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Coluna

Os empresários, a política e os golpes de classe

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Luciano Hang é um dos empresários mais conhecidos do grupo de WhatsApp que sugere golpe de estado em caso de vitória de Lula - Reprodução/Twitter
A defesa da democracia pelo empresariado depende do Estado ser eficiente para seus interesses

Durante anos e na atualidade, circulou e se consolidou uma ideia que não encontra amparo na realidade fática da política brasileira. A de que os empresários não têm interesse na política e de que não são políticos. Teriam uma visão técnica do mundo, interessados tão somente em gerir suas empresas tão negativamente afetadas por “políticos populistas e inescrupulosos”.

Esta imagem, tão tenazmente desenvolvida por décadas, é exatamente a própria política do empresariado como classe social. Convencer a sociedade de que os empresários não cultuam a política e se afastam dela foi decisivo para progressivamente desconstituir a legitimidade das relações partidárias e estabelecer uma certa supremacia das ideias liberais. Antiestatais e individualistas.

Não é incomum vermos partidos e lideranças políticas, vinculados ao empresariado, negarem a política, os partidos, as políticas públicas e o próprio Estado. O que parece ser uma contradição é na verdade uma ideologia. Empresários sempre dependeram do Estado e de suas agências para estabeleceram condições mais favoráveis aos seus interesses.

No período democrático aberto com a Constituição de 1988, as lideranças do empresariado estabeleceram uma estratégia de formulação de políticas e constituição de lideranças técnicas que criaram um processo de reformas do Estado de caráter neoliberal para configurar as funções do Estado através de inúmeras entidades e organizações que “ofertaram” metodologias, políticas e prioridades aos governos e à tecnoburocracia em pleno Estado democrático de direito. Flavio Calheiros[1] e Denise Gros[2] nos apresentam empiricamente este processo de alto ativismo político do empresariado em uma democracia.

Mas esse ativismo político do empresariado não está condicionado ou vinculado unicamente ao sistema democrático. O processo que desembocou no golpe militar de 1964 e no regime autoritário foi meticulosamente construído por um ativismo político empresarial que, através de um mecanismo político semelhante ao descrito por Calheiros, alterou através de um golpe a hegemonia política do período. Rene Dreifuss[3] demonstra que a ação política contra a hegemonia desenvolvimentista e o peso político dos setores populares, em especial do trabalhismo, levou a burguesia brasileira a se unificar em torno de soluções políticas extraconstitucionais.

As revelações de que um grupo de empresários se articula para conspirar contra a Constituição Federal não deveriam, portanto, surpreender a ninguém. Mais do que isso, de que a conspiração envolva militares e setores da tecnoburocracia do sistema de Justiça, igualmente não pode surpreender a ninguém. O que pode nos surpreender é quanto os setores liberais democráticos que comandam o Supremo Tribunal Federal estarão dispostos e interessados ou sejam capazes de agirem em defesa de uma noção genérica de democracia e uma noção específica de Estado democrático de direito.

Ainda que venha do próprio STF porção relevante das principais iniciativas de defesa da democracia, esta mesma Corte permitiu, em outros momentos, que as iniciativas golpistas parecessem ter campo político livre para progredir.

O episódio dos atos de conspiração contra a democracia do Sete de Setembro do ano passado são exemplos disto. Refutados retoricamente, seus organizadores políticos não sofreram a devida repressão legal de quem investe contra a Constituição Federal. Seus agentes organizadores e financiadores, contudo, sofreram um duro revés com a ação da Polícia Federal por determinação do ministro Alexandre de Moraes, ocorrida a partir da revelação de conversas em um grupo de aplicativo. Ato contínuo a Vice-Procuradora-Geral da República Lindôra Araújo reagiu em defesa dos empresários conspiradores e o Procurador Geral da República, Augusto Aras, foi reunir com a cúpula das Forças Armadas no Ministério da Defesa. Uma reunião suspeita por absurdamente inusual e inoportuna.

Esta dubiedade é a própria dubiedade do campo liberal no Brasil entre a democracia e a ditadura. As frações dirigentes do empresariado brasileiro não têm uma adesão estável ao sistema democrático, muito menos à democracia como princípio. Trata-se de uma injunção política. Pode ser pode não ser, depende do Estado ser eficiente para seus interesses.


[1] CALHEIROS, Flavio. A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo. São Paulo: ed Expressão Popular, 2918.

[2] GROS, Denise Barbosa. Institutos liberais e neoliberalismo no Brasil da Nova República. Porto Alegre: ed FEE, 2003.

[3] DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: ed Vozes, 1981.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko