Rio Grande do Sul

ENTREVISTA ESPECIAL

“É preciso olhar para as pessoas que necessitam de moradia”, afirma Vanessa Marx

Pesquisadora do Observatório das Metrópoles e do BrCidades comenta os problemas sociais e específicos de habitação

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Vanessa Marx é coordenadora do Projeto de Extensão Mulheres e Cidades, ligado ao departamento de Sociologia da UFRGS e vinculado ao BrCidades - Foto: Arquivo Pessoal

Desde 1948, o direito à habitação é reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um direito humano fundamental. Apesar disso, de acordo com dados da Fundação João Pinheiro (FJP), publicados em 2021, o déficit habitacional é de aproximadamente 6 milhões de moradias no Brasil. No Rio Grande do Sul, o déficit é de 220.927 domicílios.

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Mesmo em meio a esse contexto, o mapeamento dos despejos no país, realizado pela Campanha Despejo Zero, registrou mais de 20 mil remoções forçadas entre março de 2020 e fevereiro de 2022. Isso mesmo com uma medida cautelar concedida pelo STF que proíbe remoções, despejos ou desocupações durante a pandemia da covid-19, que tem como prazo de validade o dia 31 de março.

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Em entrevista ao Brasil de Fato RS, a professora de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora do Núcleo de Porto Alegre do Observatório das Metrópoles e membro do BrCidades, Vanessa Marx, comenta os problemas sociais e específicos de habitação. Ela aponta a necessidade de uma articulação federativa, isto é, a cooperação entre União, estados e municípios, para a condução de políticas públicas de acesso à moradia. Além de enfatizar a importância da participação popular na tomada de decisão da esfera pública. 

Leia abaixo a entrevista:

Brasil de Fato RS - Mais de 130 mil famílias estão sob ameaça de despejo desde a chegada da pandemia no Brasil, de acordo com dados da Campanha Despejo Zero. No entanto, mesmo antes da crise sanitária, o país já havia batido o recorde de déficit habitacional em 2019. Quais fatores configuraram esse cenário no Brasil? 

Vanessa Marx - O Brasil é um país historicamente desigual e com a pandemia isso se agravou. São múltiplos os fatores, a falta de acesso a programas específicos de educação, de saúde, somada a falta de investimento em políticas públicas para a moradia. Por exemplo, existe o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, mecanismos nacionais que tentam reduzir o déficit habitacional e as desigualdades, mas ainda falta uma articulação federativa. O Brasil possui dimensões continentais, então é preciso olhar como estão sendo investidas as políticas nos âmbitos dos estados e dos municípios. Se existe investimento e como se dá esse investimento.

O primeiro problema do Brasil é a desigualdade social

BdF RS - Que tipo de política habitacional o país precisaria para atender à demanda por habitação hoje? 

Vanessa - É complexo, não é fácil dizer como reduzir o déficit habitacional. É preciso pensar em aumentar o investimento e em uma articulação federativa. Além disso, seria importante olhar para a população de baixa renda e destinar recursos como era no programa Minha Casa Minha Vida Entidades, criado depois do Minha Casa Minha Vida e que buscava resolver essa desigualdade. Um programa nacional precisa cruzar o déficit habitacional com as desigualdades sociais e regionais existentes.

BdF RS - Conforme aponta uma pesquisa realizada pela FJP, publicada no ano passado, entre os imóveis alugados que compõem uma conjuntura deficitária no país, mais de 1,8 milhão têm como locatárias mulheres chefes de família. Na perspectiva racial, mulheres pretas e pardas são ainda mais propensas a sofrer uma ordem de despejo. Elas correspondem por 63% dos lares chefiados por mulheres. No BrCidades, tu também se dedica a abordar a dimensão de gênero no direito à moradia. Pode nos explicar por que o déficit brasileiro habitacional é feminino?

Vanessa - As mulheres estão à frente das famílias. No projeto de extensão que eu coordeno na UFRGS, o Mulheres e Cidades, que está vinculado ao BrCidades, a gente percebe que nos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e o RS Mais Igual, muitas delas recebiam o recurso porque eram as chefes de família. Os dados apontam que elas são as responsáveis pela casa. A relação entre mulheres e cidades é um aspecto amplo, é a questão da segurança, da mobilidade e do acesso ao espaço público. Além disso, no Brasil, as mulheres são maioria da população e isso também reflete no déficit habitacional.

BdF RS - E como melhorar a inclusão da perspectiva da mulher nas políticas de moradia?

Vanessa - Não é só pensar em políticas para mulheres na cidade, é preciso pensar em como são planejadas essas políticas. Não se pode planejar políticas sem as mulheres. Deveria existir uma maior articulação da representação política, do ativismo urbano e de pesquisadoras planejando a cidade em conjunto. Porque a gente percebe que algumas políticas que são voltadas para as mulheres não são pensadas pelas mulheres. Essa articulação da representação e da participação é fundamental.

Fazem políticas, mas as mulheres não são escutadas

BdF RS - Apesar de o acesso à moradia digna ser um direito constitucional, de acordo com estimativa da própria Prefeitura de Porto Alegre, havia 3.850 mil pessoas morando nas ruas da Capital em 2020. Desse total, cerca de mil acabaram nesta condição após o início da pandemia. Como reverter essa situação para esse segmento da população? Quais são os desafios nesse sentido?

Vanessa - A primeira coisa é evitar os despejos. Se a gente evita despejo, a gente evita que pessoas estejam nas ruas. É necessário também articular políticas integradas de moradia, saúde, educação e assistência social que não sejam de caráter temporário. É importante escutar essa população que faz parte da cidade, isso é fundamental nesse momento. 

BdF RS - Porto Alegre está completando 250 anos de história. Como coordenadora regional do Observatório das Metrópoles, como você avalia o direito à cidade em Porto Alegre? 

Vanessa - Porto Alegre é mundialmente conhecida como a cidade da participação popular, isso está intrinsecamente na nossa história e na nossa memória, mas temos muito o que avançar ainda, principalmente porque o direito à cidade corresponde à vida urbana. “Direito à vida urbana, transformada, renovada”, como diria Henri Lefebvre.

No Observatório das Metrópoles, nós temos feito uma reflexão para pensar a “Porto Alegre 250 anos”. Temos feito pesquisas sobre o direito à cidade, a reforma urbana, e o que deveríamos refletir nestes 250 anos é se temos uma cidade para todas e todos, se temos uma cidade que dá acesso ao espaço público.

Em 1996, a Conferência Habitat II considerou o Orçamento Participativo como uma das 40 melhores práticas de gestão do planeta, mas, nesses últimos anos, nós vivemos muitos retrocessos e perdas de direitos, então é importante resgatar a democracia participativa e a inclusão social nas decisões da cidade por meio de mecanismos de participação cidadã. Os projetos das cidades precisam ser discutidos com a população.

BdF RS - Deseja acrescentar algo? 

Vanessa - A cidade precisa ser repensada. Reflito que é preciso pensar o planejamento das cidades com as mulheres. As cidades são pessoas, então a participação, a escuta e o diálogo tem de estar no centro da nossa perspectiva para o futuro. 


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Edição: Marcelo Ferreira