Rio Grande do Sul

ÁGUAS DO RIO GRANDE

Quando o acesso à água e a luta de classes se tornam uma coisa só

Doutor em Planejamento Walter Aragão critica o “ogronegócio” e adverte que as guerras no século 21 serão pela água

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Walter Aragão defende a necessidade da água ser mantida como patrimônio das comunidades - Foto: Rede Brasil Atual

“Da água brotou a vida. Os rios são o sangue que nutre a terra, e são feitas de água as células que nos pensam, as lágrimas que nos choram e a memória que nos recorda”, escreveu Eduardo Galeano, no livro “Os filhos dos dias”. Nesta entrevista da série Águas do Rio Grande, o Brasil de Fato RS fala com Walter Aragão sobre o livro Água e Luta de Classes, a necessidade da água ser mantida como patrimônio das comunidades, o papel das mulheres na luta pelo saneamento e a situação desse recurso essencial à vida como pivô de futuras guerras.

O doutor em Planejamento Urbano Walter Morales Aragão passou por enchentes desde criança. Nascido na Zona Norte de Porto Alegre – situada na área de várzea do rio Gravataí – na época das chuvas, seu bairro recebia a visita regular das inundações. Mudou-se para a ilha do Pavão onde o rio Jacuí, nas cheias, costumava bater na porta das casas. O tema da água, dos territórios e dos assentamentos humanos sempre o atraiu. Técnico químico durante 20 anos na Companhia Estadual de Saneamento, a Corsan, graduou-se em Filosofia e fez mestrado e doutorado em Planejamento.

O livro que lançou esquadrinha a temática sob prisma diferenciado, o do confronto das classes na sociedade por um bem comum. Água e Luta de Classes (Padula Editora) é uma atualização da sua dissertação de mestrado sobre os serviços urbanos de abastecimento de água no Rio Grande do Sul. Militante, ele fomenta um grupo de estudos em temas ambientais que batizou como “GRETA”. Aqui, Aragão discorre sobre a necessidade da água ser mantida como patrimônio das comunidades, o papel das mulheres na luta pelo saneamento e a situação desse recurso essencial à vida como pivô de futuras guerras.


O doutor em Planejamento Urbano Walter Morales Aragão lançou o livro Água e Luta de Classes, pela Padula Editora / Arquivo pessoal

Brasil de Fato RS - As questões da água e a das lutas de classe não costumam ser tratadas juntamente. Onde elas se encontram no seu livro?

Walter Aragão - No referencial teórico, principalmente. Busquei uma abordagem na tradição teórica materialista-marxiana. E a polêmica mais explicativa que encontrei para a temática das formas organizativas do saneamento urbano no Brasil republicano foi aquela entre o greco-francês Nikos Poulantzas e o alemão Claus Offe. Eles discutiram sobre a natureza do Estado nas sociedades capitalistas da segunda metade do século XX: a especificidade do Estado "capitalista". E, como no recorte temporal que estudei, a República brasileira até a redemocratização e o final do séc. XX, o saneamento foi o setor de infraestrutura que melhor resistiu à privatização neoliberal, avaliei que a metodologia tipológica de Claus Offe era pertinente e explicativa.

Poulantzas julgava o Estado capitalista como uma resultante concreta das lutas e acomodações de classes em que todas as classes sociais participavam - umas dominando e outras subordinadas - mas num arranjo evitador da revolução. Offe discorda, acrescentando que há uma seletividade especificamente capitalista de ponta a ponta da estrutura, através de critérios de racionalidade. Assim, ante o fenômeno de que Porto Alegre foi, por mais de 30 anos, a única capital estadual com serviço municipal de água tem, hipoteticamente, uma explicação sistêmica. O patrimônio do DMAE foi considerado maior do que o do estado no setor quando da pressão para Porto Alegre entrar para a Corsan em 1966. E isto serviu de justificativa para a recusa. Mas, na teoria com base empírica, as lutas sociais na Capital estiveram num tal nível no início dos anos 1960 que justificaram a oferta de dinheiro dos EUA à prefeitura para a criação do DMAE em 1961: era a Aliança para o Progresso de John Kennedy, mandando dinheiro da USAID - a agência de cooperação no exterior - para evitar novas revoluções como a cubana - que pegou os EUA de surpresa em 1959. E o DMAE tornou-se o maior serviço municipal do Brasil até hoje.

A infra do saneamento é uma conquista feminista

BdF RS - Você lembra do papel da Constituição de 1988 na reorganização do serviço e também uma influência das mulheres. Como é isso?

Aragão - A Constituição de 1988, no bojo das lutas pela redemocratização, visou "aproximar o governo do cidadão", fortalecendo os municípios - uma forma burguesa de mediação com os novos movimentos sociais. Os serviços de interesse local, como o saneamento, ficaram para os municípios. O que dificultou a privatização do setor. E muito dos movimentos sociais urbanos são feministas! Na nossa sociedade machista, "lata d'água na cabeça/lá vai Maria/ Sobe o morro e não se cansa", carregar água é encargo tradicional das mulheres. A infra do saneamento é uma conquista feminista. E a sensibilidade social à falta de água no meio urbano é forte e imediata, vide protestos históricos mundo afora, como em Nova Délhi nos anos 1990 ou a famosa "Guerra da Água" de Cochabamba, em 2000. Também é um setor que gera mais postos de trabalho. O que permitiu um sindicalismo relativamente massivo e atuante.

BdF RS - No Brasil está em curso, pelo viés neoliberal dos governos Temer e Bolsonaro, um processo de privatização dos serviços de abastecimento de água que encontra uma oposição muito tímida. O que é preciso para as pessoas se darem conta do que podem perder?

Aragão - Democratizar a mídia, fundamentalmente. Há diversos sindicatos e ONGs em defesa da água pública. Mas são censurados totalmente pelos oligopólios midiáticos que só dão espaço aos defensores da privatização total.

O ´ogronegócio` usa 70% da água disponível

BdF RS - Existe uma grande tolerância ou mesmo cumplicidade dos governos com o uso privado da água dos rios e lagoas. No Rio Grande do Sul, os plantadores de arroz mantêm as plantações irrigadas com as águas comuns, muitas vezes secando banhados e lagoas, prejudicando a comunidade e a natureza...

Aragão - É a questão do uso sustentável e compartilhado dos recursos hídricos. Luís Timm Grassi fez a apresentação do livro falando dessa temática que vai muito além do saneamento: balneários, turismo, indústrias bilionárias que não pagam nada pela água e o "ogronegócio" que usa 70% da água disponível.

O problema está nos centros urbanos. Aí, os capitalistas se interessam

BdF RS - Porque, na sua opinião, a gestão de água deve ser pública e nunca privada?

Aragão - Talvez a pergunta fique mais precisa sendo "por que nunca capitalista?" Aqui no Rio Grande do Sul há umas três mil associações de água em distritos rurais. São soluções simples, de pequeno porte e são privadas! Precisam de apoio público no controle de qualidade e nada mais. Não são capitalistas. O problema está nos centros urbanos. Aí, os capitalistas se interessam, pois as arrecadações são grandes. E aí devem ser entes públicos a operar, pois é preciso garantir acesso geral (à água) como direito humano que é. E padrões de qualidade que o capitalista não manteria, pois visa o lucro máximo.

BdF RS - A Bolívia viveu, duas décadas atrás, a “Guerra da Água”. Começou na cidade de Cochabamba quando a empresa Aguas de Tunari, pertencente a um consórcio encabeçado pela empresa estadunidense Bechtel, assumiu o serviço, aplicou um tarifaço de 100% nos consumidores, e motivou uma mobilização inédita contra a privatização que acabou vitoriosa. Você imagina que chegaremos a um ponto em que será necessário repetir aqui a lição dos bolivianos?

Aragão - Registro importante! Aquela luta, juntamente com o retorno ao serviço público em Paris e Buenos Aires e em centenas de outros lugares são lições sobre o enfrentamento aos ataques capitalistas aos bens comuns, tão em voga agora com o trumpismo e o bolsonarismo. O Rio de Janeiro privatizou agora, pressionado pela adesão ao regime fiscal federal. Vamos ver o que acontece por lá e tentar evitar aqui no Rio Grande.

O futuro distópico é agora mesmo!

BdF RS - Fala-se, com muita frequência, que as guerras futuras, diante do processo de devastação da natureza e esgotamento dos mananciais, não serão por combustível, mas pela água. É também seu sentimento?

Aragão - Sim, infelizmente. Israel e Jordânia dividem litro a litro o rio Jordão. E Israel tomou as colinas de Golan da Síria por lá estarem nascentes importantes. A Turquia segura com represas o Tigre e o Eufrates, afetando Iraque e Síria. Os EUA - que têm falta de água em várias partes - já avisaram o Canadá que querem sua água doce de qualquer jeito. Portugal - cujos rios maiores nascem todos na Espanha - discute o uso da água com a vizinha desde o século 12. E por aqui São Paulo já usa mais água do que tem faz tempo. E briga com o Rio pelo uso do rio Parnaíba do Sul. O futuro distópico é agora mesmo!

BdF RS - Na condição de um dos países com maiores reservas de água doce do mundo, o que o Brasil deveria fazer para proteger esta condição?

Aragão - Se os três níveis de governo cumprissem a legislação hídrica e a ambiental já seria bom. E se os ecologistas, cidadania usuária dos serviços e trabalhadores do setor se comunicassem e articulassem seria melhor ainda!

BdF RS - Que papel exerce a aceleração do processo de liberação de agrotóxicos durante o governo Bolsonaro - muitos condenados nos países de origem - na degradação da qualidade da nossa água?

Aragão - É muito o princípio ecologista da precaução, coisa que o capitalismo odeia. Os mananciais têm certa capacidade de diluição e os sistemas de tratamento conseguem remover a maior parte. Mas com excesso de uso, liberação desenfreada e falta de fiscalização ambiental no interior das bacias hidrográficas, a situação multiplica o perigo.


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Edição: Katia Marko