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Tornar-se gente!

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"Convivemos com pessoas que buscam comida no lixo, crianças que morrem por doenças que deviam ter sido erradicadas, que morrem de fome ou de frio" - Arquivo EBC
Viver tem doído demais. Transformar a dor em potência transformadora pode ser mais do que necessário

Anda difícil viver. Mais do que sempre foi. Especialmente para quem convive, diariamente, com notícias de violência, incentivada pelo discurso - inclusive aquele que se traduz no silêncio - de quem detém o poder. Algumas situações são distópicas, como a do médico que estuprou mulheres anestesiadas durante seus partos. Dias depois dessa notícia monstruosa, vem outra: os seguidores do sujeito no Instagram se multiplicaram.

Isso diz muito sobre quem somos.

Aliás, impressiona como a cada semana uma notícia ainda mais monstruosa se substitui à última, numa cadeia de eventos que mina constantemente a crença na humanidade.

Apontar as pessoas que matam em nome de um mito ou abusam em nome de um falo, como monstros, não é suficiente nem real. Como disse Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém, são pessoas. Têm amigos, família, são capazes de demonstrar afeto. São pessoas que odeiam. Para cada mito, cada assassino, cada estuprador existem bem mais de 4.000 seguidores. Eis no que precisamos pensar. Nessa falha que naturaliza atitudes que geram dor. Muita dor. Para quem é abusada. Para quem toma conhecimento do abuso. Para quem perde de forma violenta seu afeto. Para quem tem um mínimo de capacidade de alteridade: de colocar-se no lugar da outra.

Essa falha tem ficado mais evidente, pela imediatez das notícias através das redes sociais. O que significa entender que para além dessas violências, tantas outras são praticadas sem que saibamos. A possibilidade de violar, tirar a vida, seguir um estuprador como se estivesse acompanhando uma série de TV, tem íntima relação com o modelo de convívio social em que tudo é reduzido à condição de coisa.

É urgente entender que um modelo de sociedade, no qual a própria vitalidade é mercadoria, tem um fundamento que nos conduz à barbárie. Por mais que aquilo que chamamos de modernidade tenha se estabelecido a partir do discurso da razão e da ciência, ele foi também fundado na naturalização da troca entre capital e trabalho, do uso e abuso dos corpos, especialmente aqueles femininos e/ou racializados. O fato de que são quase sempre homens que violentam corpos femininos não é, portanto, um acaso, bem sabemos. Essa marca fundante do modo como podemos ou devemos viver em sociedade condiciona a forma de interagir com o mundo e com os demais seres. Não há aí novidade.

O que talvez esteja hoje ainda mais explícito é que todas as compensações dessa forma de com-viver não são suficientes. E não apenas porque tem cada vez mais gente sem acesso ao mínimo, como o alimento. Também porque mesmo quem tem propriedade e frui uma “vida boa” está sofrendo.

O mundo agoniza, com catástrofes ambientais e violências cada vez mais impressionantes e banalizadas. E o mundo é a casa de todos nós. Então, mesmo que alguém ache o capitalismo bom, apesar da destruição do ambiente, da extinção das espécies ou da redução de tudo à condição de mercadoria, porque afinal de contas pertence ao pequeno grupo de pessoas que se beneficiam desse metabolismo social, fato é que notícias como essas explicitam uma falha que compromete todas as vivências.

Meu ponto aqui é reconhecer a centralidade da exploração da força de trabalho como mercadoria, como elemento que aprofunda e naturaliza uma sociabilidade perversa, capaz de - depois do tanto que caminhamos para chegar até aqui - ainda produzir violências que pensávamos pertencessem a um período bárbaro já vencido. E, a partir dessa reflexão, alterar práticas que de algum modo reforçam essa forma de convívio social.

Um médico que estupra mulheres anestesiadas não é necessariamente um louco. Um homem que invade uma festa de aniversário para honrar seu mito com o sacrifício da vida de outro ser humano não é necessariamente um psicótico. Mas, certamente, esses sujeitos foram socialmente convencidos de que o corpo do outro (e das outras) é mercadoria à sua disposição. Algo de que podem dispor. Isso não significa, por óbvio, retirar a responsabilidade de quem violenta. Significa compreender que o problema é bem mais complexo.

A monstruosidade que nos assusta nesses episódios é produzida cotidianamente, na repetição e exigência da troca, com tudo que daí decorre. As revistas feitas em pertences no local de trabalho, recalcando a ideia de que trabalhadoras e trabalhadores são potencialmente ladrões. A possibilidade de despedir sem justificar, impedindo a sobrevivência alheia. A banalização das horas extraordinárias de trabalho que suprimem a possibilidade de vida para todo o resto das coisas que se pode desejar fazer, como estudar, caminhar, namorar ou atuar politicamente. O condicionamento da vida ao pagamento de salário. A venda da saúde por um percentual fixado sobre o salário mínimo. A negação dos direitos fixados para essa troca a tantas categorias profissionais. A inexistência de trabalho remunerado para uma parte significativa da população adulta. Várias outras situações de violência cotidiana e invisibilizada poderiam ser aqui descritas. O ponto é que, se para sobreviver fisicamente é preciso se submeter a tanta violência, violar passa a ser a regra.

Marx já sabia e tantas e tantos depois dele alertaram: sem alterar esse metabolismo social, estamos condenados a repetir o eterno fracasso civilizatório.

Hoje, somos um laboratório de repetidas provas empíricas das consequências do estranhamento causado pela lógica do trabalho obrigatório, em um país nascido da violência colonizadora extrativista, predatória e escravista. Convivemos com pessoas que buscam comida no lixo, crianças que morrem por doenças que deviam ter sido erradicadas, que morrem de fome ou de frio. E com homens que estupram e matam em nome de um mito ou de um falo.

Falhamos.

Diante da percepção dessa falha torna-se urgente fazer da dor potência. Já vejo isso ocorrer em várias e diferentes instâncias da vida. Pessoas que moram em comunidades, que se negam a permanecer sob o regime da troca de trabalho por capital, que mudaram radicalmente o modo como se alimentam ou como distribuem seus afetos, que dedicam sua vida a construir e disseminar outras racionalidades. De uma perspectiva bem mais restrita e voltada para meu campo de trabalho, vejo decisões judiciais críticas, posicionadas diante do drama social que causa fome, desemprego, despejo, falta de vaga em hospital, violência doméstica. Vejo grupos de estudo, pesquisas, livros que fazem refletir e que propõem outros modos de com-viver. Mas, no geral, estamos longe de superar esse metabolismo autofágico e destrutivo, que gera mitos e monstros. Pois é justamente nesse campo tão limitado e imediato que talvez seja possível incidir concretamente para que a vida volte a ter importância. Todas as vidas.

Mudanças que parecem pequenas são potências para criar fissuras nesse tecido social que se esgarça, criando novos laços. É hora de radicalizar. Compreender e retornar à raiz das coisas.

Por que convivemos? Por que temos filhos? Para que trabalhamos?

Qual o sentido de uma vivência em que se passa a maior parte do tempo ali-é-nada?

E qual a nossa função nessa história, quando consumimos? Quando peticionamos? Quando decidimos? Quando empregamos?

O título desse texto é um diálogo com o livro de Neusa Souza Santos que está sendo relançado. Em Tornar-se Negro, ela diz que é preciso “tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico (...) engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada”.

Tornar-se gente, digo eu, também é reconhecer o processo ideológico que nos afasta dos demais seres, permitindo que as relações de afeto sejam antes de fúria, do que de amor. É entender como essa fúria é incentivada pela naturalização dos corpos dos outros como objetos a serem consumidos, a começar pelo “consumo” da força de trabalho. E como acabamos, com pequenas atitudes cotidianas, reforçando essa violência. Trazer isso à consciência é já revolucionário. Muda a forma como nos implicamos e tem potência para mudar o modo como agimos em todas as instâncias da nossa vida.

Viver tem doído demais. Transformar a dor em potência transformadora pode ser mais do que necessário. Pode ser o caminho para seguirmos vivas.

Tornar-se gente no Brasil é uma urgência.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko