Rio Grande do Sul

ENTREVISTA ESPECIAL

“Música é parte fundamental na formação integral”, afirma maestro venezuelano

Ricardo Chacón, que hoje vive em Porto Alegre, fala do El Sistema, aclamado programa de ensino musical da Venezuela

Brasil de Fato | Porto Alegre |
El Sistema inspirou Ricardo a estudar violino e ensinar música para a juventude - Arquivo pessoal

El Sistema, da Venezuela, está para a música assim como o SUS, do Brasil, está para a saúde. Aclamado ao redor do mundo como exemplo no ensino gratuito de música para a juventude, é considerado o programa de responsabilidade social de maior impacto no país. Tem hoje mais de 1 milhão de crianças e jovens adultos venezuelanos se aprofundando na prática da musica clássica e popular.

Concebido e fundado pelo maestro e músico venezuelano José Antonio Abreu em 1975, sistematiza o ensino e prática de música através de orquestras sinfônicas e coros, como instrumento de organização social e desenvolvimento humanístico. A maior parte dos estudantes são oriundos de classes sociais em situação de vulnerabilidade social.

“Antigamente a missão da arte era das minorias para as minorias, depois era das minorias para as maiorias. Agora, é da maioria para a maioria, e constitui um elemento relevante para a formação do indivíduo que lhe permite inserir-se na sociedade de forma produtiva”, conta o maestro venezuelano Ricardo Chacón.

Hoje, com 38 anos, o maestro vive em Porto Alegre. Ganhou bolsa de estudos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e faz doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em práticas interpretativas com o Maestro Fredi Gerling.


Ricardo é professor da Orquestra Jovem e Escola Casa da Música de Porto Alegre / Arquivo pessoal

Fruto do El Sistema, que o inspirou desde criança, hoje ele traz esta experiência à capital gaúcha. É professor e coordenador do projeto Orquestra Jovem e Escola Casa da Música, o que lhe honra muito. “O projeto dá oportunidade a desenvolver habilidades musicais, prática individual e coletiva, as quais fortalecem a formação integral das crianças criando nelas outro olhar das artes e fomentando valores para que possam ser pessoas de bem”, afirma.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, o maestro Ricardo Chacón explica com detalhes como funciona El Sistema. Fala também sobre sua trajetória musical e como acredita que o ensino da música é parte fundamental na formação dos jovens.

Brasil de Fato RS - Como surgiu o interesse pela música e qual sua formação musical na Venezuela, que instrumentos você toca e qual sua trajetória?

Ricardo Chacón - O interesse pela música surgiu por uma prima e uns amigos que entraram no projeto do El Sistema. A partir disso eu comecei escutar música e conhecer um pouco as famílias dos instrumentos musicais. Assisti vários concertos onde crianças como eu nessa data interpretavam de maneira maravilhosa música linda. Nesse momento meus pais olharam esse interesse e entrei no El Sistema para estudar violino, apresentando uma prova básica de ritmo e voz.

Continuei a minha formação de violino na Academia de Cordas dos Andes, com o maestro violinista Simon Gollo. A graduação foi feita em Educação Musical e o mestrado em Inovações Educativas na Universidad Pedagógica Experimental Libertador, com uma dissertação para melhorar a prática orquestral através da música de câmara dentro do El Sistema. O objetivo geral da dissertação foi criar oficinas para ensinar aspectos complexos próprios da música de câmara e aplicar na prática orquestral.

 

BdFRS - Você experienciou o método ensino musical venezuelano chamado El Sistema, reconhecido por sua excelência. Conte pra nós como é essa experiência lá e como ela mudou a relação dos jovens com a música.

Ricardo - O Sistema Nacional de Orquestras e Coros Juvenis e Infantis da Venezuela é um programa social e cultural do Estado venezuelano, pertencente à Fundação Musical Simón Bolívar. Também conhecido como El Sistema, foi idealizado e fundado em 1975 pelo professor e músico venezuelano José Antonio Abreu para sistematizar o ensino e a prática coletiva e individual da música por meio de orquestras sinfônicas e corais, como instrumentos de organização e desenvolvimento social.

El Sistema é um projeto social de democratização da música. A melhor experiência que eu posso falar é que as crianças e jovens passam todo o dia em ensaios, aulas, naipes, masterclass. Manter uma pessoa ocupada fazendo com dedicação e compromisso o que gosta não deixa espaço para ter jovens na rua. Se você pergunta para mim, nesse momento era mais importante as atividades dentro do El Sistema que meu próprio ensino fundamental.

Constitui uma obra social do Estado venezuelano dedicada ao resgate pedagógico, ocupacional e ético de crianças e jovens, através da instrução e prática coletiva da música, dedicada à formação, prevenção e recuperação dos grupos mais vulneráveis do país, tanto por suas características etárias quanto por sua situação socioeconômica.

É uma instituição aberta a toda a sociedade, com um alto conceito de excelência musical, que contribui para o desenvolvimento integral do ser humano. Liga-se à comunidade por meio da troca, cooperação e cultivo de valores transcendentais que afetam a transformação da criança, do jovem e do ambiente familiar. Há um recurso humano voltado para a consecução de um objetivo comum, com misticismo e alegria, formando equipes multidisciplinares altamente motivadas e identificadas com a Instituição.


Orquestra Sinfónica Juvenil Metropolitana del Oeste e Coro Regional Juvenil Gran Caracas, dois dos tantos projetos de El Sistema / Reprodução/ Fundación Musical Simón Bolívar

Arte da maioria para a maioria

A Fundação Musical Simón Bolívar (FundaMusical Bolívar) hoje produz frutos de esperança ao ser uma pedreira para milhares de crianças, adolescentes e jovens venezuelanos que realizam seus sonhos de realização pessoal e profissional através da música. Músicos que todos os dias oferecem ao seu país novas possibilidades de melhoria e vitalidade. Eles simbolizam o esforço de perdurar no tempo e se estendem a outras esferas da atividade cultural, o que é reconhecido como o milagre musical venezuelano.

Mais do que produto da genialidade e virtuosismo de seus criadores, a música é reflexo da alma das pessoas e, neste caso, é fruto de um programa educacional que em 40 anos ultrapassou fronteiras e superou expectativas.

Antigamente a missão da arte era das minorias para as minorias, depois era das minorias para as maiorias. Agora, é da maioria para a maioria, e constitui um elemento relevante para a formação do indivíduo que lhe permite inserir-se na sociedade de forma produtiva.


El Sistema tem projetos de ensino de música para crianças a partir de 5 anos de idade / Reprodução/ Fundación Musical Simón Bolívar

Um modelo de paz e progresso para a humanidade

Por meio da prática individual e coletiva da música, o El Sistema incorpora crianças e jovens de todas as classes sociais: 66% vêm de lares com poucos recursos econômicos, ou que vivem em condições adversas e em áreas vulneráveis; enquanto os outros 34% atendidos pertencem a áreas urbanas com melhores possibilidades de acesso, conseguindo assim um exemplo de inclusão de todos os setores e estratos da população venezuelana, sem distinções de qualquer tipo.

Orquestras e coros são escolas de vida social e pessoal, onde se cultivam habilidades e atitudes positivas, valores éticos, estéticos e espirituais. Lá os músicos desenvolvem autoestima, segurança pessoal e socialização; adquirem disciplina e hábitos de estudo; aprendem a perseverar, praticam o senso de competitividade e liderança saudáveis; trabalham constantemente para atingir metas e excelência, e convivem com seus pares em um ambiente de tolerância e solidariedade, enquanto crescem estimulados por uma cultura de paz.

O impacto global do El Sistema colocou a Venezuela e seus jovens músicos em palcos artísticos de prestígio em todo o mundo, tornando-os embaixadores da Paz e sendo reconhecidos com inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio Príncipe das Astúrias para as Artes e o Prêmio Internacional de Música da UNESCO. El Sistema inspirou mais de 40 países da Europa, América, Ásia, África e Oceania, onde já está plantada a semente do modelo venezuelano, demonstrando que é uma alternativa real e sustentável de educação, progresso e paz.

BdFRS - Quando e por que você veio para o Brasil?

Ricardo - Eu vim para o Brasil porque ganhei uma bolsa de estudos de doutorado pela OEA (Organização dos Estados Americanos) para estudar, na UFRGS, práticas interpretativas com o Maestro Fredi Gerling.

BdFRS - Como você chegou ao projeto Orquestra Jovem e Escola Casa da Música e o que ele representa para você?

Ricardo - Cheguei por recomendação, meu professor de doutorado indicou meu contato para a diretora da Casa da Música, Ângela Diel. Posteriormente eu fiz uma entrevista e pouco tempo depois fui aceito como professor dentro do projeto.

Para mim é uma honra poder coordenar o Projeto da Orquestra Jovem Casa da Música. O projeto dá oportunidade a desenvolver habilidades musicais, prática individual e coletiva, as quais fortalecem a formação integral das crianças, criando nelas outro olhar das artes e fomentando valores para que possam ser pessoas de bem.


Em 2021, sob coordenação de Ricardo, a Orquestra Jovem Casa da Música fez seis concertos para cerca de 2 mil espectadores / Foto: Divulgação

BdFRS - Como coordenador do projeto, você traz a experiência de El Sistema ao ensino dos jovens?

Ricardo - Não só trago a experiência do El Sistema, existem outras metodologias que podemos utilizar dependendo das necessidades do contexto. Já trabalhei com diferentes projetos sociais na Venezuela, Colômbia e Moçambique, onde fui convidado para executar parte da minha dissertação de mestrado.

Na Venezuela, com El Sistema em duas cidades (Táchira e Mérida); na Colômbia, com a fundação Talento Musical, no estado Boyacá, em três cidades (Tunja, Duitama e Paipa); e no Moçambique, com a fundação Kulugwana e o projeto social de música Xiquitsi, na cidade de Maputo. Cada um deles com características únicas. Exemplo disso, infraestrutura, orçamento, equipe de trabalho, etc., pelo que o planejamento e conteúdos específicos para cada projeto foi adaptado às necessidades do mesmo.

BdFRS - Para além do conhecimento que você trouxe, o que aprendeu musicalmente falando em sua vivência aqui no Brasil?

Ricardo - Todos os dias a gente aprende, cada dia que eu passo no Brasil é uma aprendizagem e cada aluno é um mundo. Portanto não há um remédio que funcione para cada pessoa, temos que trabalhar em função das necessidades de cada participante. Então o feedback é a melhor ferramenta para acrescentar o conhecimento.

BdFRS - Qual a importância do desenvolvimento da habilidade musical para a cidadania das pessoas em um país?

Ricardo - A música forma parte do dia a dia, ninguém consegue imaginar um dia sem som. A música está na vida cotidiana das pessoas, além das pesquisas que falam que a música ajuda a desenvolver o processo cognitivo. Por isso é muito importante para um país olhar a música não como uma atividade extraescolar, mas sim, como parte fundamental na formação integral de cada criança.

Latinoamerica cantada por Calle 13, Maria Rita y dirigido por Gustavo Dudamel & Orquesta Sinfonica Simon Bolivar.


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::

SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS

Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.

Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.

Edição: Katia Marko