Rio Grande do Sul

Coluna

A fome, as periferias, a política e as eleições de 2022

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"A partir de 2000, a FAO-ONU passou a monitorar a fome nos países e o resultado é publicado em documento denominado Mapa da Fome da ONU" - Agência Brasil
As consequências do desmonte das políticas públicas recaem brutalmente sobre a população envolvida

O ano de 2022 foi marcado pela divulgação dos números da fome no Brasil. Esta afeta todos os nossos territórios rurais e urbanos, mas tem uma incidência particular nas periferias metropolitanas.

A imprensa hegemônica registrou em todos os horários seu espanto com os números divulgados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - Rede PENSSAN, a partir da publicação do II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Apesar de:

As organizações denunciarem o final do Bolsa Família e o desmonte do Programa de Aquisição de Alimento (PAA) em agosto de 2021;

primeiro inquérito publicado em 2020 ter denunciado que 19,1 milhões de brasileiros conviviam com a fome;

Os movimentos terem denunciado o fechamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional através do Banquetaço, ainda em 2019;  

Os movimentos “do povo cuidando do povo” e organização de comitês populares terem realizado mobilizações em 2020;

Os defensores dos direitos humanos terem denunciado que a política monetária levaria a consequências perversas sobre os mais pobres;

Pesquisadores alertarem em 2019 sobre as consequências da austeridade traduzida na EC95 (PEC dos Gastos) sobre a educação, que por sua vez afeta o acesso a alimentação;

O Dossiê Reforma Trabalhista ter apontado, ainda em 2017, a precarização do trabalho, redução da remuneração e ausência de proteção social.

Foi somente em 2022 que a fome ganhou espaço nos grandes canais de comunicação. Este fato, coincidindo com o ano eleitoral pode contribuir para o entendimento de que o problema da fome tem relação com a política, a política partidária e eleitoral. Vejamos.

Não é a primeira vez que o país (e o mundo) atravessa crise de fome. Em 1974 ocorreu a Conferência Mundial de Alimentos, resultando na Declaração Universal para Eliminação da Fome e da Desnutrição. A principal tese oriunda desse encontro foi a produtivista e postulava que, aumentando a produção a fome acabaria.

A partir daí, ocorreu verdadeira corrida pelo aumento da produtividade. O Brasil, evidentemente, foi um grande mercado para empresas e indústrias internacionais, basta observarmos as marcas de implementos agrícolas por onde passamos. A intensificação do uso do solo, aplicação indiscriminada de insumos tecnológicos, biotecnológicos, agrotóxicos, incentivos financeiros, subsídios, sempre para os grandes produtores, foram as primeiras medidas.

Soma-se, ainda, consequências espaciais e conflitos oriundos da expansão da fronteira agrícola avançando sobre biomas como o berço das nascentes das maiores bacias hidrográficas brasileiras – o Cerrado – e do Amazônico. Ironicamente, esse movimento foi chamado de Revolução Verde e não podemos deixar de registrar o alinhamento com o atual jargão O Agro é Pop, que não é acaso, é consequência, é mutação do mesmo processo.  Mas, apesar de tudo isso, o problema da fome não foi resolvido.

De Josué de Castro, passando por Betinho, o Programa Fome Zero e a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, identificamos uma trajetória importantíssima da sociedade civil brasileira dedicada ao combate estrutural da fome. Chegamos até ao nível de termos um Guia Alimentar para a População Brasileira (2014). E quais foram as razões?

O primeiro deles vem de Josué de Castro quando diz que o problema alimentar é coletivo, é uma questão pública e de responsabilidade do Estado. Após, nos anos 1990, a mobilização empreendida por Herbert de Souza através da “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, provocou o poder público para que estabelecesse políticas de combate à fome, desnutrição e subalimentação. A ação envolveu academia, organizações civis e governos municipais comprometidos em resolver o problema.  

Porto Alegre, por exemplo, criou em 1993 o “Comitê Municipal contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Foro Contra a Recessão e o Desemprego”. Entre as ações encontravam-se: Cesta Básica do Mercado Público, Feiras Modelos, Santo de Casa, Pontos de Oferta e Centro de Bairro. Nos anos seguintes, com forte mobilização comunitária e relações estabelecidas com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Porto Alegre iniciou as práticas de agricultura urbana. Isso ocorreu em inúmeras outras cidades.

Foi o conjunto de iniciativas como essas que possibilitou a elaboração do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Tal arcabouço orientou a governança e criação de conselhos municipais e estaduais e as conferências.

Três exemplos de ações decorrentes:

PAA - Programa de Aquisição de Alimentos: Robusto sistema de conexão entre agricultores, periferias das cidades, compras governamentais, formação de estoques da agricultura familiar, fortalecimento de circuitos locais e regionais, valorização da biodiversidade, produção agroecológica, estímulo ao cooperativismo e ao associativismo

PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar: Programa que regulamenta e assegura a alimentação escolar a todos os estudantes da rede pública de educação básica. Prevê a participação de trabalhadores da educação, pais, responsáveis de alunos e representantes de entidades civis organizadas no Conselho de Alimentação Escolar. Ainda, é estimulada a aquisição de alimentos produzidos localmente, da agricultura familiar, comunidades indígenas e quilombolas.

Estoques Reguladores: No Brasil, apresenta como uma das finalidades a implementação da política governamental de regulação de preços, bem como manter estoques para oferta em momentos de baixa produção, crises ou entressafras.

A partir de 2000, a FAO-ONU passou a monitorar a fome nos países e o resultado é publicado em documento denominado Mapa da Fome da ONU. Todas essas medidas citadas anteriormente, sobretudo a PNAE, impactaram nos índices monitorados, conforme o gráfico abaixo. Assim, não há dúvidas de que a implementação progressiva do conjunto de ações e políticas públicas foram os responsáveis pelas mudanças. Portanto, as consequências do desmonte das políticas públicas provocadas pelos governos, recaem brutalmente sobre a população envolvida.

Gráfico, Histograma

Descrição gerada automaticamente

Fonte: https://www.fao.org/sustainable-development-goals/indicators/211/en/

Desta forma, reafirmamos que a fome é uma questão política e de responsabilidade do Estado. Todas essas medidas passam, inevitavelmente, pelo exercício da democracia em suas mais distintas dimensões, inclusive a eleitoral.

Assim, um plano de governo precisa ser analisado tanto em relação às propostas diretas de combate à fome, quanto pelas políticas estruturais, incluindo aqui a questão urbana, de acesso à terra e do direito à cidade. Também é necessário atenção para identificar as propostas que ampliam as desigualdades sociais. Neste sentido, provocamos os leitores a realizar a análise dos programas dos candidatos a governador(a) do Rio Grande do Sul, à luz do que foi escrito aqui.

Os programas encontram-se no site do TSE.

* Lucimar F Siqueira, Geógrafa, Doutora em Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko