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Coluna

Setor cultural sofre com os rescaldos da pandemia: o uso dos recursos no dia a dia

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"A queda de braço entre o executivo, legislativo e o setor cultural ficou evidente desde o dia 1º de janeiro de 2019, quando na reforma administrativa do governo recém-empossado o Ministério da Cultura (MinC) foi oficialmente extinto" - Divulgação/Secec-DF
Não é apenas o ator que faz uma peça, há um conjunto de trabalhadores envolvido nos espetáculos

No início de 2020, diante do avanço da pandemia de covid-19, houve a recomendação, por parte da OMS, que as pessoas evitassem as aglomerações. Esta decisão afetou sobremaneira as atividades culturais que ocorriam tanto em espaços abertos como em locais fechados. Em Porto Alegre a maior parte das atividades culturais foram suspensas ou seus espaços fechados já em março de 2020 e algumas retornaram ao final de 2021. Mesmo em 2022, eventos ainda correm atrás de uma tentativa de recuperação do tempo perdido.

Esta situação gerou uma crise sem precedentes no setor, pois há um desconhecimento sobre a quantidade de pessoas envolvidas ex-ante e ex-post da atividade em si: por exemplo não é apenas o ator que faz uma peça, há um conjunto de trabalhadores envolvidos nos diferentes espetáculos. Tem-se desde iluminadores, cenários, músicos, sonoplastia, e assim segue.

Uma das atitudes adotadas pelo governo federal foi a liberação de recursos através da Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural (Lei 14.017, de 2020), alterada pela Lei Federal nº 14.036 e o Decreto Federal nº 10.464, todos de 2020. De acordo com Câmara (2021), originalmente, a Lei Aldir Blanc previa, em 2020, a entrega pela União a estados e municípios de R$ 3 bilhões para auxiliar artistas e centros culturais e investir em editais públicos. O socorro estava vinculado ao decreto legislativo que reconheceu o estado de calamidade pública decorrente da pandemia, o qual perdeu sua validade em dezembro de 2020.

Na sequência, dado que a pandemia persistia, em março de 2022 foi aprovado no Senado o Projeto de Lei (PL) 1.518/2021, que criava a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura. Conhecido como Lei Aldir Blanc 2, cujo texto previa repasses anuais de R$ 3 bilhões da União para estados, Distrito Federal e municípios.  O definia que estados e Distrito Federal ficariam com metade dos recursos, distribuídos da seguinte forma: 20% de acordo com os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE) e 80% proporcionalmente à população. A outra metade do dinheiro seria para as prefeituras seguindo as mesmas regras de distribuição.

No entanto o presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente a Lei Aldir Blanc 2, justificando que a mesma era "inconstitucional e contrariava o interesse público”. Este veto mais uma vez ia de encontro aos anseios e necessidades do setor cultural, pois a maioria dos espetáculos, shows e outras atividades continuavam incapacitados de serem oferecidos. Aliás, neste mesmo momento o país sofria um enorme revés e os indicadores de mortes haviam disparado.

Outro revés ao setor cultural foi o veto ao Projeto de Lei Complementar (PLC) 73/21, que repassaria R$ 3,86 bilhões do Fundo Nacional de Cultura (FNC) para fomento de atividades e produtos culturais em razão dos efeitos econômicos e sociais da pandemia de covid-19. O texto batizado de “Lei Paulo Gustavo” teve veto integral. Dentre as alegações do presidente estavam razões fiscais, o teto de gastos e a compressão de despesas discricionárias (não obrigatórias) “que se encontram em níveis criticamente baixos e abrigam dotações orçamentárias necessárias à manutenção da administração pública”.

Outro argumento utilizado pela presidência era que o setor já havia sido contemplado com recursos pela Lei Aldir Blanc, e que as despesas com o auxílio emergencial eram mais necessárias e que o orçamento estava no limite.

O que podemos problematizar?

A queda de braço entre o executivo, legislativo e o setor cultural ficou evidente desde o dia 1º de janeiro de 2019, quando na reforma administrativa do governo recém-empossado o Ministério da Cultura (MinC) foi oficialmente extinto. Mesmo com todas as tentativas de reaver a pasta como Ministério, a Cultura está em posição inferior, como uma secretaria especial do Ministério do Turismo.

Neste embate estão as discussões sobre a Lei Rouanet, os procedimentos de distribuição de verbas, os beneficiados, e todas as controvérsias que pairavam sobre ela. Em fevereiro 2022 houve uma modificação na lei, impondo uma redução dos valores máximos de isenção fiscal para o financiamento de projetos culturais. Esta modificação, de acordo com alguns produtores, afetaria a obtenção de recursos, pois a maior parte dos projetos encaminhados consideram o uso de isenção fiscal. No entanto, de outro lado, obrigaria um maior esforço de financiamento próprio ou de recursos provindos das bilheterias. Mais recentemente, em maio de 2022, tem-se outro escândalo, envolvendo o uso de recursos públicos, por parte de prefeituras, para pagar cachês de cantores sertanejos, os quais deveriam ser destinados a pastas como a educação.

Este debate é complexo. Cantores muito bem estabelecidos no mercado, sertanejos por exemplo, têm gerado conflitos quando alegam não usar recursos provindos da Lei Rouanet, mas se utilizam de recursos pagos diretamente pelas prefeituras sem fiscalização federal, passando pelo crivo dos Tribunais de Contas, do Legislativo Municipal ou do MP (Ministério Público). De um modo ou de outro os recursos são provindos dos cofres públicos, de impostos diretos ou transferências. Mesmo que o caminho seja diferente a fonte não difere.

Isto posto, se reconhece a relevância do setor cultural como fonte de desenvolvimento, de geração de emprego e renda, mas as maiores desavenças estão na sua oferta, no direcionamento da mesma (quem demanda o que) e nas possibilidades de acesso dos mais variados grupos e segmentos aos recursos, sejam públicos ou privados. Há, sem sombra de dúvida, uma desigualdade visível tanto na oferta quanto na demanda que provoca exclusão e dificuldades de escalada no tecido social.

Porto Alegre pode se beneficiar muito do setor cultural: temos mão de obra qualificada, provindas de instituições públicas e privadas de ensino superior, tem-se teatros, canais de televisão, plataformas de internet à disposição, estúdios privados para gravações, centros culturais e livrarias com a possibilidade de exposições, entre outros.

* Judite Sanson de Bem - professora da Universidade LaSalle, pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira