Rio Grande do Sul

ARTES PLÁSTICAS

Artigo | Beabá – uma cartilha intuitiva

Mostra que reúne obras dos artistas visuais Marcos Sari e Maria Paula Recena convida a deixar as convicções de lado

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Detalhe de obra de Maria Paula Recena, que integra a mostra “Beabá” - Foto: MP Recena

Uma exposição de arte é muitas vezes a materialização de um desejo de ampliar uma conversa. As obras possuem suas próprias histórias, mas quando estão ao alcance do público, podem se transformar pelo olhar de quem está em contato com elas. Uma, duas, quantas vezes for. Desses encontros surgem textos outros, novas falas, entrecruzadas: o que sabemos das obras, o que vemos nelas e as conexões com nossas próprias vivências criam textos que se somam, se modificam, num palimpsesto sensorial. Elas – as obras e as exposições – habitam ainda o universo da própria historiografia da arte, provocando discussões também sobre o campo em que estão inseridas.

Nessa perspectiva, Beabá parece espacializar um diálogo no qual a linguagem da arte encontra-se corporificada em manifestações que habitam diversas fronteiras: são trabalhos que podem ser entendidos enquanto objetos e/ou instalações, enquanto desenhos e/ou anotações, enquanto paisagens reais e/ou metafóricas. Reunindo obras recentes de Maria Paula Recena e Marcos Sari, artistas que desde meados dos anos 2000, convivem, trocam, discutem, expõem conjuntamente, Beabá configura-se como mais uma aproximação entre suas poéticas, novamente tensionadas por similaridades capazes de nublar suas dissonâncias. (Não há como não dizer, a primeira vez que publiquei um texto crítico sobre uma exposição envolvia esses dois artistas. Em tal artigo, argumentava justamente sobre a confluência entre suas obrasi).

A exposição começa com um labirinto lúdico, um corredor repleto de pêndulos suspensos, como móbiles. Coloridos e espelhados, refletem não só quem passa por eles, mas também letras que estão coladas em suas superfícies, letras que formam mais do que palavras, vocalizações, sons, repetições. Como nós entrelaçados no jogo de espelhos, o som mudo das letras ecoa nas cores e reflexos no espaço. É bonito, divertido, mas abriga também um desconforto. O corpo todo joga para percorrer o caminho, o fim é de novo o seu começo.

Se não sabemos de onde vem a obra, quais questões e processos levaram a artista a desenvolver esses móbiles, sentimos. Percebemos tanto o rigor construtivo, a precisão arquitetônica, quanto a falta de controle imposta pelo movimento indominável das peças. Diria ainda que a ideia de comunicação implícita na escrita também surge problematizada quando nos deparamos com textos que são, sobretudo, fonéticos, contribuindo para a sensação de desconforto já sugerida.

Essa instalação de Maria Paula, que empresta seu nome à totalidade da mostra – Beabá – atua como uma síntese da experiência expositiva que teremos. Ao percorrer a exposição, vivenciamos um percurso pautado por gestualidades, imagens, movimentos e associações que percebemos serem alimentadas tanto por um domínio formal quanto pelo universo da infância. Tal domínio formal – objetos bem executados, noções precisas de espacialização tanto intrínsecas aos suportes quanto em relação à arquitetura do lugar – aparece contaminado, informado, tensionado por esse universo da infância, por uma noção de linguagem em formação.

Beabá é de fato como costumamos nos referir ao período de alfabetização das crianças. Seu significado estende-se, todavia, para o início do aprendizado em qualquer área e à determinada simplificação. Boa parte da arte moderna e contemporânea nutre apreço especial pelo universo infantil ou primário, buscando absorver tanto uma dinâmica de liberdade sem preconceitos, intuitiva, quanto as ambiguidades de desejo e fantasia. No caso de Beabá, mais do que um interesse conceitual, Maria Paula e Marcos Sari deixam-se captar por uma perspectiva da infância em si mesma, fora da lógica discursiva analítica da idade adulta. Nada de elogio simplório ou maravilhamento ingênuo, o exercício experimental da liberdade (parafraseando Mário Pedrosa) atua na criação de situações propícias ao seu desenvolvimento, no caso, à incorporação dessa perspectiva complexa de infância.

A série Escapes em Terra, de Sari, por exemplo, é um movimento tanto de representação – uma vez que fazem referência à paisagem do Pampa, local onde o artista passou boa parte do período da pandemia de covid 19 – quanto um exercício de desconstrução das noções de paisagem e representação – já que Marcos se propõe a realizar esses escapes com o auxílio e interferência da filha de quatro anos. Por outro lado, Maria Paula, em Paisagem sem Espaço (um desenho muito longo, feito ao esmagar grafite com rolo de macarrão sobre papel em rolo, num processo que a artista só vê o trabalho completo ao desenrolar o desenho, depois de pronto) emula a experiência sempre imprevisível e surpreendente da convivência com uma criança autista. Aí de novo, poderíamos ver uma “explicação” para as sugestões fonéticas da instalação Beabá. No entanto, é evidente que a obra não se legitima por essa relação pessoal e sim por materializar em forma, espaço e sugestão sonora os mistérios da linguagem, uma possibilidade de poetificar a língua e a vida, tomar corpo, fazer dançar.

Compõe ainda a exposição um Jogo de Varetas em dimensões muito maiores do que as usuais, quase estacas pontiagudas e coloridas (obra que faz parte de uma série de Maria Paula chamada Brinquedos Neoconcretos); a peça sonora 4 Elementos, de Sari, na qual se ouvem balbucios e repetições em um looping constante; o texto-invenção Charles Cruces, escrito por Sari e Mariana dos Santos em uma língua fronteiriça, entre o espanhol e o português, criando associações livres entre vocábulos; o trabalho Rueda, também de Sari, uma reunião de fragmentos de peças de madeira – pés de mesa, tocos de pau, peças de jogos – fixados sobre uma superfície circular em uma associação curiosíssima; e uma mesa-vitrine na qual os artistas reuniram diversos materiais relacionados ao processo de desenvolvimento da exposição, entre trocas de mensagens, desenhos dos filhos e elementos de pesquisa.

Em todas as obras, a partir de um olhar para o universo da infância, suas possibilidades construtivas, destrutivas e intuitivas, Maria Paula e Marcos Sari nos convidam a um mergulho sem instrumentos nas entrelinhas da linguagem escrita, oral, plástica. Abrem uma conversa sobre contaminação entre poéticas e sobre pensamento espacial, permitindo que a exposição como um todo seja mais do que uma reunião de trabalhos e sim uma experiência em si mesma.

É um chamado permanente, por vezes sussurrado, para deixarmos nossas convicções de lado, embarcarmos em um retorno a nós mesmos, nossa sensibilidade, por vezes adormecida entre regras práticas e plásticas.  Por mais que as varetas tragam estacas, o que fica – nesta obra e em toda exposição – é a beleza a um só tempo lúdica transformadora de cores e formas que nos invadem como um abraço de outrora.  

i A exposição em questão chamava-se Planos, Vetores e Balizas, e reunia trabalhos de Maria Paula Recena, Marcos Sari e Pedro Engel. A mostra ocorreu na Galeria Iberê Camargo, na Usina do Gasômetro. O texto chamava-se Três tempos do espaço e foi publicado no extinto Caderno de Cultura do Jornal Zero Hora no dia 14 de agosto de 2004.

* Gabriela Kremer Motta é curadora, crítica e pesquisadora em artes visuais. Doutora em Teoria, Ensino e Aprendizagem da Arte, pela USP e mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005). Atualmente, é professora voluntária junto ao PPGAV do Centro de Artes da UFPEL.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira