Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

“A sociedade só enfrenta aquilo que conhece e, hoje, ela desconhece a AIDS” 

Convivendo há 30 anos com o vírus HIV, Carlos Duarte diz que a doença foi esquecida porque hoje só mata os mais pobres

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Temos um problema sério de falta de informação sobre o acesso à atenção básica e isso leva à questão da infecção pelo HIV" - Foto: Arquivo Pessoal

“Tem tratamento para AIDS? Tem. Tem cura? Não. É possível se viver com AIDS? É possível, não é bom viver com AIDS. O preconceito e a discriminação estão muito grandes e o acesso ao serviço de saúde está muito pior”, diz Carlos Duarte, membro da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA). Para ele, a epidemia no Rio Grande do Sul é “generalizada”.  Dados do Ministério da Saúde referentes ao Dia Mundial de Combate à AIDS (1º de dezembro) corroboram sua afirmação. Desde o registro do primeiro caso até o momento, foram identificados 1.088.536 casos de AIDS no Brasil. Nos últimos cinco anos, o país assinala, anualmente, a média de 36,4 mil novos casos.
      
Em 2021, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará e Rio Grande do Sul apresentaram as maiores taxas de detecção. O líder, Amazonas, com 39,7 casos por 100 mil habitantes. O quinto colocado, o Rio Grande do Sul, com 24,3 episódios por 100 mil. O estado também segue com as maiores taxas de detecção de HIV em gestantes, apresentando um coeficiente quase três vezes superior à média nacional e, ainda, o maior coeficiente de mortalidade, com 1,8 vezes acima da média brasileira.

Para Duarte, também integrante do Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS, que há três décadas atua no combate à doença, esse quadro é resultante do desmonte do serviço de atendimento. Convivendo com o vírus nos últimos 30 anos, o ativista pontua que receber o diagnóstico ainda é uma forma de encarar como uma sentença de morte, apesar de não ser como era no fim do século passado. “Tem uma pessoa que disse: 'É o fim de um sonho'”. Tu nunca mais vais ser o mesmo. Aquilo bloqueia várias questões até se conseguir reverter ou ter apoio para entender que a coisa não é assim tão drástica como era. O inconsciente coletivo continua te mostrando o que era antes."

Abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Em 1980, em São Paulo, foi registrado o primeiro caso de HIV no Brasil. Há pouco mais de 30 anos convives com o vírus. Como avalias o quadro da AIDS nessas quatro décadas no país?

Carlos Duarte - Muita coisa podemos dizer que melhorou, mas outras permanecem iguais. Se pensarmos que, lá no início, quando se tinha o diagnóstico de HIV (pensava-se) que “já era”, que pressupunha uma morte rápida, hoje isso não acontece dessa forma em função dos avanços da medicina. 

Mas também, lá nos anos 1980 e 1990, falava-se muito da morte civil. Quando a pessoa sabia que tinha o HIV e desenvolvia AIDS, era excluída da sociedade. A discriminação, o preconceito, também levavam a isso. E a pessoa tinha uma morte civil antes da morte física. Hoje, a morte física não acontece tão rápido, apesar de muita gente ainda morrer de AIDS no Brasil e no mundo. Mas a morte civil continua acontecendo. 

As pessoas até acreditam que nem existe mais AIDS no Brasil

BdFRS - Como que se dá esse preconceito e essa discriminação? 

Duarte - Se dá de várias formas, às vezes até um pouco disfarçada. Posso te dar um exemplo, bem prático, aqui em Porto Alegre. As pessoas que têm HIV, que têm AIDS, têm direito ao passe livre no ônibus. Tu fazes um cadastro, preenchendo determinadas situações de vulnerabilidade e tu tens direito ao passe livre. 

O que acontece? Essa pessoa normalmente está desempregada. Quando procura emprego, o empregador, pelo CPF, vê que ela tem um auxílio de deslocamento. E não contrata porque sabe que é HIV/AIDS. 

É uma forma dissimulada porque não se pode exigir exame de HIV como admissional - apesar de que, por exemplo, as Forças Armadas fazem o teste de HIV para (alguém) entrar no exército, o que é proibido. Quando se fica sabendo disso, entra-se na justiça e o caso é revertido. Mas os exames continuam sendo solicitados pelo exército. 

Fizemos várias pesquisas em relação a isso, e o que as pessoas mais reclamam é do estigma. O estigma relacionado ao viver com HIV/AIDS. 


1º de dezembro é o Dia Mundial de Luta Contra a AIDS / Foto: Agência Brasil

BdFRS - E como superar esse estigma? 

Duarte - Isto vem da educação, da informação e, no Brasil, não existe nem educação, nem informação em relação a HIV/AIDS. Não existe campanha de informação. As pessoas até acreditam que nem existe mais AIDS no Brasil. Porque não é falado. A juventude que está aí é que mais se infecta. É proibido falar sobre sexo e a AIDS continua tendo como principal forma de transmissão a via sexual. 

BdFRS - Como foi a tua reação quando pegastes o diagnóstico?

Duarte - Quando eu tive o diagnóstico há 30 anos era absolutamente diferente. Não havia nem medicação. Mas hoje, quando entrevistamos pessoas nos serviços de saúde, elas continuam dizendo que receber o diagnóstico é o primeiro impacto negativo. Receber o diagnóstico ainda é uma forma de encarar como uma sentença de morte, apesar de não ser mais assim. Tem uma pessoa que disse isso: “É o fim de um sonho”. Tu nunca mais vais ser o mesmo. Bloqueia várias questões até se conseguir reverter ou ter apoio para entender que a coisa não é assim tão drástica. 

Como não temos nenhum serviço, as pessoas recebem esse diagnóstico muitas vezes já doentes. Antes tinha o apoio da sociedade civil em vários serviços, um apoio psicossocial, para enfrentar esse primeiro momento. Até os serviços de saúde tinham psicólogos que faziam esse atendimento pós-resultado. Não existe mais isso dentro do serviço de saúde. Tu simplesmente vais lá, fazes o exame, às vezes até na rua, em um ônibus, vê o resultado positivo e vai para casa resolver aquilo sozinho. 

Temos altos níveis de gestantes com HIV

BdFRS - No boletim do ano passado do Ministério da Saúde, Porto Alegre aparecia como a Capital com a maior taxa de mortalidade por AIDS no Brasil e também com a maior taxa entre as gestantes. O que explica isso? 

Duarte - Está sendo feita uma pesquisa chamada Pesquisa de Conhecimento, Atitudes e Práticas (PCAP) em relação a HIV/AIDS (a última pesquisa data de 2011). A gente solicita essa pesquisa há mais de 10 anos e agora está sendo feita. Quando vai se encerrar não faço a mínima ideia. Era uma pesquisa para ser feita pelo estado, mas quem está fazendo é o hospital Moinhos de Vento através de um convênio. 

Temos um problema sério de falta de informação sobre o acesso à atenção básica e isso leva à questão da infecção pelo HIV. No caso das gestantes, no exame pré-natal deveria se fazer o exame de HIV. Se temos maior taxa de transmissão vertical é porque não está havendo a testagem na hora que deveria ser feita. Só é feita na hora do parto.  

Hoje, a Atenção Básica em Porto Alegre funciona sob demanda, como se fosse um pronto-socorro. Se a pessoa está doente vai até o serviço. Não existe nenhuma forma de busca, ou de informação, ou de prevenção. Não é por demanda que se enfrenta doenças sociais como a AIDS. 

BdFRS - Qual a situação atual das políticas de prevenção e tratamento da epidemia de HIV no Brasil, e no estado? 

Duarte - Prevenção não existe. Prevenção pressupõe informação e informação não existe. Tem a PREP (consiste no uso de medicamento anti-HIV de forma programada para evitar a infecção), que é a prevenção pré-exposição. Mas isso também não é de acesso universal. É para determinadas populações. Ou seja, para grupos de risco. 

Quando insistes em situações que o HIV/AIDS está ligado a grupos de risco - e por isso a PREP tem que ser feita junto a grupos de risco - queres dizer que algumas pessoas não têm risco. E aumentas o estigma em cima da população que se infecta. E isso prova, por exemplo, a falta de ação do estado. E pelo estado, não o Estado político, mas o estado de modo geral, a União, estados e municípios. 

Em Porto Alegre, temos confirmado que há mais de 10 anos temos uma epidemia generalizada, assim como no estado, e a gestão não assume isso. A gestão não trabalha em cima disso, porque vai ter que trabalhar junto a população, toda a população, trazendo a informação e tudo mais. E por isso temos altos níveis de gestantes com HIV.

O Ministério da Saúde acabou com o departamento de AIDS

BdFRS - Em 2020, produzimos uma reportagem onde as fontes ouvidas afirmaram que, da década de 1980 até o início de 2019, a AIDS foi tratada como política de Estado. Como ela foi tratada nos últimos quatro anos? 

Duarte - Nesses últimos quatro anos, tudo foi desmontado. E quando falamos em desmonte, não é só em nível federal. Todo mundo diz assim: porque o Ministério da Saúde (MS) fez isso, fez aquilo, desmontou isso e desmontou aquilo. Tudo que foi desmontado em nível federal, foi copiado e desmontado em nível estadual e municipal. Tudo isso foi feito aqui. 

Por exemplo: o MS reformou toda a estrutura do ministério. Acabou com o departamento de AIDS e criou um departamento de doenças crônicas transmissíveis. Colocou tudo junto, apagou o nome da AIDS do Ministério. Não existe mais um programa de enfrentamento a AIDS e sim um programa de enfrentamento a doenças transmissíveis. Ou seja, o que são doenças transmissíveis? É tudo: dengue, HIV, tuberculose... 

A Secretaria Estadual de Saúde/RS fez a mesma coisa. Não existe mais uma seção de DST/ AIDS e sim uma coisa que ninguém sabe exatamente o que é, porque está dentro do conceito geral de doenças transmissíveis. 

O município de Porto Alegre há muitos anos desmontou tudo. Mas nesses dois últimos anos está pior ainda. Não existe absolutamente nenhuma atenção a DST/AIDS, sífilis. E tudo isso são doenças sexualmente transmissíveis. Não temos nenhuma campanha junto à população. 

O que é dispensação de medicamento. As pessoas não têm uma atenção à saúde integral. Vão lá, buscam seu medicamento para HIV e voltam para casa, tomam seu remédio ou não tomam. Se tem adesão ou não ao tratamento isso não interessa mais aos governos. 

E sabemos que há pessoas que têm carga viral detectável que não conseguem aderir a medicação por várias razões. Não é só porque não queira tomar o remédio, mas por questões sociais, por estigma, por não ter o conhecimento. Deixam de tomar o remédio até por não ter comida, por não ter trabalho. Então, essas pessoas seguem transmitindo o HIV, o que gera várias consequências. É isso que a gente tem. 

Uma pesquisa que está sendo feita pela Unisinos, junto com o estado, que é a única ação que o governo faz, está demonstrando que as pessoas chegam no serviço com AIDS. Não estão nem sequer conseguindo fazer o exame de HIV no tempo oportuno para impedir que cheguem adoecidas nas emergências dos hospitais e não no serviço de saúde da atenção básica. Por isso temos uma mortalidade alta. Porque temos uma deficiência de serviço imensa. 

A AIDS virou uma doença com a cara do terceiro mundo e perdeu espaço na imprensa

BdFRS - A AIDS perdeu visibilidade nos meios de comunicação? 

Duarte - Não tenho a menor dúvida. Antes, a AIDS tinha visibilidade na imprensa. Tinha um público, uma predominância na classe A e B. Tínhamos pessoas que morriam com AIDS que tinham destaque na mídia. 

No momento que a AIDS se transformou numa doença com a cara do terceiro mundo, com a cara do Brasil, perdeu espaço na imprensa. Quem na sociedade se preocupa com as pessoas em situação de vulnerabilidade? Ninguém se preocupa com população em situação de rua, com as travestis, com as profissionais do sexo ou mesmo com a população mais pobre.

As pessoas que mais se infectam são as de renda mais baixa. E isso não interessa à imprensa e não interessa à sociedade. Está morrendo de AIDS e pronto. 

E essas pessoas têm uma preocupação muito maior do que a AIDS que é comer. A AIDS é uma coisa secundária até na vida delas, porque primeiro têm que trabalhar, mas se elas não conseguem trabalhar...

É um ciclo que vai se ampliando dentro dessa população, e cada vez menos interessa à mídia, ao Estado, às forças econômicas. 

Se interessasse, não teríamos uma epidemia generalizada no estado. Ou estaríamos combatendo essa epidemia generalizada de maneira efetiva. Tentando não esperar 10 anos para fazer uma pesquisa.

BdFRS - O que precisa ser aperfeiçoado nesse diálogo da AIDS? 

Duarte - Uma das coisas que levou o Brasil a ter uma ação efetiva em relação à AIDS nas décadas de 1990 e 2000 foi o envolvimento do Estado no processo. Um envolvimento com questões de direitos humanos e saúde pública. A sociedade cobrava e o Estado reagia a essa pressão. O que se vê desde 2012 mais ou menos, é um sufocamento da sociedade civil por parte do Estado até chegar num processo de criminalização da sociedade que se viu nesse último governo.

É crescente o descaso da gestão com a sociedade civil e com as ações de controle. Isso desmonta a resposta brasileira de enfrentamento à AIDS. Quando se exclui a parte que mais cobra, não se escuta mais, não se dá visibilidade, encerra-se o processo com a sociedade civil.

Por exemplo, o Conselho Municipal de Saúde (de Porto Alegre) foi destruído por uma lei aprovada na Câmara de Vereadores. Só não conseguiram efetivar o desmonte porque ganhamos na justiça. O município recorreu e perdeu na segunda instância. E o estado está fazendo a mesma coisa porque o ex-governador, Eduardo Leite, fez também um parecer pela PGE (Procuradoria Geral do Estado), dizendo que os conselhos não têm poder de definir políticas. E onde está a participação social? Está dentro dos conselhos de saúde. 

Faz parte do processo de desmonte da participação social que é quem pressiona o governo a tomar as decisões. E na questão da AIDS isso fica evidente porque o desmonte da sociedade civil é uma ação de governo. E se não conseguirmos retomar essa questão com ajuda da mídia para dar visibilidade às demandas, os governos não vão agir. E a AIDS vai continuar, assim como a tuberculose, como tantas outras doenças que estão aí.

AIDS? Achei que era coisa do tempo do Cazuza

BdFRS - Como avalias o comportamento social em relação à proteção das pessoas?

Duarte -  A sociedade só enfrenta aquilo que conhece e hoje ela desconhece a AIDS. Não sai na imprensa que a AIDS é uma doença generalizada em Porto Alegre para que as pessoas tenham que se preocupar novamente com a prevenção. Quando se falava na mídia e nas escolas, quando se tinha informação, a população mantinha a prevenção, tinha conhecimento. Se não sabes que estás em risco, tu ignoras e a própria covid-19 demonstra isso. 

No momento que se começou a falar, por exemplo, no Rio Grande do Sul, algo como “aqui está mais fraca”, a população foi relaxando e a covid disparou. Com a AIDS é a mesma coisa. 

Quando falas numa escola, as pessoas ainda te perguntam: “Mas existe AIDS ainda? Achei que era coisa do tempo do Cazuza”. E é mais ou menos assim que as pessoas veem a AIDS. 

A sociedade reage de acordo com o que tem de informação. Para muitos, AIDS é coisa do passado e, se é coisa do passado, eu não preciso me preocupar... 

BdFRS - Na matéria de 2020, tem uma frase tua que achei relevante. “Se vive com AIDS, se pode viver com AIDS, mas é muito bom viver sem ela.”

Duarte - Reli ontem a matéria e achei que ela está super atual. A falta de informação é muito pior hoje do que há dois anos atrás. Estamos involuindo, retrocedendo. 

BdFRS - Que mensagem gostarias de deixar.

Duarte - Tem tratamento pra AIDS? Tem. Tem cura? Não. É possível se viver com AIDS? É possível, não é bom viver com AIDS. O preconceito e a discriminação são muito grandes ainda e o acesso ao serviço de saúde piorou. 

O município de Porto Alegre há um ano atrás propôs o fim do passe livre para as pessoas com AIDS como propôs o fim do passe livre para quase todo mundo. E isso foi aprovado na Câmara. Com mobilização, conseguimos reverter a questão do HIV/AIDS porque sabíamos que, se as pessoas não tivessem passe livre para buscar seu remédio, não teriam acesso ao tratamento. 

Se pensarmos no contexto geral, está pior hoje viver com AIDS do que 10 anos atrás. O tratamento não mudou, continuamos usando os medicamentos. Mas não é só com medicamento que se enfrenta a AIDS. Se enfrenta com políticas públicas, qualidade de serviço de saúde e tudo o mais...


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Edição: Ayrton Centeno