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Petrópolis é o retrato do Brasil

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"O Serviço Geológico Brasileiro, em uma pesquisa muito precária feita em 2021, estima que mais de 4 milhões de pessoas morem em áreas de risco no país"
"O Serviço Geológico Brasileiro, em uma pesquisa muito precária feita em 2021, estima que mais de 4 milhões de pessoas morem em áreas de risco no país" - Florian Plaucheur/AFP
A tragédia de Petrópolis é a do Brasil e de várias nações condenadas à exploração e à dependência

Entre a sensação de desalento e de indignação, o Brasil acompanha, durante a semana, a tragédia em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. No dia 19 de fevereiro, a Defesa Civil do município confirmou a impactante realidade de 165 pessoas mortas. Ainda no mesmo dia 19, a Polícia Civil estadual informou que há 213 pessoas desaparecidas.

A tragédia atingiu as famílias trabalhadoras e subempregadas da cidade fluminense. Um levantamento do próprio município, elaborado em 2017 e apresentado como Plano Municipal de Redução de Riscos, concluiu que 18% do território de Petrópolis estava sob risco. Nestas áreas de risco habitavam cerca de 27.000 famílias.

A realidade aponta que os investimentos públicos para a mitigação do problema foram sendo diminuídos ou cortados, na exata contramão do aumento da pobreza e do crescimento das ocupações em áreas inabitáveis e de risco. O mesmo plano identificava que 7.177 famílias deveriam ser retiradas imediatamente das áreas de risco e reassentadas pelo poder público. Como nos mostram as cruentas imagens da tragédia, nada foi feito.

A tragédia assume ainda um forte poder simbólico a par da calamidade objetiva. Em Petrópolis todos seus moradores, incluindo os trabalhadores e as famílias pobres, quando efetivam transações imobiliárias, tem a obrigação de pagar uma taxa para os descentes da fugaz monarquia brasileira. Não se trata de um imposto público, devido ao Estado, para que este implemente serviços públicos universais. Trata-se de uma taxa de caráter privado, repassada a título de um privilégio intempestivo e inconstitucional. Indevidamente chamada de laudêmio - tributo cobrado sobre as transações de compra e venda de imóveis localizados em áreas públicas – essa taxa, sabiamente apelidada pela população da cidade como “taxa do príncipe”, é uma usurpação privada. A taxa, que é inclusive recolhida e administrada por uma empresa privada de propriedade dos herdeiros de Dom Pedro II, é em realidade de uma ilegítima forma de transferência de renda para ricos especuladores.

Mas ao fim e ao cabo, de forma até caricata se não fosse trágica, não seria esse o retrato do Brasil?

Durante os últimos anos a distância entre ricos e pobres ficou maior no país. A ocupação de áreas de risco e sem habitabilidade é cena constante e generalizada nas cidades brasileiras. Principalmente aquelas que se beneficiaram do surto de industrialização da segunda metade do século XX. Um crescimento sem planejamento porque determinado pelo interesse do mercado em ‘armazenar”, com baixo custo e ao alcance das mãos, um forte contingente de trabalhadores para sustentar o movimento e a transição do capital no país.

O Serviço Geológico Brasileiro, em uma pesquisa muito precária feita em 2021, estima que mais de 4 milhões de pessoas morem em áreas de risco no país. O geólogo Renato Eugênio de Lima, diretor da UNESCO, nesta mesma matéria afirma que "esta é uma estimativa conservadora. O número é ainda maior e está se ampliando nos últimos 10, 15 anos. É um processo contínuo porque é preciso controlar o acesso às cidades, com planejamento urbano e de ocupação do solo. Hoje a ocupação é desordenada". A ocupação em áreas de risco é expressão da pobreza no país. Segundo matéria da BBC Brasil, os 2% mais ricos da população brasileira são responsáveis por 20% do consumo geral no país. Os produtos de alto valor de mercado, como automóveis e imóveis de luxo, chegaram a patamares de 80% de crescimento em suas vendas, enquanto o consumo de proteína animal diminuiu no mesmo período. Os investimentos financeiros de brasileiros no exterior atingiram uma alta de 76%, a maior desde que começaram a ser acompanhados, em 1995.

Em verdade, no que diz respeito ao seu efeito perverso, “a taxa do príncipe” é aplicada em todo o país: chama-se sistema tributário injusto. Se a extemporânea aristocracia de Petrópolis amealha diretamente recursos da população através daquela taxa esdrúxula, os ricos do país recebem benefícios através de um sistema articulado de imunidades, segredos, ocultamentos e facilitações próprias do regime. Segundo Maria Regina Paiva Duarte os mais ricos receberam, em função da regressividade das alíquotas do imposto de renda das pessoas físicas (IRPF), mais de R$ 650 bilhões entre 2007 e 2018.

A regressividade tributária torna-se um mecanismo pesado e perverso de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Se compreendida junto com os privilégios na expatriação de capital, com a imunidade tributária para lucros financeiros e a reforma trabalhista que precarizou o trabalho no país, percebemos que se trata de um arraigado arranjo de regras, cujo sentido é tornar os mais ricos cada vez mais ricos e os mais pobres, cada vez mais pobres.

A tragédia de Petrópolis é a tragédia do Brasil e de várias outras nações condenadas à exploração e à dependência. Petrópolis é o retrato não só do Brasil, mas do Haiti, Bangladesch e outros tantos países. Petrópolis é, tristemente, uma enxurrada de realidade.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko