda. Todo mundo queria estudar essa história vinda de baixo. A parte mais importante do trabalho do historiador é com documentos – o historiador vai atrás de documentos e a maior parte desses documentos são vozes anônimas. São essas vozes que gosto de ouvir e de contar.

Meu bordão é sempre este: a educação emancipa a mulher

BdF RS - A sua mesa no projeto Diálogos Contemporâneos abordará “A construção da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Como foi erguida essa construção?

Mary Del Priore - Trabalhei muito com família, maternidade, sexualidade, consumo. Este (meu) último livro é uma discussão sobre como se constrói papéis femininos, como resistimos à construção desses papéis. Sou contra o vitimismo. Quando a gente se debruça sobre os documentos encontra milhares de sobreviventes e guerreiras. As mulheres souberam responder com violência aos ataques, sobretudo através do letramento e da educação. Meu bordão é sempre este: a educação emancipa a mulher. Permite à mulher migrar da vida privada para a vida pública. É basicamente (graças) ao letramento que elas vão participar desde a independência do Brasil, quando a arquiduquesa Leopoldina recebe cartas de paulistas e de baianas pedindo que ela apoie a emancipação.

Toda a luta abolicionista vai contar com mulheres letradas fazendo poesia, música, teatro. A participação da mulher na República lutando pelo sufrágio. Tudo bem, muitas vezes levada pelo marido ou irmão ou pelas condições de vida, que é o caso das afro-brasileiras, que participam também do movimento abolicionista, não através da letra, mas através das ações, dando guarida. As mulheres sempre trabalharam. Essa imagem da mulher na rede, abanada pela escrava, que é infelizmente reificada pelas novelas de TV, jamais existiu. Mesmo as ricas – o pecado da preguiça sempre foi muito considerado pela igreja católica – tinham que ter uma atividade dentro de casa. Há uma interação que se chamaria hoje de sororidade. A gente vê isso o tempo todo no parto, nas mortes – porque as mulheres estavam lá pra rezar, cantar as incelências – nas festas, casamentos e batizados. Estas redes femininas estão presentes desde sempre.

O que me fascina é a capacidade das mulheres se reinventarem

BdF RS - Quais as mulheres da nossa história que os brasileiros e sobretudo as brasileiras deveriam conhecer melhor?

Mary Del Priore - À medida que a gente se debruça sobre essas vidas de mulheres que amam e que odeiam, o que me fascina é a capacidade das mulheres se reinventarem. Você pega, por exemplo, uma menina negra, como a Chica da Silva. Ela vai trabalhar para um velho português que tem duas concubinas e por isso vai ser perseguido pela igreja católica. Tem que escolher uma, escolhe a outra, já tinha feito um filho na Chica, fez um filho na outra também. Olha que itinerário fantástico. E ela (Chica) vai ser vendida para o contratador de diamantes com quem vai viver a vida mais doméstica, longe da deusa do sexo como é pintada pela literatura e a televisão. Ela tem 11 filhos. Alguém sabe o que é ter 11 filhos? Então, essa tem o cuidado não só de aprender a ler, porque ele a faz aprender a ler e a escrever. E ela passa a administrar os bens dela. Faz seus filhos estudarem.


Mary Del Priore tornou-se escritora de sucesso, o que confirmam seus 52 livros / Foto: Karen Louise

Essa capacidade de uma mulher que sai do nada, que tem uma mãe prostituta, que imprime nesse homem uma marca muito forte, amorosa, não falo aqui de sexo, falo de amor, é fascinante. A Condessa de Barral é outra. Vai fazer uma vida de corte, frequentar os castelos, a família Orleans, os grandes salões ingleses, é amiga de Chopin. A Chiquinha Gonzaga, casada aos 13 anos, com um cara que tinha dinheiro. Ela era pobre, aquele casamento resolveria a vida dela e ela se divorcia depois de ter dois filhos. Quer tocar piano e vai fazer música em favor da abolição. No século 20 tem a Ângela Maria, que trabalhava numa fábrica de tamancos, e se torna uma estrela nacional.

Somos seres partidos. De um jeito na rua, de outro jeito em casa

BdF RS - Você faz uma interessante análise da sociedade brasileira a partir de Histórias Íntimas - Sexualidade e Erotismo na História do Brasil, tratando a questão da influência da igreja na sexualidade, o casamento, a prostituição, o homossexualismo, a libertação da mulher. E afirma que ainda temos uma camisa de força muito machista, homofóbica e racista no país. Essa história ajuda a explicar o estado de coisas em que vivemos?

Mary Del Priore - Olha, a sensação que tenho é que essa divisão que analiso na maioria das histórias íntimas entre esse homem e mulher brasileiros, que são liberais na rua, mas racistas, homofóbicos e machistas em casa, ela também machista, é que isso era vivido no privado e hoje está sendo vivido no público. Temos aí exemplos da forma de falar do nosso presidente, de vários políticos, do desleixo em que se encontra esse país, o caos que estamos vivendo, a dificuldade para fazer os jovens olharem pra frente. Aquele filósofo, o Edgar Morin, que fala disso muito bem, diz que não saberemos mais o que é segurança. Agora é a era da incerteza, e vamos ter que conviver dessa maneira.

A grande maioria da população está horrivelmente empobrecida, a classe média esmagada. É provável que essa violência que se vê na rua, violência verbal, violência nas redes, seja alimentada por essa sensação de insegurança. Termino Histórias Íntimas dizendo que só quando nos olhamos no espelho do banheiro, frente a frente com a gente mesmo, é que sabemos que somos seres partidos. De um jeito na rua, de outro jeito em casa. Mas, na frente do espelho, não dá pra enganar. Tenho a impressão que o cara do banheiro, esse cara homofóbico, racista e machista, e essa mulher também, saíram. Estão na rua. As feras estão soltas.

BdF RS - Entre os teus vários títulos, um nos chama a atenção, História do Amor no Brasil. Nesse contexto de pandemia, que amor podemos dizer que temos hoje no país?

Mary Del Priore - A pandemia criou novos paradigmas para as mulheres, mais escorados nessa palavra da moda, sororidade. A capacidade de se organizar para ter gestos efetivos e fazer alguma coisa pelo outro. No final do século 20, houve uma invasão da filosofia individualista. Livros sobre individualismo, a ideia de performance o tempo todo, ser melhor do que o outro, a ideia do sucesso individual levada ao extremo. A pandemia nos fez sair desse individualismo. As mulheres tiveram um papel enorme.

Olha, já fizemos grandes avanços. Você sabe como era uma mulher nos anos 60? Dona de casa, passando aspirador, passando roupa, ouvindo rádio, ligando a televisão na hora do jantar. Estou pensando aqui na terceira onda feminista, onde você vê de tudo: as anticapitalistas, as identitárias de toda a sorte, as LGBTs… Estamos vivendo ótimos momentos, mas está faltando um projeto comum em torno, no meu ver, da única palavra que solucionaria tanto a questão da desigualdade quanto a das identidades, que é educação. Investir mais em educação para as meninas, para as mulheres, sobretudo as pobres. Acho que a gente (assim) vai estar conseguindo mudar um pouquinho esse país que está tão mal das pernas.

O jovem dos anos 80 é o pai desse menino ou menina, que está saindo do armário hoje

BdF RS - Vivemos hoje uma tensão entre novas formas de viver em sociedade, a questão do gênero, do direito às escolhas e uma reação conservadora muito forte contra a mudança que já está em curso. Parece que um embate mais forte entre estes dois mundos, cedo ou tarde, vai acontecer...

Mary Del Priore - Isto chegou para ficar. Hoje há uma fluidez e uma liberdade nas escolhas sexuais que é impressionante. Foi uma mudança muito rápida. Até os anos 1980/90, os jovens eram muito homofóbicos. O jovem dos anos 80 é o pai desse menino, dessa menina, que está saindo do armário hoje. É óbvio que isso vai causar muita fricção. Shakespeare, em (a peça) Ricardo III, tem uma palavra importante hoje para as pessoas da minha geração: prontidão. Você tem que estar pronto para escutar, tentar participar, compreender.

As mudanças estão aí, incomodam a muita gente. Temos uma geração de pessoas ainda profundamente preconceituosas. Agora, eu digo sempre, pra racismo e homofobia é criminalização, lei e punição. E, na escola, luta contra o preconceito. E essa luta tem que começar em casa. Acho (também) que os jovens estão criando, sobretudo fora do Brasil, um sentimento de sobriedade, de não-consumo. Nossa geração foi aquela que viu subir o shopping center. Lembro que nessas entrevistas com as quais trabalhei nos anos 1970 e 1980, o sonho dos homens era ter um Opala, poder sair de férias, consumir freneticamente. Daqui pra frente vai ser um mundo de sobriedade. E os jovens têm a oportunidade de nos ensinar sobriedade no consumo, respeito à natureza, às identidades, às diferenças. 

BdF RS - No dia 25 foi será celebrado o Dia Internacional pelo Fim da Violência Contra a Mulher. Nesse período da pandemia, diversos estudos apontam para um aumento da violência, em especial casos de feminicídio. Se é impossível pôr fim à violência de gênero, que medidas podem ser tomadas de forma mais consistente?

Mary Del Priore - Se não chamarmos os homens para essa conversa, se não mostramos como a virilidade deles é construída na base da força e da violência... Temos que chamá-los para eles entenderem que isso é uma construção histórica e social. Meses atrás, a Folha de S. Paulo publicou um artigo sobre comunidades pobres de São Paulo, onde homens considerados violentos têm se reunido para pensar a questão da violência. É isso que é preciso. Que eles venham, que parta deles essa iniciativa.

A violência não vai acabar por decreto, o patriarcado não vai acabar por decreto. Tenho dito isso para juízes e promotores e eles concordam. O homem tem que falar. Por que ele é violento? Ouvi uma belíssima palestra de um ganhador do Prêmio Nobel da Paz, um médico africano que trabalha no Congo (o ginecologista Denis Mukwege, que recebeu o prêmio em 2018) e arrisca a vida para atender milhares de vítimas de estupro. Ele reconstituiu qualquer coisa como 600 vaginas, porque nos massacres, quando a mulher era a vítima, tinham a vagina transpassada por facas, adagas, atiravam na vagina. A ideia era destruir aquilo que era o símbolo da mulher, a sua sexualidade, a sua maternidade. E ele disse exatamente isso: enquanto não começarmos a conversar com os homens sobre onde é que se fabrica essa violência nós não vamos chegar a ponto nenhum.

Os viajantes estrangeiros viram afro-brasileiros no palácio de Dom João VI

BdF RS - No seu mais recente livro À procura deles, você faz um resgate dos negros e mestiços que ultrapassaram a barreira do preconceito e marcaram a história do Brasil. Estamos no mês da consciência negra. Quais desses personagens ainda precisam ser descobertos?

Mary Del Priore - Poucos personagens masculinos eu tive mais prazer de trabalhar do que com esses. Esse livro nasceu de perguntas que os professores me faziam. Sempre me perguntaram: “Mas era só chicote, pobreza, miséria, violência?” E comecei a conhecer esses personagens, figuras absolutamente geniais. Já no início do século 19 no Brasil, tínhamos quase 43% da população afro-brasileira e afro-mestiça livre e procurando elevadores sociais. No final do século 19, já são quase 50%. Os viajantes estrangeiros que passam pelo Brasil são unânimes em afirmar que viam afro-mestiços e afro-brasileiros no palácio em torno de Dom João VI e de Dom Pedro I. Um médico, em cujos braços Dom Pedro I morre, é afro-brasileiro, grandes conselheiros dos imperadores foram afro-mestiços e afro-brasileiros. Na faculdade de Medicina da Bahia tinha vários médicos negros, inclusive esse gênio que foi o Juliano Moreira. Tivemos o nosso Obama, muito antes do Obama ser eleito, que foi o Nilo Peçanha. E eu conto a história de vários desses personagens nesse livro.

BdF RS - Em que você está trabalhando agora?

Mary Del Priore - Tem um livro muito legal que conta a história do Lord Cochrane, aquele pirata/almirante. É a história dele com Dom Pedro I e a Maria Graham, que é uma viajante inglesa que tem um caso amoroso com ele também. Analisei a independência pelo olhar dos ingleses. Vai ter um audiolivro sobre a Tarsila do Amaral, uma mulher que sofreu horrores como mulher, como artista que foi esquecida, como mulher rica que fica pobre, como mulher bonita que acaba a vida paralítica em cima de uma cama. Estou fazendo um livro sobre o que aconteceu com a família imperial depois que foi exilada. Quando houve a Proclamação da República, os grandes derrotados da República foram os monarquistas, mas os caras não desistiram. Passaram anos tentando convencer a princesa Isabel a voltar a ser imperatriz do Brasil.  

As máscaras nos ensinaram a olhar nos olhos

BdF RS - O Brasil ainda vive a pandemia que mudou muito a vida em sociedade. Quais os personagens comuns que vão emergir com dignidade desse período? As enfermeiras que morreram às centenas, sem vacina, sem testes e sem equipamentos de proteção? As pessoas, muitas delas mulheres, e entidades que organizaram mutirões para matar a fome na periferia?

Mary Del Priore - As mulheres tiveram um papel enorme, as enfermeiras e médicas que lembraram a importância dos gestos de proteção, da vacina. As mulheres envolvidas na pesquisa científica, em busca de soluções. E as máscaras nos ensinaram uma coisa muito bonita: estamos nos olhando nos olhos. Já se deu conta disso? O olhar é aquela parte da nossa história corporal que não envelhece. Todos somos crianças através do olhar. A máscara acabou nos fazendo olhar nos olhos e nos fazendo descobrir a criança atrás desse olhar. São formas também de afeto que espero se sobreponham aos horrores dessa pandemia, ao descontrole do negacionismo.

Vou contar um caso que aconteceu hoje comigo. Às 6h eu estava dentro de um avião da Azul, saindo de Goiânia para o Rio. E todas as pessoas tiveram que esperar uma hora dentro do avião até chegar a polícia federal para dar ordem de prisão a um casal negacionista que se negava a cumprir a lei básica, que é a máscara. A mulher já entrou causando, gritando que não usava máscara. Veja o descaso com o outro. Eu só espero que a gente possa se olhar nos olhos, e olhar essas histórias com nojo. E a gente descobrir uma parte boa que cada um de nós tem e conseguiu conservar no olhar.


Mary Del Priore e Fernando Moraes, na terça (30), encerram Diálogos Contemporâneos em Porto Alegre / Divulgação


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Edição: Ayrton Centeno