Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Chega de passar pano

A sinuca de bico em que o Prêmio Açorianos foi metido

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Corpo de jurados deixou de assistir quatro espetáculos inscritos no Prêmio Açorianos de Teatro e que cumpriram as determinações do edital" - Divulgação

Aconteceu outra vez. Problemas no Prêmio Açorianos de Teatro. Desta vez, o corpo de jurados deixou de assistir quatro espetáculos inscritos na premiação e que cumpriram as determinações do edital realizando pelo menos quatro apresentações em teatros da Capital.

Uma variação sobre o tema. Uma nova faceta de um problema que vem se arrastando há bastante tempo: a desvalorização sistemática desta premiação criada através de decreto, em 1977, pelo então prefeito nomeado pela ditadura militar Sr. Guilherme Socias Villela, como forma de prestigiar o intenso movimento teatral de Porto Alegre.

Inicialmente eram premiados somente os espetáculos de Teatro. Ao longo dos anos foram incluídas a Dança (que depois passou a ter sua própria premiação), o Teatro de Rua e, atualmente, artistas vinculados ao Circo.

Uma vez instituído pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, fatalmente, a partir de 1988 quando, na gestão de Alceu Collares, foi criada a Secretaria Municipal da Cultura, a tarefa caiu no colo do titular da pasta e, consequentemente, coube ao Coordenador de Artes Cênicas a responsabilidade por cumprir anualmente o decreto-lei municipal n° 5.876.

A função foi sendo desincumbida sempre enfrentando as dificuldades costumeiras, mas às vezes com brilho e sucesso, às vezes apenas burocraticamente para cumprir a lei, e às vezes com descaso e aparente desorganização. Sendo que em 2017, se não me falha a memória, chegou-se ao desplante de não haver uma cerimônia de entrega. Os troféus foram colocados sobre uma mesa onde cada artista “premiado” podia pegar o seu, sem pompa, sem distinção nenhuma.

Os grupos, com toda razão, vieram a público lançando um manifesto de repúdio nas redes sociais. Notificaram e concederam entrevistas ao veículo de comunicação mais importante do estado, a Zero Hora, hoje autodenominada GZH, que até o momento, já lançou duas matérias sobre o assunto. Ambas as matérias são assinadas por Carlos Redel, (que insiste em chamar a premiação de Prêmio Açorianos de Teatro Adulto, como se houvesse um Açorianos Infantil.)

Mas, enfim. Em seus textos Redel abre espaço para denunciar e comentar o fato com a participação dos diretores dos espetáculos prejudicados e com a manifestação do atual Coordenador de Artes Cênicas, o diretor Jésse Oliveira.

Segundo a primeira matéria de GZH “quatro grupos de teatro receberam um e-mail da Coordenação de Artes Cênicas, (órgão da SMC, que agora se chama SMCEC, pois adicionou a si própria o adendo Economia Criativa) detalhando que as suas peças haviam sido desclassificadas” porque a comissão julgadora não assistiu aos espetáculos.

Primeira questão: foram comunicados por e-mail? Não mereciam um contato mais pessoal?

Segunda questão: como assim “as peças foram desclassificadas”? Os jurados é que não compareceram e os grupos é que são desclassificados?

A matéria da GZH caiu como uma bomba na classe teatral. Diversos artistas se manifestaram em grupos de whatsapp. Posts no Facebook e Instagram. Postagens no Twitter. A maioria dos comentários e posicionamentos são indignados e, obviamente, favoráveis aos grupos. Discutia-se omissões e atitudes.

No caldeirão das responsabilidades, me parece que os principais ingredientes são mesmo a CAC, a SMSEC e a PMPA, que, afinal de contas, são os donos da bola e das camisetas. São responsáveis por organizar a “mais importante distinção das artes cênicas” de acordo com o próprio site da Prefeitura. Também é bom lembrar que as últimas gestões da Prefeitura são responsáveis pelo descaso, desmonte e privatização do setor cultural, bem como pelo enfraquecimento e sucessivos cortes de verbas da SMCEC e CAC.

Mas, não dá para excluir a responsabilidade do SATED e dos jurados. E, mesmo que indiretamente, não dá pra livrar a cara da classe teatral como um todo. Todos nós temos que assumir o ônus da situação extrema que acontece agora. Todos nós permitimos que o Açorianos chegasse a atual sinuca de bico e muitas vezes, com o nosso silêncio benevolente, admitimos que o prêmio fosse perdendo sua importância, relevância e credibilidade ao longo dos últimos anos.

A CAC (e o seu atual gestor, o diretor Jessé Oliveira) é a responsável direta pela organização e funcionamento da premiação, desde o lançamento do edital até a realização do evento de entrega dos troféus. Isso quer dizer que a CAC tem responsabilidade por todo o processo. Não pode, simplesmente, entregar a tarefa nas mãos dos jurados. É óbvio que deve contratar, fiscalizar, controlar, cobrar dos jurados a sua presença nos espetáculos inscritos, promover reuniões e presidir as discussões do início até que se complete a operação.

O SATED, que aparece como entidade que indicou nomes de jurados, mas não somente por isso, teria a obrigação de acompanhar a premiação maior da categoria que justifica a sua própria existência. O SATED também tem que se responsabilizar por conferir e atestar a lisura do processo, tem que acompanhar de perto os acontecimentos e lutar para dar cada vez mais significância, valor e expressividade ao prêmio máximo do Teatro. E diante da situação atual não pode se omitir.

A Comissão de Jurados do Prêmio Açorianos emitiu uma nota oficial na qual coloca a culpa na CAC, na pandemia, no Edital, no parco cachê oferecido, nas poucas apresentações, na conjunção de situações, etc. Em momento algum se desculpa com os grupos nem assume a ausência de seus membros nos espetáculos “desclassificados”.

Somente agora, depois do leite derramado, preferem, arrogantemente, oferecer a identificação de “vários pontos que trazemos como uma crítica construtiva”. Elencam tardiamente10 providências, lavam as mãos e passam a bola para a CAC.

A atriz e diretora Juliana Barros, que faz parte da Comissão Julgadora do Prêmio Tibicuera de Teatro, postou sua posição num grupo de whatsapp: “acho que é um dever, um compromisso assumido, dos jurados assistir a 100% dos espetáculos. Ninguém é "obrigado" a ser jurado. Aceita quem pode e quer!”. Concordo cem por cento com a opinião dela. Aos jurados não cabe desculpas esfarrapadas. Cabe assistir aos espetáculos, acompanhar o processo, cobrar atitudes internas e da CAC com a intenção de conferir dignidade e valor à premiação.

Na segunda matéria da GZH sobre o assunto, Carlos Redel relata que aconteceu uma reunião entre a CAC e os grupos prejudicados. Jessé Oliveira assumiu a bronca, pediu desculpas aos grupos pelo ocorrido e tentou tapar o incêndio com os precários panos que tinha a sua disposição. Tarde demais. Não houve acordo e, com toda razão, os grupos vão pedir a impugnação do Edital que rege o Prêmio Açorianos de Teatro/2022.

Encerra-se aí o imbróglio?

Claro que não.

Além da anulação do Edital e cancelamento da premiação, os grupos, mais uma vez com toda razão, ameaçam entrar com um processo por danos morais e prejuízos financeiros que julgam “irreparáveis”. 

Além disso, percebo que restam alguns aspectos que devem ser considerados.

A SMCEC, capitaneada atualmente pelo Sr. Gunter Axt, não vai se manifestar em relação ao acontecido? Vai fazer de conta que não é ela a responsável direta pela atual situação? Vai se pronunciar? Já se pronunciou?

O SATED/RS marcou presença na reunião referida acima? O Sindicato dos Artistas e Técnicos (que são justamente aqueles que são indicados e premiados no Açorianos) já se pronunciou oficialmente a respeito do assunto? Olhei no site e não achei nenhuma palavra. O SATED/RS vai fazer de conta que não é com ele? Ou vai se posicionar diante de um problema tão importante que afeta toda a classe teatral?   

Como ficam os outros grupos? Os grupos que foram “classificados” e que investiram tempo, trabalho e dinheiro para realizar as apresentações obrigatórias para participar da premiação? Devem exigir o ressarcimento do capital investido em suas produções? Será que aceitarão resignadamente a anulação de suas indicações que já foram extraoficialmente divulgadas?

Como ficam os artistas e técnicos que receberam com entusiasmo suas indicações e que veem agora frustradas suas expectativas em relação ao prêmio? Seus sentimentos pessoais são levados em consideração pela CAC, pelo SATED, pela Comissão Julgadora? Quem paga pelos aspectos subjetivos causados?

O Prêmio Açorianos de Teatro tem 45 anos de existência, trata-se da maior e mais importante premiação da categoria no estado do Rio Grande do Sul. É utilizado com destaque em todos os portfólios de todos os grupos, artistas e técnicos que tiveram a honra, o prazer e o orgulho de recebe-lo. A falta de seriedade, de respeito, de profissionalismo afeta a todos nós. Desprestigiar o Açorianos é desprestigiar o Teatro. É colaborar com o desmantelamento da Cultura. É ofender a toda categoria teatral.

Pra encerrar, volto a citar a colega Juliana Barros:

“É isso que eu penso, não dá pra ficar passando o pano.”

* Ator e diretor

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko