ENTREVISTA ESPECIAL

Orçamento participativo saiu das mãos da comunidade, diz ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont

A prática do OP começou a ser abandonada por José Fogaça e prosseguiu com o governo Fortunati

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Raul Pont (PT) afirma que, quando foi prefeito de Porto Alegre (1997-2001), o orçamento era debatido ponto a ponto com a comunidade - Divulgação

Considerado o terceiro prefeito de Porto Alegre a governar dando prioridade para a participação popular no Orçamento Participativo, Raul Pont (PT; 1997-2001) sucedeu a Tarso Genro (PT; 1993-1996), sendo eleito ainda no primeiro turno. Pont ficou conhecido por ampliar a discussão sobre Orçamento Participativo nas comunidades e por ir pessoalmente a todas as reuniões para debater diretamente com a população e seus representantes.

O ex-prefeito afirma que o Orçamento Participativo começou a ser abandonado nos governos José Fogaça (MDB; 2005-2010) e José Fortunati (PSB; 2010-2017), mas houve resistência da população e das comunidades para que se mantivesse o processo. Segundo ele, a estratégia de participação popular foi sendo escamoteada, em especial pela omissão de valores, mesmo com a tese do Banco Mundial que o mecanismo é um elemento para aprimorar a governança da cidade.

Em entrevsita ao Brasil de Fato, Raul Pont conta sobre o processo e como ele foi enfraquecido.

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Confira a entrevista

Brasil de Fato - Segundo pesquisa publicada no Atlas Mundial do Orçamento Participativo, embora o prefeito Nelson Marchezan Junior não tenha colocado verbas para a discussão com a comunidade e nem convocado mais assembleias do OP em Porto Alegre, em 2017, o OP não foi extinto. Os atuais governantes colocaram, para o ano de 2022, R$ 10 milhões para o Orçamento Participativo, a ser dividido entre as 17 regiões e os seis grupos temáticos para atender o que já foi definido no passado como prioridade. Outros R$ 150 milhões entram na conta como recurso para o Orçamento Participativo e serão destinados para demandas como as chamadas obras da Copa e o projeto da Orla. O senhor acha que isso pode ser considerado como uma retomada do processo?

Raul Pont - A prática do OP começou a ser abandonada nos governos Fogaça e prosseguiu com o governo Fortunati. Nos primeiros anos houve resistência da comunidade e pressão para manter essa forma de gestão pública. Aos poucos, no entanto, esses governos foram liquidando com o processo. Primeiro, acabou a transparência e a informação sobre o Orçamento total. Fogaça e o secretário Busatto defendiam a tese do Banco Mundial, da “governança local”, onde o OP era um elemento entre outros, para envolver mais responsáveis pela solução de problemas locais ou reivindicações, pelos próprios moradores. Mantiveram a estrutura, as regiões e as plenárias temáticas para não enfrentar o movimento comunitário que queria manter o processo participativo.

O segundo passo foi diminuir os recursos gradativamente. Como não havia a informação do orçamento total, essa manipulação permaneceu. O terceiro elemento foi burocratizar o Regimento Interno, dificultar a renovação e cooptar lideranças populares via cargos ou intermediação de uma política de clientela. Esses procedimentos foram liquidando o OP como gestão pública, desacreditando e diminuindo a participação. Não havia mais prestação de contas, as obras atrasavam ou não eram feitas e o descrédito cresceu.

O governo Marchezan foi a pá de cal no OP. Não tinha nenhum compromisso com a democracia participativa. Se formalmente não foi extinto e agora o governo Melo reapresenta a proposta é por mera demagogia. Colocar R$ 10 milhões para o OP diante do orçamento de Porto Alegre é ridículo. É só para iludir a população, alardear que recursos para as obras atrasadas da Copa ou para a Orla são do OP é um engodo. A questão central do OP como o desenvolvemos era a soberania e o caráter vinculante da decisão popular nas regiões e nas temáticas do OP, a partir das projeções dos recursos totais de investimento para o ano.

Brasil de Fato - O rompimento com os três critérios que caracterizam o Orçamento Participativo, conforme o Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos lançado no início deste mês, é anterior. Para classificar uma experiência como Orçamento Participativo, o Atlas considera três características essenciais: envolver o todo ou uma parte do orçamento de uma instituição ou território, que os cidadãos decidam as prioridades de execução, e garantir que seja feito o que for decidido. Considerando esse cenário, o Atlas Mundial aponta "a prática extinção do Orçamento Participativo na capital gaúcha”. O senhor concorda com isso?

Raul Pont - Infelizmente, o Atlas Mundial do OP tem razão ao afirmar que a experiência do OP em Porto Alegre foi extinta. Não existe. Esse governo atual não respeita nem os Conselhos Municipais. Deixaram de ter maioria de representação da comunidade. São mais instrumentos do governo do que aquilo que está previsto na origem legal dos Conselhos. Alguns resistem. Outros foram desativados. O do Plano Diretor é pior. Virou instrumento de manipulação para a especulação imobiliária através das exceções e projetos especiais. Hoje, Porto Alegre não é mais referência de democracia participativa, não é mais considerada pelas milhares de experiências que se espalharam no mundo a partir dos nossos governos e, em especial, com as várias edições do Fórum Social Mundial aqui realizadas.

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BdFRS - O senhor entende que a continuidade dos Conselhos e delegados de comunidades pode caracterizar uma continuidade ou é uma simples utilização de conceitos para mascarar esta questão?

Raul - Hoje, manter as regionais e as temáticas, ou o próprio Conselho do Orçamento Participativo (COP), sem ter acesso aos orçamentos reais, sem os critérios prévios de distribuição dos recursos para que cada região ou temática saiba o que priorizar e tenha a garantia que isso será realizado e acompanhado pelos Cadernos de Obras e Serviços, é mero simulacro de democracia participativa. Pior, com o mau exemplo federal, os municípios e estados estão instituindo a figura das emendas parlamentares, que transformam qualquer Orçamento numa colcha de retalhos sem planejamento, sem democracia, para puro clientelismo. Um verdadeiro desastre administrativo.

BdFRS - Como funcionava a capital gaúcha no tempo do OP entre os anos de 1989 e 2010? Dá para se chamar um exemplo de democracia?

Raul - A experiência do OP nos governos da Administração Popular de 1989 a 2004, começou no governo Olívio Dutra com este objetivo central: democratizar as decisões sobre o orçamento público e inverter prioridades, com o protagonismo direto da população. Ao longo dos anos aumentou a participação, construiu com a própria comunidade um Regimento Interno que todo ano sofria aperfeiçoamentos e que permitia desdobramentos como os Congressos da Cidade, abordando planejamento futuro ou temas específicos como a reforma do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA) com um ano inteiro de debate na comunidade antes do envio do projeto à Câmara Municipal. Essa experiência que virou referência de gestão pública tornou Porto Alegre reconhecida no mundo inteiro e encontrou no Fórum Social Mundial um canal de difusão para todos os continentes.

BdFRS - Ao completar 250 anos, no seu entender, Porto Alegre regrediu?

Raul - Do ponto de vista democrático, sem dúvida. Voltamos a ser uma cidade onde Executivo e Legislativo dispensam e até negam a participação popular. Já vimos o que ocorre com os Conselhos Municipais, são manipulados, negados. Quanto ao OP, simplesmente acabou. Qual a transparência? Qual a informação à cidade sobre receitas e despesas? Os reajustes do IPTU foram escandalosos, sem um pio da mídia. Conosco esta só falava na “sanha tributária do PT”. Agora, não há transparência, nem informação e, a cada dia, abrem-se exceções no Plano Diretor para a especulação imobiliária, piora de qualidade de vida e falta de planejamento.

BdFRS - Chegou a existir corresponsabilidade dos cidadãos na administração da cidade?

Raul - A experiência do OP é uma escola de cidadania. Na prática, as pessoas vão aprendendo como funciona o orçamento. Como se distribuem os impostos e as responsabilidades dos entes federados. As decisões tomadas em assembleias são um aprendizado sobre planejamento, sobre prioridades, sobre como trabalhar com poucos recursos diante de enormes carências, com decisões debatidas e acordadas entre os participantes. Nas temáticas, as pessoas vão aprendendo e se empoderando sobre mobilidade urbana, educação, saúde, meio ambiente. O que fazer primeiro, o que são prioridades coletivas. Quais as competências do Estado e da União.

BdFRS - Considerando esse cenário, o Atlas Mundial aponta "a prática extinção do Orçamento Participativo na capital gaúcha". Na avaliação dos pesquisadores, o Orçamento Participativo de Porto Alegre "mantém-se como uma referência histórica indiscutível, embora cada vez menos como uma fonte de replicação na atualidade".

Raul - Como referência histórica importante, também concordo. Há muita coisa escrita, muita referência, os FSMs, etc. Atualmente, não acredito. São governos neoliberais, pela exclusão social. São anti-planejamento, dominados pelo mercado. Os serviços públicos são cada vez mais terceirizados e isso aumenta a precariedade e a corrupção nessas áreas. A lógica da acumulação, da maximização dos ganhos não combina com saúde e educação públicas de qualidade. As escolas e o tratamento dado aos professores e funcionários estão aí para provar. A nossa rede escolar foi uma referência na educação brasileira de ensino fundamental com o sistema de ciclos para evitar a evasão e a reprovação, escola inclusiva, formação permanente dos professores, orçamento participativo escolar, envolvimento comunitário com as escolas públicas, etc.

BdFRS - Fique à vontade para comparar a Porto Alegre administrada pelo OP com a Porto Alegre da Orla. Quais as principais diferenças? A Orla foi discutida com a comunidade?

Raul - O tratamento da Orla não começou hoje. Começou com o aterramento dos anos 1940/50. Continuou com as obras contra as cheias com o muro e com os diques da BR 290 e da zona Sul. Teve continuidade com a construção da Avenida Edvaldo Pereira Paiva. Ninguém mais lembra da Vila Cai Cai, entre o Inter e o Museu Iberê, sem as mínimas condições de vida, assim como as centenas de famílias que ocupavam a Vila Areia onde hoje é o Barra Shopping até o Hipódromo. Essas comunidades receberam centenas de casas/apartamentos na Vila Nova e na Cidade de Deus com escola fundamental, escola infantil e galpões de reciclagem. Tudo discutido com a comunidade.

Quando tentamos levar o projeto de urbanização na proximidade do Museu Iberê, a diretoria do Inter, com apoio da mídia, criou a maior campanha contra a Prefeitura, dizendo que queríamos ocupar áreas do clube. O mesmo ocorreu no Projeto da Pista de Eventos na área da foz do Arroio Dilúvio em direção ao sul. A Associação de Moradores do Menino Deus, com apoio da mídia, fizeram campanha contra e até o MP foi mobilizado. É evidente que as obras atuais são importantes, mas não substituem a necessária participação da comunidade na definição de prioridades.

A Usina do Gasômetro, o Centro Municipal de Cultura, os teatros municipais estão fechados ou abandonados. Isso também é importante e as pessoas precisam ser ouvidas em todas as áreas. A Usina foi uma referência cultural em exposições, debates, cinema, conferências, mostras de arte, etc. Há uma década fechada ou mais. Há 20 anos que não se constrói uma obra estrutural no sistema viário. As “obras da Copa”, com exceção da Padre Cacique, se arrastam há anos numa mostra de incompetência e falta de planejamento monumentais. A cada novo contrato as obras aumentam o orçamento ou duplicam de preço.

A cidade voltou a ter regiões com falta de água, algo que havia sido universalizado na virada do século, e nestas duas décadas, apenas mais uma estação de tratamento de esgotos foi concluída. Em torno de dez escolas infantis estão com obras paradas, abandonadas, sem perspectiva de término. Quem é o responsável, quem vai pagar ou devolver o dinheiro gasto até agora? São crimes contra o patrimônio público. Na democracia participativa, a definição das obras, a fiscalização e acompanhamento pela comunidade e a necessária prestação de contas no final de cada ano reduzem praticamente a zero esses desperdícios do orçamento público que vemos hoje.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Rodrigo Durão Coelho e Katia Marko