Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Superbactérias são uma oportunidade de negócio, critica médico italiano

Defensor da Slow Medicine, Marco Bobbio diz que a medicina convencional atende à lógica do mercado

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em entrevista do BdF RS, Bobbio alerta: É preciso fazer as pessoas compreenderem que medicina demais não é medicina melhor e que é necessário usar bem os recursos que temos" - Reprodução Youtube

A primeira observação que o cardiologista Marco Bobbio faz sobre a Slow Medicine é que ela não pode ser confundida com uma medicina “lenta”. A segunda é que não se trata de uma medicina alternativa. Ela usa todos os recursos médicos disponíveis porém com mais cuidado, mais atenção e respeitando e ouvindo o paciente. O que não implica que, sendo necessário, deixe de agir prontamente.

Filho do filósofo Norberto Bobbio, Marco é um dos principais nomes no mundo da Slow Medicine ou Medicina Sem Pressa, surgida na Itália em 2011. É um movimento que está para a medicina convencional como a proposta de Slow Food está para a hegemônica Fast Food.

Com 10 livros editados, dois deles traduzidos para o português - O doente imaginado (Einaudi, 2010) e Medicina demais (Einaudi 2017) – ele veio ao Brasil em promoção do Laboratório de Políticas Públicas e Sociais (Lappus) para uma série de palestras. Entre elas a conferência internacional “Os Paradoxos da Saúde e a Formação Humana”, realizada na Universidade de Passo Fundo (UPF).

Pós-graduado em Estatísticas Médicas e pesquisador do Cedars-Sinai, do Centro Médico de Los Angeles, Bobbio comandou o programa de transplantes de coração em Turim. Hoje, dedica-se a divulgar e debater internacionalmente a Slow Medicine.

Neste encontro com Brasil de Fato RS, Bobbio enfatiza que, se existem situações em que o médico deve agir prontamente, há outras em que é possível aguardar e entender melhor o mal que aflige o paciente. Também acentua que a prescrição precipitada de medicamentos, exames ou cirurgias mais prejudica do que favorece o doente. E lembra que, atrás de tudo, estão os poderosos interesses das grandes farmacêuticas, dos setores de venda de serviços e equipamentos médicos, clínicos ou hospitalares. Ou, como sintetiza, o mercado. 

Confira a entrevista na integra:

Brasil de fato RS - O que é Slow Medicine?

Marco Bobbio – É um movimento de opinião fundado em 2011, em Turim, na Itália, por um grupo em contraposição à Fast Medicine, que não leva em conta as necessidades e exigências dos pacientes e está condicionada à tecnologia. Uma vez desenvolvida uma tecnologia, depois se procura os pacientes ou consumidores para usar a mesma tecnologia. Em vez de se partir da doença, parte-se da tecnologia. É uma lógica econômica. A base da tecnologia é transformar o doente em consumidor. Para vender exames, medicamentos e serviços.

A Slow Medicine faz tudo aquilo que necessita o paciente mas não exagera

BdF RS – A Slow Medicine exige que o médico saiba mais sobre seu paciente, enquanto a medicina tradicional entrega essa tarefa para os laboratórios...

Bobbio – A Slow Medicine é uma medicina sóbria, equilibrada, respeitosa e justa. É como o movimento Slow Food, que preconiza uma alimentação boa, limpa e justa. Faz tudo aquilo que necessita o paciente mas não exagera. Fazer muito não significa fazer melhor. Leva em conta os desejos, esperanças e a vontade do paciente. Necessita-se fazer todo o necessário mas aquilo que se faz de forma demasiada é inútil e danoso. 


"A Slow Medicine é uma medicina sóbria, equilibrada, respeitosa e justa" / Foto: Saraí Brixner

BdF RS – No Brasil ou no Terceiro Mundo teria algo diferente que a Slow Medicine poderia oferecer ao paciente?

Bobbio – É a mesma coisa. Trata-se de curar melhor. Utilizar melhor a ciência médica. Recuperar a relação entre doente e médico. Não é uma medicina alternativa. Vale para crianças, homens, mulheres, minorias. 

BdF RS – No Brasil, os pacientes muitas vezes se queixam da rapidez do atendimento médico, que pode se resumir a cinco minutos. É algo que confronta a ideia da Slow Medicine que envolve um diálogo, um entendimento...

Bobbio – É igual em todo o mundo. Se tens pouco tempo é muito fácil e rápido prescrever um remédio, um exame, uma radiografia, que talvez o paciente não precisasse tomar ou fazer. Mas cria mercado. O paciente vai comprar o remédio, vai recorrer ao serviço indicado. A Slow Medicine é contra prescrever tanto quando não é necessário.

Os médicos são formados para curar com drogas. Não pensam que a doença é parte do mundo

BdF RS – Não sei se deu para você perceber mas o Brasil deve ser um dos países do mundo com maior quantidade de farmácias e que tem um culto à automedicação. Será bem complicado afirmar a Slow Medicine em um país assim...

Bobbio – Aqui se diz que em cada esquina tem uma farmácia. Ontem, vi três em quatro esquinas. No mundo também está assim. É um lugar comum que é difícil mudar. Hoje se pensa que todos os problemas se resolvem com medicamentos. 

BdF RS – Às vezes, o problema do paciente é mais do que aquilo que está no exame. A razão do seu desconforto ou doença pode ter origem no relacionamento familiar, na relação com o meio ambiente ...

Bobbio – Os médicos são formados para curar com drogas. Não pensam que a doença é parte do mundo. Pode estar no ambiente, na família, na casa, no desemprego, no salário. São determinantes sociais de saúde que estão no entorno do indivíduo. Tudo isso que rodeia o doente não é ensinado na universidade. Como se tomar remédio resolvesse o problema da desocupação, na ausência de saneamento básico...

Se quem toma aspirina é uma mulher de 20 anos sem doença cardíaca, a aspirina é um dano

BdF RS – O uso excessivo de medicamentos pode causar doenças. O uso excessivo de antibióticos, por exemplo, pode ajudar a criar superbactérias...

Bobbio – Escrevi um livro, "Medicina demais", que explica que demasiada medicina faz mal. Mostro que o meu país, a Itália, e a Grécia são aqueles onde mais se consome antibióticos. Sem motivos epidemiológicos. E se formos ver quais os países onde há mais bactérias resistentes aos antibióticos veremos que são a Itália e a Grécia.

Todo medicamento tem efeito secundário. Se tomas um remédio que é indispensável, os aspectos secundários não são importantes. Mas se tomas um remédio dispensável, os efeitos secundários passam a ser importantes.

Vejamos um exemplo: a aspirina é importante para prevenir doenças cardíacas. Se quem toma a aspirina é um homem de 60 anos ou mais, fumante, com hipertensão e histórico familiar de problemas de coração ou que já tenha tido um infarto, a aspirina é muito importante. Reduz o risco de um segundo infarto. Mas se quem toma a aspirina é uma mulher de 20 anos sem doença cardíaca, a aspirina é um dano. Vai causar doenças de estômago, úlcera, hemorragia e o prejuízo será maior do que a vantagem. 

A lógica do mercado é usar muito antibiótico para haver bactérias resistentes

BdF RS – Podemos imaginar um futuro onde a medicina não consiga dar uma resposta a essas superbactérias cujo surgimento foi provocado pelo uso excessivo de antibióticos? Ou isso será uma maneira da indústria farmacêutica criar um superantibiótico para enfrentar uma superbactéria e ganhar ainda mais dinheiro? 

Bobbio – Sim. A lógica do mercado é usar muito antibiótico para haver bactérias resistentes e então inventar uma supermedicina para combatê-las. Nossa lógica é usar o antibiótico somente quando necessário.

BdF RS – As superbactérias são uma oportunidade de negócio?

Bobbio – É uma grande oportunidade de negócio. E de mais desigualdade. Somente os países ricos e as pessoas ricas nos países pobres poderão comprar o superantibiótico. Então, os pobres morrerão por não poderem comprar o superantibiótico.

BdF RS – Além dos médicos, a Slow Medicine pode ser também praticada por outros grupos que trabalham com saúde?

Bobbio – Sim. Enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos podem usá-la. Um cirurgião pode querer operar todo paciente para ganhar dinheiro. Mas também pode entender que este paciente necessita de cirurgia mas aquele não. Pode praticar uma medicina menos agressiva.


"Há doenças em que se deve intervir imediatamente. São doenças diante das quais não se pode esperar. Mas há doenças que se autocuram" / Foto: Saraí Brixner

BdF RS – A Slow Medicine poderia ser também uma alternativa ao alcance das pessoas que moram na periferia?

Bobbio – Sim. Poderia ser uma proposta interessante para o SUS. A Fast Medicine desperdiça 30% de tudo quanto investe. As pessoas desperdiçam seu pouco dinheiro em uma medicina que não melhora sua saúde.

Para a indústria farmacêutica, de próteses, as clínicas e os serviços em geral é interessante medicina demais

BdF Rs – Assim, não se deveria pensar, além dos médicos e agentes de saúde, também na formação de grupos sociais, dos mais pobres, que usam tanto as farmácias e muitas vezes não estão doentes? 

Bobbio – É preciso fazer as pessoas compreenderem que medicina demais não é medicina melhor e que é necessário usar bem os recursos que temos.

BdF RS – E as faculdades de medicina como acolhem a Slow Medicine?

Bobbio – Não acolhem (risos). Nem na Itália, nos Estados Unidos, no Brasil, na China, no Congo... Para a indústria farmacêutica, a indústria de próteses, as clínicas, os serviços em geral é interessante medicina demais. E é muito difícil mudar esse modo de pensar. 

BdF RS – Se você tivesse oportunidade, o que diria para uma pessoa que tem menos conhecimento disso tudo, para aquele morador na periferia das cidades ou para aquele agricultor que vive lá no fundo do campo?

Bobbio – Eu diria simplesmente que nem todo distúrbio de saúde se resolve com medicamento. Muitos se resolvem por si mesmos. Se alguém tem uma doença, não precisa comprar um remédio imediatamente. Se possível, pode-se esperar.

Dou um exemplo: minha esposa se queixava de uma dor nas costas, não podia caminhar e sentia necessidade de passar o dia na cama. Fomos ao hospital para fazer uma ressonância. O cirurgião disse que se tratava de hérnia de disco e que era preciso operar. Mandou baixar para fazer a cirurgia em três dias. Fiquei em dúvida e falei com um amigo ortopedista. Ele me respondeu que, se não houvesse distúrbio de sensibilidade, se poderia esperar. Voltamos para casa, esperamos dois dias e na manhã seguinte ela me disse “Tive uma noite horrível”. Ao meio dia, falou “Estou um pouco melhor”. À tarde, voltou a caminhar. Isso aconteceu em junho e, em setembro, viajamos ao México. Foram 12 horas de avião. Sem problema algum.

Há doenças em que se deve intervir imediatamente. São doenças diante das quais não se pode esperar. Mas há doenças que se autocuram. No caso, a cirurgia seria uma intervenção inútil. 

* Participou Saraí Brixner


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Edição: Marcelo Ferreira