Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Muita terra para pouco índio?

"Historicamente existe uma pressão forte sobre os territórios indígenas para que arrendem suas terras"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O volume em hectares das terras indígenas é tão pequeno, que nem aparece nos dados" - Foto: Alass Derivas | @derivajornalismo

Que há um movimento nacional de apoio aos povos indígenas, não se discute. Ainda mais neste momento em que se realiza em Brasília o Acampamento Terra Livre reunindo centenas de etnias, a fim de garantir que não haja retrocessos nas conquistas que tiveram desde a Constituição de 1988. Mas quando o direito à terra é reivindicado por outros setores, num estado onde se ocupa um quarto do território na produção de soja, a realidade pode fazer com que setores progressistas mudem de posição.

Uma coisa é apoiar os indígenas do Norte do país. Outra é apoiar os povos originários aqui no Rio Grande do Sul, que enfrentam a crescente expansão do agronegócio. Não podemos esquecer que a histórica concentração de trabalhadores sem terra que deu origem ao MST na Encruzilhada Natalino em 1978, ocorreu depois da expulsão deles da Terra Indígena de Nonoai. Escolas foram queimadas, um agricultor morreu, e os indígenas reconquistaram suas terras, ou apenas uma pequena parcela, desde que os europeus aqui chegaram.

Lembro-me de uma observação do governador Olívio Dutra (1999-2002), enquanto demarcávamos terra em seu governo: “Companheira, não podemos colocar pobres contra pobres”, ao se referir à disputa entre indígenas e pequenos produtores. Nesta época se fez o possível para que os agricultores fossem reassentados sem prejuízos apesar de terem que deixar suas terras onde viviam há décadas. É desta contradição que estamos falando. Mas será que esta disputa foi dissipada? Mesmo tendo claro que não são os povos originários responsáveis pela concentração fundiária? Diante da histórica desigualdade na distribuição desta terra, deveriam os grupos fragilizados brigarem entre si pela justiça social no campo?

Será que a briga é esta mesmo? Indígenas contra agricultores familiares? Ou teríamos que debater a real função social da terra? Talvez seja necessário ter-se em mente a dimensão dos espaços ocupados, comparando a distribuição das terras agricultáveis entre povos indígenas, agricultores familiares e grandes produtores. Segundo o último censo Agropecuário, a agricultura familiar, responsável pelo abastecimento de quase 80% da produção de alimentos, ocupa 25,26% da área agrícola, enquanto os latifúndios englobam 74,74%. O volume em hectares das terras indígenas é tão pequeno, que nem aparece nos dados. Mesmo assim historicamente existe uma pressão forte sobre seus territórios para que arrendem suas terras, que no total, chegam apenas a 0,02% do território gaúcho.

Em 2022, só o plantio de soja ocupou um quarto do território gaúcho, 6,32 milhões de hectares do total de 28,17 milhões. Enquanto as terras indígenas abrangem 113,18 mil hectares. Além disto, apesar da proibição constitucional do arrendamento, algumas lideranças indígenas sucumbiram. Com todo um movimento contrário a esta prática, no entanto, atualmente apenas 30 mil hectares dos territórios indígenas estão produzindo soja nas chamadas parcerias com não indígenas, que nada mais significam que um arrendamento disfarçado, fato que tem causado uma onda de violência em diferentes áreas indígenas.

Outro dado importante para o debate diz respeito à obrigação legal do estado do Rio Grande do Sul sobre parte das demarcações, ao contrário da maioria dos outros estados brasileiros, onde cabem somente à União. Esta responsabilidade mais localizada regionalmente, faz com que o conflito de interesses entre indígenas e não indígenas esteja mais próximo. Historicamente houve interferência direta de governos estaduais ao promoverem Reforma Agrária em terras indígenas, prática que ocorreu até a década de 1960, durante o governo de Leonel Brizola. Diante da pouca densidade populacional à época, os indígenas foram considerados extintos e suas terras liberadas para os agricultores sem terra. Por esta razão, no período durante o primeiro governo do PT no estado, mil famílias de agricultores foram indenizadas e mais de 11 mil hectares foram devolvidos aos povos originários. No segundo governo, no entanto, foi difícil a demarcação devido à oposição interna.

A ausência de políticas públicas no momento da devolução das terras aos indígenas é outro fator importante a considerar. Numa situação em que as terras devolvidas já estão em estado de degradação, onde não existem condições de se viver o jeito indígena, o “bem viver”, a pressão para o arrendamento em muitos casos foi vencedora. No entanto, deve-se ter claro que atualmente a maior concentração de florestas no estado encontra-se nestes poucos espaços indígenas. Na própria Terra Indígena da Serrinha - alvo de conflitos já abordados pelo Brasil de Fato - mesmo sem programas específicos, nestes 22 anos de demarcação, a metade dos 12 hectares já foi recuperada ambientalmente, apesar do arrendamento da outra metade.

Por outro lado, para o reassentamento de agricultores, já estão estabelecidos há décadas uma série de programas para a implantação do novo espaço de moradia. Lembro que na época entre 1999 e 2002, o Conselho Estadual dos Povos Indígenas, juntamente com diversos órgãos de governo e da própria Funai, teve que juntar esforços na implantação das novas terras indígenas, para as quais não havia nada em termos de previsões orçamentárias, tudo teve que ser criado. Basicamente os recursos conseguidos eram para mudas de árvores nativas.

* Jornalista mestre em Comunicação. Conselheira do CEPI nos dois governos do estado do PT

Edição: Katia Marko