Rio Grande do Sul

ENTREVISTA ESPECIAL

Aos 250 anos Porto Alegre volta atrás e dispensa a participação popular

Criador do Orçamento Participativo, Olívio Dutra entende que existe uma tentativa de derrubar esta vitória popular

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O ex-prefeito e ex-governador Olívio Dutra analisa a atual situação da participação popular em Porto Alegre - Foto: Leonardo Lucena

Criador do Orçamento Participativo (OP) em Porto Alegre, o ex-prefeito e ex-governador Olívio Dutra analisa a atual situação da cidade ao completar 250 anos. Ele concorda com o Atlas Mundial do Orçamento Participativo, segundo o qual, mesmo não sendo extinto, o OP na prática não existe mais e os governantes atuais dispõem dos recursos da cidade da maneira que melhor lhes convêm. Desta forma a participação democrática que transformou a capital gaúcha em referência mundial ainda é realidade em 53 cidades do planeta, menos em Porto Alegre. 


A cidade foi exemplo de democracia e sede do Fórum Social Mundial | Foto: Ivo Gonçalves / Arquivo municipal

Confira a íntegra da entrevista

Brasil de Fato RS - Segundo pesquisa publicada no Atlas Mundial do Orçamento Participativo, embora o prefeito Nelson Marchezan Junior não tenha colocado verbas para a discussão com a comunidade e nem convocado mais assembleias do Orçamento Participativo em Porto Alegre, em 2017, o OP não foi extinto. Os atuais governantes colocaram, para o ano de 2022 R$ 10 milhões para o OP, a ser dividido entre as 17 regiões e os seis grupos temáticos para atender o que já foi definido no passado como prioridade. Outros R$ 150 milhões entram na conta como recurso para o Orçamento Participativo e serão destinados para demandas como as chamadas obras da Copa e o projeto da Orla. O senhor acha que isto pode ser considerado como uma retomada do processo?

Olívio Dutra - Não. Penso que é uma forma “inteligente” de prosseguir na política de ir enfraquecendo paulatinamente a radicalidade democrática do processo do Orçamento Participativo até domesticá-lo para os interesses dos pretensos donos do ordenamento dos espaços urbanos e rurais do município. Onde, quem e como se levantou, em números redondos, esses R$ 10 milhões e mais os R$ 150 milhões, de novo redondos, que, “por seu alto tirocínio administrativo”, os governantes destinaram ao OP? N’alguma Assembleia local, regional ou Conselho do Orçamento Participativo? Tudo leva a crer que foram decisões pragmáticas dos governantes, levando em conta os interesses do mundo dos negócios na “modernização” da cidade.

BdFRS - O rompimento com os três critérios que caracterizam o OP, conforme o Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos lançado no início deste mês, é anterior. Para classificar uma experiência como Orçamento Participativo, o Atlas considera três características essenciais: envolver o todo ou uma parte do orçamento de uma instituição ou território, que os cidadãos decidam as prioridades de execução, e garantir que seja feito o que for decidido. Considerando esse cenário, o Atlas Mundial aponta "a prática extinção do Orçamento Participativo na capital gaúcha”. O senhor concorda com isto?

Olívio - Sim. Na prática está em andamento uma extinção gradativa e envergonhada do Orçamento Participativo, não só em Porto Alegre, mas no RS e em outros municípios no país onde a semeadura do OP começava a se espraiar e criar raízes. A extinção só não foi abrupta e autoritária porque nos mais de dez anos de instigante prática democrática do OP em POA ele ganhou, não só notoriedade, mas reconhecimento e respeito ao ponto de o Banco Mundial incluir sua prática como critério para facilitar acesso a financiamentos buscados em sua Carteira por municípios de diversas partes do mundo. É bem verdade que esse reconhecimento por parte do BM faz parte do processo de domesticação global antecipada do OP antes que sua radicalidade democrática avançasse para a discussão participativa e cidadã não só da despesa, mas da receita pública na sua estrutura tributária, arrecadação e social e economicamente justa distribuição dessa renda.

A extinção só não foi abrupta e autoritária porque nos mais de dez anos de instigante prática democrática do OP em POA ele ganhou, não só notoriedade, mas reconhecimento e respeito

BdFRS - O senhor entende que a continuidade dos Conselhos e delegados de comunidades pode caracterizar uma continuidade ou é uma simples utilização de conceitos para mascarar esta questão?

Olívio - A continuidade dos Conselhos e de delegados de comunidades é uma conquista da cidadania que não pode ser desprezada pelos governantes que, no entanto, buscam congelá-los como instâncias consultivas e não deliberativas, não raro acenando com cooptações do tipo remuneração das funções e possibilidade de reeleições sucessivas nos respectivos mandatos, apaziguando interesses e neutralizando a formação e surgimento de novas lideranças.

BdFRS - Como funcionava a capital gaúcha no tempo do OP entre os anos de 1989 e 2010? Dá para se chamar um exemplo de democracia?

Olívio - Exemplo completo não digo, mas embrião viçoso de democracia nascente sim, com muito desafio pela frente para se espraiar e se enraizar com a participação consciente e crescente da população, respeitando e estimulando entidades comunitárias pré existentes como a UAMPA e a FRACAB como espaços naturais por onde a discussão do processo do OP deveria iniciar.

De 1989 a 2010 o processo foi desabrochando. De duas ou três regiões embrionárias, mais adiante já existiam seis. Hoje são 17. Todo o cuidado, de parte do governo, era para que não se criassem regiões e estruturas de cima para baixo nos bairros e regiões ainda sem tradição e cultura de organização e representação comunitária. Por conta disso, se desencadeou um processo de mútua aprendizagem entre governo, trabalhadores da Prefeitura de todos os níveis e a cidadania despertada para a participação consciente em reuniões e assembleias em diferentes locais do município que ela mesmo propunha.


Em 1988, contrariando todas as pesquisas, Olívio vence as eleições para a Prefeitura de Porto Alegre com 38% dos votos / Foto: Reprodução Blog O Boqueirão

BdFRS - Ao completar 250 anos, no seu entender, Porto Alegre regrediu?

Olívio - Refletindo sobre questões como desenvolvimento economicamente viável, ecologicamente sustentável e socialmente justo, Porto Alegre, como as demais cidades no país e no mundo nesta fase do globalismo neoliberal, vive uma crise de valores democráticos e humanitários que se reflete no rebaixamento da qualidade de vida da maioria das pessoas e no aprofundamento do fosso que separa os poucos muito ricos dos milhares muito pobres. 

Sentimentos de fraternidade, companheirismo, respeito à pluralidade, à diversidade e à Vida no seu lato sentido, são secundarizados, desprezados ou embrulhados em bitolados pacotes ideológicos. O resgate da radicalidade democrática e a afirmação do Estado Democrático de Direito são objetivos a alcançar no menor prazo possível. Nesse ínterim só a Poesia nos salva. E a minha resposta para esta pergunta devia ser simplesmente o poema do Mario Quintana: O M A P A!

BdFRS - Chegou a existir corresponsabilidade dos cidadãos na administração da cidade?

Olívio - Considerando a forte fiscalização sobre a execução de obras e qualificação de serviços exercida por delegados e representantes do OP nas diferentes regiões podemos dizer que, de certa forma, sim. Numa Assembleia em uma região em que a SMOV executara obras de cobertura asfáltica em ruas do trajeto de ônibus do transporte coletivo, o governo precisava explicar porque não concluíra todo o trecho no prazo previsto e constante do “caderninho” que os fiscais do OP tinham em mãos.

Um líder comunitário apresentou e colocou em cima da mesa rodeada pela coordenação dos trabalhos e com a presença do prefeito, secretários e técnicos da SMOV, cinco saquinhos de plástico contendo brita, cascalho, areia, cimento, piche e argumentou que aquele material era de procedência mais cara e teria sido aplicado em quantidade desnecessária encarecendo a obra e gastando recurso extra que deveria ter sido usado para concluir o trecho. Foi um custo para o governo e os técnicos demonstrar pôr a+b que foi necessário usar aquele material e na proporção aplicada visto que a prospecção do solo detectou que se não se reforçasse a cobertura daquele trecho dentro de um mês, no máximo, com a passagem constante dos ônibus a cobertura se esbrugaria toda.

Sentimentos de fraternidade, companheirismo, respeito à pluralidade, à diversidade e à Vida no seu lato sentido, são secundarizados, desprezados ou embrulhados em bitolados pacotes ideológicos

De outra feita, por ocasião da discussão da nova planta de valores para efeito da cobrança justa e progressiva do IPTU aconteceu um dos raros momentos em que se discutiu um item importante da receita do município. Discutimos no OP a proposta que o Executivo devia levar, em tempo hábil, para discussão e aprovação na Câmara de Vereadores. Há mais de 10 anos não se revisava a Planta de Valores e as injustiças eram grandes como era grande a evasão desse imposto de parte de quem devia e podia pagar mais.

O debate esquentou, particularmente o patrocinado pelo setor imobiliário com forte representação na Câmara, parte da mídia e pela Oposição. As lideranças comunitárias por dentro das instâncias do OP participavam ativamente. A proposta inicial sofreu alterações e aperfeiçoamentos nesse debate. Assim mesmo havia uma forte resistência na Câmara à sua aprovação. No dia do debate no Legislativo municipal a coordenação do OP ocupou o Plenário da Casa ostentando faixas defendendo o aumento do IPTU proposto pelo governo municipal. Aprovou-se não o ideal, mas o mais próximo dele graças a presença esclarecida e a pressão legítima das lideranças do Orçamento Participativo.

BdFRS - Considerando esse cenário, o Atlas Mundial aponta "a prática extinção do Orçamento Participativo na capital gaúcha". Na avaliação dos pesquisadores, o Orçamento Participativo de Porto Alegre "mantém-se como uma referência histórica indiscutível, embora cada vez menos como uma fonte de replicação na atualidade". No entanto, o Orçamento Participativo não foi formalmente encerrado em Porto Alegre. Mesmo sem a realização de assembleias, seguem ativos o Conselho do Orçamento Participativo (COP) e os Fóruns Regionais, que reúnem conselheiros e delegados eleitos pela comunidade. Conforme a atual gestão do governo municipal, as assembleias podem ser retomadas e cabe aos representantes da comunidade a decisão de realizá-las virtual ou presencialmente. Contudo, a estrutura e o recurso para realizar os encontros depende da prefeitura. O senhor acredita nessa possibilidade?

Olívio - O princípio fundante do OP é a discussão com a Cidadania reunida, organizada e representada em suas instâncias da Proposta Orçamentária, na sua totalidade, Receita & Despesa, que, há cada ano, o Executivo deve encaminhar ao Legislativo para debate, aperfeiçoamento e aprovação que a transforma em Lei para ser aplicada no ano seguinte. Portanto, o papel do OP não é de simples homologador de recursos parciais a ele destinados, segundo critérios pessoais dos governantes. Cabe ao OP opinar sobre a Proposta do Executivo, propondo mudanças, sugerindo aperfeiçoamentos, sublinhando prioridades que o governo, antes de enviar para a Câmara, pode acolher no todo ou em parte ou simplesmente rejeitar justificando nas Plenárias seu posicionamento.

Nesse sentido o OP é uma Escola de Democracia. Não fabrica dinheiro, mas algo valioso para o aperfeiçoamento e consolidação dela: a consciência cidadã de respeito à coisa pública, ao dinheiro público, ao espaço público, impedindo no nascedouro qualquer prática de corrupção. Quanto à singela pergunta “O senhor acredita nessa possibilidade?” respondo com os versos 4835/40 do Martin Fierro: “Mas Dios ha de permitir, /que esto llegue a mejorar, /pero se ha de recordar/para hacer bien el trabajo/que el fuego, pa calentar, /debe ir siempre por abajo.”

BdFRS - Fique à vontade para comparar a Porto Alegre administrada pelo OP com a Porto Alegre da Orla. Quais as principais diferenças? A Orla foi discutida com a comunidade?

Olívio - Não chegamos a discutir, no OP, um planejamento para Porto Alegre de forma exaustiva, didática e pedagogicamente, de curto, médio e longo prazo. Assim como não alcançamos desencadear, paciente e metodicamente, no interior das instâncias do OP, uma visão de Estrutura Tributária simples, baseada em impostos progressivos. A experiência com o IPTU foi um bom ensaio. Mas os debates em torno dos Planos Diretores poderiam ter avançado mais. As plenárias na Região Sul, desde o Lami, Belém Novo, Restinga, Ipanema, Vila Nova, Cristal, chegando à Av. Beira Rio, Usina do Gasômetro e o Cais do Porto eram sempre bastante concorridas e garantiram intervenções qualificadoras dos espaços públicos e muito mais precisaria ser feito sem o enganoso “salvacionismo” de privatizá-los. Penso que as duas perguntas finais já foram respondidas no contexto das respostas às perguntas anteriores.


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Edição: Katia Marko