Rio Grande do Sul

Estado Laico

Cortejo inter-religioso defende Estado laico em Porto Alegre neste domingo (23)

Na manifestação, líderes religiosos destacaram a urgente necessidade do resgate da democracia e do combate ao racismo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O ato aconteceu na Redenção e reuniu lideranças religiosas indígenas, de matriz africana, budistas, pagãs, espíritas e cristãs - Foto: Fabiana Reinholz

Diante dos recentes ataques do governo Bolsonaro e seus simpatizantes a entidades religiosas, e a crescente instrumentalização da religião e dos espaços sagrados para promoção de ódio e racismo religioso, organizações baseadas na fé realizaram em Porto Alegre, neste domingo (23), um cortejo de afirmação do Estado laico. O ato aconteceu na Redenção e reuniu lideranças religiosas indígenas, de matriz africana, budistas, pagãs, espíritas e cristãs, organizadas no Fórum Inter-religioso e Ecumênico do RS.

“Não é possível pessoas religiosas se manterem neutras em um momento histórico em que está a nossa frente um projeto de morte, um projeto ani-evangélico, anti-cristão, anti-laicidade, anti-diversidade religiosa”, argumenta a pastora luterana e integrante do Fórum Inter-religioso e Ecumênico do RS Cibele Kuss.

Concentrado no Monumento ao Expedicionário, no Parque da Redenção, o cortejo contou com intervenção artística da assistente social e artista Sandra, assim como músicas de cunho religioso, de matriz africana. Nas falas os participantes destacaram a importância do combate ao racismo, do Estado Laico e o resgate da democracia. 

“É muito interessante as igrejas e religiões lutando pelo Estado laico, isso porque as religiões têm se tornado, nos últimos anos, curral eleitoral. Alguns partidos políticos têm utilizado as igrejas para obter vitórias eleitorais e manipulação do povo. As igrejas, religiões, terreiros, espaços religiosos, são locais de adoração da divindade, do divino, mas também são espaços de reflexão sobre a vida”, pontua o postulante da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) e membro do coletivo LGBT+ Anglicanxs+, Ivan Carlos Pereira. 

Neste sentido, complementa Ivan, como reflexão de vida também estão inseridas as questões sociais, contudo não de uma forma de política partidária. “Temos que reforçar a liberdade de todas as comunidades, de todas as pessoas, que possam se posicionar politicamente e votar como queiram. E também que o Estado garanta liberdade de existência das religiões e que as pessoas possam exercer sua fé sem serem coagidas a votar em um ou outro candidato”, expõe. 


“O nosso lado é o lado que bate o coração” / Foto: Fabiana Reinholz

Apesar da Lei das Eleições (Lei 9.504/97), que proíbe a veiculação de propaganda eleitoral em templos religiosos, isso não vem acontecendo, o que descaracteriza o Estado laico. Conforme pontua a pastora Cibele, poderíamos definir o Estado laico à brasileira. “Fake na verdade. Esse processo eleitoral está comprovando isso, principalmente por conta do bolsonarismo que entrou nas igrejas literalmente para fazer campanha, desrespeitando inclusive pessoas de fé dentro das igrejas. Unindo-se a lideranças cristãs que mais parecem farisaicas que evangélicas. Por isso também é um ato em que pessoas cristãs sabem que têm uma responsabilidade muito maior de defender o Estado laico e de se colocarem como escudo para enfrentar o racismo religioso e a violência contra os terreiros”, afirma. 

Conforme complementa a Monja Kokai, o Estado laico tem sido, ao longo das décadas, só na teoria. Para ela, ainda não está completamente instaurado. “Eu entendo que a função do Estado é respeitar e garantir que a livre expressão de todas as denominações religiosas, inclusive a expressão dos ateus”, frisa. 

A monja pondera que algumas expressões religiosas sofrem mais preconceito que outras, por exemplo, as de matriz africana. “Isso está entrelaçado com o racismo estrutural no país. As coisas se cruzam em diversos aspectos e estamos aqui para defender o Estado laico e que o Estado tenha a função de proteger todo o tecido social. Já as denominações religiosas têm a função, no meu entendimento, de nos lembrar a cada momento de nossa humanidade e que somos corresponsáveis por toda vida na terra.” 


"Temos que reforçar a liberdade de todas as comunidades, de todas as pessoas se posicionarem politicamente e votarem como queiram" / Foto: Fabiana Reinholz

Intolerância religiosa 

“Este ano sofri um caso de intolerância religiosa no prédio onde moro, o que não é novidade, porque eu já venho sofrendo essas opressões há muito tempo. Por isso todo aquele que é realmente do Axé tem que estar nessa nossa luta contra todos os opressores, contra todos aqueles que não respeitam a natureza, que não respeitam o ser vivo, que não respeitam ninguém e que trazem à sociedade todo esse mal, todo esse desequilíbrio energético. Nós precisamos nos mobilizar e fazer a diferença neste momento”, desabafa Gladis Terezinha Freire Mariano. 

De acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de janeiro a junho deste ano foram registradas 383 denúncias de intolerância religiosa nos estados, 45,6% a mais que no mesmo período em 2021, quando 263 queixas foram feitas ao ministério. Ao todo, em 2021 foram 586 denúncias. 

“Para nós não é intolerância religiosa, é crime, é racismo religioso. Porque a intolerância neste país, em relação a tradição de matriz africana, é uma intolerância anti-negro. Portanto, quando nós religiosos de outras tradições nos reunimos é porque nossa fé é antirracista”, frisa a psicóloga, especialista em Criminologia, servidora pública Sandrali Bueno (Iyá Sandrali de Oxum), que veio de Pelotas para o cortejo. 

Para Baba Diba de Iyemonja, todas as tradições precisam estar do lado que bate o coração e não compactuar com um sistema de governo que quer colocar uma teocracia distorcida, que deturpa o lugar do Cristo. “Temos um sistema que ataca o povo de terreiro e deturpa o significado de terreiro, colocando uma tal de demonização no espaço que é de tradição. Precisamos romper com um sistema de governo que incita o ódio, a homofobia, a lesfobia, o racismo. Que invade terreiros, que invade e ataca o símbolo brasileiro como é a Nossa Senhora Aparecida, que é um símbolo católico, mas que todos nós, de todas as tradições religiosas respeitamos, para nós nossa senhora aparecida é Oxum.” 

Aumento dos ataques com o segundo turno

No dia 12 de outubro, na cidade de Aparecida, onde milhares de devotos de Nossa Senhora vão para participar das homenagens à Padroeira do Brasil, apoiadores do presidente Bolsonaro, que esteve presente na missa, agrediram jornalistas e até pessoas que usavam roupas vermelhas. Também xingaram o padre Camilo Junior que celebrava a missa das 14h. 

Outro caso que ganhou destaque foi em relação ao cardeal e arcebispo metropolitano de São Paulo, Dom Odilo Scherer, que foi criticado por usar vermelho em seus trajes, sendo acusado de ser comunista. A cor vermelha é usada por cardeais na Igreja Católica. Conforme levantamento do Brasil de Fato, após esse episódio os ataques à Igreja Católica vêm aumentando. 

“A utilização da fé popular, que vem acontecendo dentro da Igreja Católica, onde o Evangelho está sendo utilizado como forma de opressão pelo atual governo, enfraquece a fé verdadeira que é celebrada com Jesus Cristo, que pregou sempre a vida e abundância para todas e todos independente da crença, isso está sendo subvertido”, pontua a irmã franciscana Glena Sábio Garcia. Por isso, complementa, a importância de atos que celebrem a diversidade religiosa e a defesa do Estado laico, que é onde "a gente defende a liberdade de cada um, de cada uma exercer a sua fé, celebrar a sua fé, viver a sua fé sem que nenhuma se sobreponha sobre a outra, por isso a importância de tantas representações estarem aqui celebrando e lutando". 

Para Tiago Santos, fundador do Cristãos Contra o Fascismo, não é possível se dizer discípulo de um Jesus torturado e ter como livro de cabeceira a biografia de um torturador. “Não aceitamos e não vamos nos calar diante dessas contradições, de alguém que se diz cristão, mas que prega o ódio e o preconceito, em nome de um Jesus que acolheu, abraçou, que trouxe para si os marginalizados, excluídos. E é por isso que estamos aqui hoje, reunidas e reunidos para falar que a mensagem das religiões é do amor e da esperança, que não combina com o cristofascismo de Bolsonaro.


"Quem dividiu o país foi a supremacia branca, são aqueles que não respeitam as mulheres, os indígenas, que não respeitam as crianças" / Foto: Fabiana Reinholz

“O nosso lado é o lado que bate o coração”

Representante dos Espíritas à esquerda e do Movimento Brasil Laico, Paula Lau pontua que o movimento espírita é naturalmente progressista. Contudo, acredita que desde o golpe da Dilma tem se observado o recrudescimento do bolsonarismo. “Temos vivenciado o horror nas casas espíritas, observando posicionamento de irmãs e irmãos cegos, alucinados em delírios, apoiando o atual governo. Houve uma debandada dos espaços pelas pessoas que estavam enxergando a barbárie chegar”, aponta.

Para ela é preciso retomar o espaço. “O movimento espírita, hoje, com muita coragem se levanta, e vai voltar a ocupar os espaços após um susto, após não aceitar o ódio, a segregação, a naturalização e a banalização da morte. Usar o espiritismo como justificativa para que pessoas morram, para que pessoas possam ser deixadas morrer como se isso fosse um merecimento por algum débito de vida passada é uma falácia, isso é má fé de quem não consegue enxergar de fato as outras pessoas”, destaca. 

“Nós primamos pela vida. E o exemplo de genocídio que foi perpetrado pela omissão desse governo criminoso durante a pandemia é impossível pactuar. Porque foi nosso povo que morreu. Muitos dos nossos morreram sufocados, sem aparelho de respiração, e muitas das nossas famílias tiveram que assistir o presidente que fez chacota com a falta de ar e o sofrimento que nosso povo passou. O nosso lado é o lado que bate o coração”, finaliza Baba Diba de Iyemonja.

Conforme afirma Iyá Sandrali, não foram as religiões de matriz africana e demais religiões que dividiram o país por causa do ódio. “Quem dividiu o país foi a supremacia branca, são aqueles que não respeitam as mulheres, os indígenas, que não respeitam as crianças. São aqueles que dizem que 'pintou um clima'. Pois para nós quando pinta um clima está pintando é um crime. Sigamos com muita força e a laicidade do Estado, sigamos defendendo a democracia.” 


"Povo brasileiro põe a mão no consciente e a outra no coração que esse é o amor verdadeiro. Pega a mão do outro, vamos caminhar para defender a natureza, o colo da Mãe Terra" / Foto: Fabiana Reinholz

A cacica Kaingang Iracema Gãh Téh, além de destacar a luta na retomada do território no Morro Santana, fez um apelo ao povo brasileiro. “Povo brasileiro põe a mão no consciente e a outra no coração que esse é o amor verdadeiro. Pega a mão do outro, vamos caminhar para defender a natureza, o colo da Mãe Terra. Parem de ser amante do dinheiro, que dinheiro não dá vida, como esse explorador. Será que meus irmãos brasileiros estão tão esquecidos de que chegaram a pagar arroz a quase 50 reais, o gás a quase 200, piorou a gasolina, será que esqueceram. Onde nós estamos povo brasileiro? Vamos ser mais parceiros, compartilhar as coisas. Estou aqui com meus irmãos da religião, não sou contra. Mas façam a verdadeira religião, compartilhando e amando o próximo, não tirando a vida. Parem também de pôr veneno na terra para envenenar os alimentos e a água. Parem com essa coisa de querer armar o povo para tirar vida dos meus irmãos da periferia. Eu luto pela vida, pelo espaço de moradia. É isso que precisamos compartilhar”, conclui. 

O cortejo contou com o apoio da Fundação Luterana de Diaconia (FLD-COMIN-CAPA), do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil (CONIC-RS), da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), da Associação Brasileira de ONGs (ABONG), do Coletivo Abrigo, do Fórum Ecumênico Act Brasil e da Pão com Ovo.


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Edição: Katia Marko