Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

“Precisamos levar às pessoas que elas têm a possibilidade de obtenção de determinado direito”

Presidente da Adpergs, Mário Rheingantz, conversou com o BDFRS sobre o trabalho e os desafios da Defensoria Pública

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Defensor público Mário Rheingantz ressalta a importância da entidade e seus trababalhadores para a garantia do acesso aos direitos humanos - Foto: Clara Zarth

“A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”, reza a Constituição Federal de 1988, que ainda determina que o número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população. 

Uma realidade que na prática não acontece, como no caso do Rio Grande do Sul. Com uma população estimada em mais de 11 milhões de habitantes, o estado gaúcho tem cerca de 434 defensoras/defensores para atender todo o território. 

Apesar disso, com um contingente tão apertado de defensores e também de servidores e servidoras, a Defensoria Pública do RS conseguiu realizar, no ano de 2022, 2 milhões de atendimentos, de acordo com o relatório anual da entidade, apresentado à Assembleia Legislativa, nesta quinta-feira (15). 

O Brasil de Fato conversou com o presidente da Associação das Defensoras e dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (Adpergs), o defensor público Mário Rheingantz. Ele falou sobre a importância da Defensoria Pública na manutenção e acesso dos direitos humanos e do papel dos defensores e defensoras. “Estamos com a corda absolutamente esticada. Por isso há uma necessidade cada vez mais urgente de uma ampliação do investimento na Defensoria Pública do Estado”, ressalta. 

Mário Rheingantz é defensor público desde 2012, especialista e mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS. É professor de Direito Processual Penal na Escola Superior da Defensoria Pública e já foi Diretor Cultural e Diretor de Ensino da FESDEP (Fundação Escola Superior da Defensoria Pública). Na sua trajetória profissional, ele também se destaca por ter sido dirigente do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e Subdirigente do Núcleo de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul; conselheiro de Direitos Humanos do Conselho Estadual da Pessoa Idosa; além de representante da Defensoria Pública gaúcha no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Abaixo a entrevista completa: 

Brasil de Fato RS - Nesta quinta-feira foi divulgado o relatório anual, e mais uma vez, pelo segundo ano consecutivo, a Defensoria Pública bateu o seu recorde em número de atendimentos. A que tu atribuis isso?

Mário Rheingantz - Mais uma vez a Defensoria Pública tem um aumento significativo no número de atendimentos. E se formos pegar os dados dos três últimos relatórios anuais, você vai ver um crescimento exponencial no tamanho da população assistida pela Defensoria. 

Nesse ano chegamos a 2 milhões de atendimentos, no último ano era 1,6 milhão, e no ano anterior 1 milhão. Somando a esse período, temos um aumento de 45, depois 25%. Praticamente dobrou o número de atendimentos. Isso se deve, acreditamos, a diversos fatores. O principal deles é uma crise econômica e sanitária muito grande, decorrente de diversos fatores políticos, sociais, econômicos, e também em função da pandemia da covid. Ainda há outro fator, que é a aceleração da virtualização, um processo que já vinha acontecendo, mas que em função do distanciamento social, decorrido da pandemia, foi acelerado. 

Tudo isso fez com que, inicialmente, pessoas que não tinham a necessidade de buscar o serviço da Defensoria Pública passassem a necessitar, em função de perda de renda, ou até mesmo de alguma questão mais drástica em função da sua condição econômica. Assim como a ampliação do trabalho da instituição e a abertura de novas portas de atendimento, o que fez com que mais pessoas passassem a procurar, desreprimindo uma demanda que talvez não tivesse vindo se o atendimento continuasse apenas na forma presencial. 

Aumento da demanda não vem acompanhado de uma ampliação na estrutura

Isso, em alguma medida, nos orgulha, porque somos uma instituição que tem uma amplitude tanto regional quanto temática, o que faz com que boa parte da população gaúcha tenha assistência de alta qualidade da Defensoria. Mas ao mesmo tempo nos preocupa, porque a sobrecarga de trabalho está assolando, não apenas defensoras e defensores, quanto servidoras e servidores da instituição. 

Veja que falamos aqui de um período de dois anos. Nós praticamente dobramos o número de atendimentos, e diversas outras demandas também que estão distribuídas no relatório. Esse aumento da demanda não vem acompanhado de uma ampliação na estrutura. Seja física, decorrente das instalações, da estrutura tecnológica, seja da quantidade de pessoas que trabalham na instituição, defensoras, defensores, servidoras e servidores. 

Com isso estamos observando uma grande sobrecarga de trabalho, estamos com a corda absolutamente esticada. Por isso há uma necessidade cada vez mais urgente de uma ampliação do investimento na Defensoria Pública do Estado.


"As defensoras e os defensores atuam de forma muito responsável e com muita coragem, fiscalizando e lutando por um cumprimento digno das medidas socioeducativas" / Foto: Fabiana Reinholz

BdFRS - Como está atualmente a estrutura da Defensoria no Estado?

Mário - Hoje nós temos mais ou menos, 434 defensoras e defensores públicos. Temos 267 analistas processuais, são servidores de nível superior e 443 técnicos. Nesse somatório temos 700 servidores na instituição. É um número muito baixo para atender todo o estado, para fazer essa quantidade de atendimentos. 

Por exemplo, se formos observar o número de peticionamentos. São 1,6 milhão de peticionamentos no período de um ano, com essa estrutura tão pequena. Isso mostra que a quantidade per capita de trabalho está atingindo um nível avassalador. A virtualização traz um fenômeno também de aceleração do andamento processual. O próprio poder Judiciário tem uma estrutura muito mais ampla. Se formos observar, em termos orçamentários, por exemplo, o orçamento do poder Judiciário é 10 vezes maior que o da Defensoria Pública hoje, e tem uma estrutura de servidores muito maior. E a virtualização possibilita um aumento muito grande da eficiência no andamento processual. 

Aumentando a velocidade e eficiência, essas servidoras e servidores estão trabalhando com o andamento processual, em despachos, trabalhando dentro dos gabinetes. E, além disso, aquele trabalho de lançamento de processamento de dados que antes era feito pelos servidores do poder judiciário passa a ser feito pelas partes. E a parte que talvez seja a que mais demanda, ou que assiste quem mais demanda, é justamente a Defensoria Pública. 

Isso nos preocupa bastante, porque se seguirmos observando esse ritmo de crescimento de demanda sem o crescimento de estrutura física, de estrutura tecnológica, e de pessoal, nós podemos ter um problema sério. Inclusive de saúde laboral das defensoras e defensores, públicos em curto prazo. 

Uma instituição que foi construída a partir do trabalho associativo das pessoas que já faziam esse trabalho de assistência jurídica integral e gratuita, antes mesmo da criação da entidade

Nossa Associação completou 41 anos agora esse ano, a Defensoria Pública do RS completa 31, e mais uma vez somos uma instituição que tem um grau de maior confiança do povo gaúcho. As pessoas estão procurando também porque confiam. A qualidade, a dedicação, a entrega das defensoras e defensores públicos para o trabalho faz com que a população demande cada vez mais pela Defensoria. 

Esses 41 anos da associação e 31 da Defensoria Pública têm uma simbologia muito interessante. Porque é uma instituição que foi construída a partir do trabalho associativo das pessoas que já faziam assistência jurídica integral e gratuita, antes mesmo da criação da entidade. E que conceberam a partir dos mandamentos da própria constituição, participaram da construção da Constituinte de 1988, inserindo esse papel de acesso à Justiça e assistência jurídica integral e gratuita. Mas acima de tudo inserindo aquilo que hoje já é bastante consolidado, que é o papel da Defensoria Pública como expressão e instrumento do regime democrático e da defesa dos direitos humanos. Isso não está apenas no papel, acontece de fato. 

Há uma série de demandas coletivas que a Defensoria protagoniza. Como, por exemplo, o papel fundamental que tivemos na garantia do passe livre durante o processo eleitoral. Isso é se expressar no instrumento do regime democrático, isso é expressão da democracia. É ser instrumento capacitador, possibilitador de que as pessoas que não teriam condições de custear, ou que têm uma grande dificuldade de fazer escolhas entre custear o transporte no dia da votação e fazer outras escolhas existenciais, pudessem exercer o seu direito ao voto e sua cidadania. É o próprio exercício da democracia que foi garantido pela atuação da defensoria, como ocorre em diversas áreas. 

BdFRS - Tu estava falando da garantia dos direitos humanos, que é a missão da defensoria. Tivemos um período de quatro anos ou mais em que está cada vez mais difícil garantir os direitos humanos. Inclusive com a perseguição e morte de defensores/as de direitos humanos. Como que é conseguir cumprir essa missão em um cenário tão controverso? 

Mário - Acho que a história do Brasil, talvez a história da América Latina, mostra o tamanho da dificuldade de se buscar a afirmação, construção e efetivação da garantia de direitos humanos. Seja por questões históricas, culturais, por questões decorrentes de política internacional, enfim. 

Há uma série de elementos que fazem que o Brasil tenha um histórico, e quando eu digo um histórico não estou me referindo só a tempos passados, mas ao que caminha até os dias de hoje. E com uma constante, com períodos de maior ou menor intensidade de garantia, de ampliação ou redução de efetivação dos direitos humanos. Mas que demonstra que precisamos de uma estrutura, de uma política permanente de afirmação de defesa dos direitos humanos. 

Esse contexto favorece ou aponta a necessidade do fortalecimento, da afirmação de uma instituição pública, que tem um modelo público, com uma estrutura institucional e que garanta que haja profissionais que possam exercer essa missão de defender os direitos humanos. Com o mínimo de garantias nesse aspecto formal e institucional. Ou seja, uma instituição que possa justamente garantir esse modelo público. 

Precisamos de uma estrutura, de uma política permanente de afirmação de defesa dos direitos humanos

É óbvio, a defesa dos direitos humanos é um papel que deve ser exercido por toda a sociedade, por diversas instituições, pela sociedade civil, por instituições privadas também. Mas é importante que tenhamos uma instituição vocacionada, e a Defensoria Pública é uma instituição vocacionada para fazer esse trabalho, que muitas vezes demanda uma política permanente. Com uma estrutura que possibilite que o profissional tenha condições materiais de segurança, e estruturais para fazer essa defesa, mesmo assim é muito difícil. 

É fundamental que mantenhamos essa estrutura e que possamos ampliar a capacidade das defensoras e defensores públicos a atuarem também nessa esfera mais ampla de garantia de direitos humanos. Quando estamos atuando no acesso à Justiça e todas as suas perspectivas, seja na defesa criminal, direitos de família, garantindo um alimento a uma criança, o direito a pensão alimentícia. Tentando fazer uma composição familiar, buscando garantir o direito a um medicamento, um tratamento, uma cirurgia. Tentando evitar um cumprimento de uma pena de forma desumana, atuando na execução penal, buscando as garantias mínimas constitucionais na percepção penal, se está também fazendo a defesa dos direitos humanos em última análise. De forma mais ampla, mais direta, de forma imediata e não imediata, atuando de forma coletiva, seja a partir da construção e do apoio da exigência de políticas públicas que garantem os direitos humanos. Seja a partir da judicialização, que claro, deve ser sempre a última forma de se buscar, mas quando necessário não pode ser evitada.

Como já fizemos aqui inúmeras vezes, como por exemplo quando nós atuamos para evitar que pessoas ficassem presas em viaturas, ou até mesmo delegacias de polícia, mas especialmente em viaturas, em contêineres

O direito à moradia é um direito humano, um direito fundamental

BdFRS - A Defensoria também sempre teve um papel muito importante na questão da moradia. Sempre atuou fortemente junto aos movimentos sociais...

Mário - Sim, me parece que a instituição possui essa vocação, esse mandamento constitucional. Acima de tudo as instituições são constituídas por pessoas. Somos uma instituição dentro do sistema de Justiça, em alguma medida burocratizada, mas tentamos o máximo possível estar próximos da sociedade, próximos das demandas. Acho que viemos construindo uma relação muito importante, inclusive com uma série de movimentos sociais. 

O direito à moradia é um direito humano, um direito fundamental, que deve ser garantido a todas as pessoas. Existem uma série de formas diferentes de se estabelecer essa luta, assim como há uma série de reações que podem dificultar esse direito ou até mesmo impedir em alguma medida. 

E a Defensoria Pública atua em todas essas frentes, seja garantindo o direito à liberdade de manifestação, por exemplo, para que se exija de forma absolutamente legítima o direito à moradia para todas e todos. Seja atuando politicamente ou judicialmente para garantir o direito à moradia. E claro, se está pensando aqui na perspectiva coletiva, em ocupações, em movimentos sociais. Mas isso acontece também no individual. Muitas vezes quando falamos, por exemplo, da garantia do bem de família, o que que é essa garantia do direito ao bem de família na sua impenhorabilidade, para garantir o lar, aquele local onde as pessoas precisam ter o direito de habitar, de residir, as pessoas precisam morar em algum lugar. 

Também temos uma preocupação muito grande com as pessoas em situação de rua, com a garantia de direitos, como na inviolabilidade domiciliar a todas as pessoas. O que pode, aparentemente, na leitura rasa, parecer uma contradição. Mas que faz todo o sentido se formos pensar no direito a inviolabilidade domiciliar como um direito decorrente da intimidade. E da própria lógica de haver um direito à moradia. É uma série de perspectivas, de nuances nessa atuação, e nós temos por característica essa pluralidade de precisar atuar em diversas frentes de acordo com a adaptação que cada demanda merece. 


Entrega do 9º Prêmio de Jornalismo da Adpergs / Foto: Clara Zarth

BdFRS - A Defensoria também realiza habitualmente mutirões, como na Parada Livre com a mudança de registro do nome social das pessoas, atendimento sobre endividamento, ao idoso, mulheres, entre outros. Gostaria que tu falasse um pouco destas frentes de trabalho. 

Mário - Quando trabalhamos com essa perspectiva de garantia dos direitos humanos, a partir de várias perspectivas e vários olhares, mas sempre com uma raiz comum, chegamos naquilo que entendemos como os direitos fundamentais e existenciais. Por exemplo, a questão do direito à retificação do registro civil, à formalização do uso do nome social. Alguns anos atrás havia uma necessidade, inclusive, de ter uma análise judicialmente.

Nós fizemos um movimento muito forte, a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, para que se pudesse fazer a retificação do registro civil para adequação do gênero de forma extrajudicial. Isso foi feito a partir de articulação, de diálogo que fizemos com a própria Corregedoria Geral de Justiça, com as registradoras e registradores.

Começamos a obter esse direito de forma extrajudicial, sem necessidade de ajuizar. Hoje está bastante avançado. Temos até a possibilidade do registro não binário. Enfim, tivemos vários avanços a partir dessa perspectiva. 

Os mutirões são uma forma de levar ao conhecimento de mais pessoas seus direitos

O superendividamento também é um ponto central da atuação da Defensoria Pública, quando pensamos em direito, isso vem do direito do consumidor. Em uma perspectiva de que vivemos em um sistema capitalista e até em alguma medida caminhando no sentido de um neoliberalismo cada vez mais extremado, o superendividamento é algo que exclui das pessoas uma série de direitos fundamentais. Não é um fim em si mesmo, mas é um direito que vai possibilitar uma série de outros direitos. 

A construção dessa teoria passa muito pela atuação da Defensoria, com uma atuação acadêmica muito forte aqui da professora Cláudia Lima Marques e dos seus grupos de pesquisa que constroem essa teoria. Hoje, inclusive, em alguma medida essa base serviu para que se construísse uma legislação sobre o superendividamento. 

Sabemos que o direito abstrato, construído na legislação, precisa também ter aplicação concreta, então a Defensoria se preocupa muito com essa possibilidade de que se possa efetivamente aplicar toda a legislação que decorre dessa importante teoria que é construída. A partir de uma experiência prática se faz uma interlocução com a academia, com a pesquisa. Se a pesquisa é trabalhada de forma política, e se transforma, parte dela ao menos se transforma em legislação e em direito também, a partir da construção de precedentes judiciais. 

E aí a Defensoria leva esse direito construído por diversas fontes até as pessoas, para que elas possam efetivamente dele usufruir e retomar uma série de direitos fundamentais. Que só são possíveis a partir dessa limitação, por exemplo, daquilo que pode ser penhorado ou retido até mesmo na fonte em casos de quem tem dívidas que são descontadas no seu próprio salário ou aposentadoria, enfim. 

Os mutirões são uma forma de levar ao conhecimento de mais pessoas seus direitos. Em alguma medida nós precisamos cada vez mais levar até as pessoas o conhecimento de que elas têm a possibilidade de obtenção de determinado direito. Porque muitas vezes a Defensoria Pública está na comarca, está presente, mas para que ela seja garantida a pessoa precisa demandar. E para que a pessoa demande, ela precisa ter o conhecimento acerca do seu direito. 


"O direito à moradia é um direito humano, um direito fundamental, que deve ser garantido a todas as pessoas" / Foto: Reprodução Facebook Adpergs

BdFRS - A grande maioria da população nem sabe que tem direito, não conhece os direitos que tem...

Mário - Até por isso estamos realizando um projeto, há alguns anos, muito interessante de educação e direitos. Tem um escopo muito específico que é a presença de uma defensora, de um defensor público na escola, uma vez no ano, uma vez no semestre. Decorrente de parcerias em diversos municípios, seja escolas públicas, ou particulares, Para que seja levado às crianças e adolescentes o conhecimento de uma série de direitos, do funcionamento do Estado. Alguns conceitos básicos sobre democracia e cidadania, além de diversas campanhas de conscientização.

Os mutirões entram justamente nessa perspectiva. Além de você dar um atendimento especializado, há uma série de pessoas que podem procurar naquele dia, se leva também o conhecimento da existência daquele direito, para que se siga buscando o auxílio da Defensoria Pública para garantir esses direitos. 

A  formação da defensora, do defensor, vai muito além do conhecimento jurídico, ela precisa ter estrutura psicológica e capacidade de interação humana

BdFRS - Imagino que os defensores enfrentam no seu dia a dia algumas pautas bem pesadas, como da violência doméstica, feminicídios. Tivemos essa semana essa situação do homem que matou os quatro filhos, enfim. Situações muito complicadas que a Defensoria tem que lidar cotidianamente. Existe algum programa para acolher os defensores na questão da saúde mental? 

Mário - De fato as demandas são extremamente complexas. Talvez dentro do sistema de justiça, o trabalho da Defensoria seja o que mais se aproxime de quem trabalha com Serviço Social, de assistência social. É claro que muito disso é absorvido e quando há esse tipo de tragédia, o Ministério Público atua em várias pontas. Seja na defesa das pessoas que sofrem com diversos tipos de violência. Seja na defesa criminal, com as pessoas que são acusadas desse tipo de violência e que podem sofrer violência do Estado, que se materializa de forma mais incisiva dentro do nosso sistema com a prisão, um dos sistemas carcerários mais desumanos que nós temos no mundo. 

Por isso temos sempre essa preocupação de atuar em todas as pontas. E especialmente, em um primeiro momento, reconhecer que o direito não tem a capacidade de solucionar grande parte dos problemas. Por isso que parte da nossa atuação é justamente cobrar e contribuir para construção de políticas capazes de trazerem estruturas de prevenção, de construção de pontes adequadas para que o mínimo possível de violência ocorra. E isso impacta na saúde mental, assim como o excesso de trabalho. 

Nós temos profissionais extremamente preparadas, preparados, para lidar com essa situação. A formação da defensora, do defensor, vai muito além do conhecimento jurídico, ela precisa ter estrutura psicológica e capacidade de interação humana. Ao mesmo tempo exige uma grande sensibilidade, o que gera, em função da empatia que se tem, um sofrimento mental e físico também muito grande. Nós estamos desenvolvendo, aqui na associação, um trabalho pra identificar essas questões e buscar apoio no aspecto da saúde laboral das defensoras e defensores públicos. 

É necessário muita coragem, e para que possamos ter coragem, precisamos desse modelo público

BdFRS - Tu falastes da relação da Defensoria com outras áreas. Recentemente noticiamos a ação da Defensoria diante de relatos de agressões na FASE...

Mário - Quando falamos em execução penal e restrição de liberdade, estamos falando dos adultos, maiores de 18 anos. De fato uma importante atuação da Defensoria Pública também é em relação a defesa das crianças e dos adolescentes. Especialmente pensando no nível de vulnerabilidade que sofrem as adolescentes, os adolescentes internados, adolescentes em conflito com a lei.

Justamente uma das nossas atribuições é a fiscalização e atuação dentro das unidades de internação. As defensoras e os defensores atuam de forma muito responsável e com muita coragem, fiscalizando e lutando por um cumprimento digno das medidas socioeducativas, que foi o que aconteceu. 

Por isso, reafirmando, é necessário muita coragem, e para que possamos ter coragem, precisamos desse modelo público. Com essa estrutura que a Defensoria Pública possibilita, o modelo de defensoria pública do Brasil possibilita essa atuação, para que possamos, claro, não vamos exterminar com as violações, muito longe disso, mas ser um contraponto, um freio para medidas também que violem direitos humanos.

BdFRS - Nesta segunda-feira (12), a Adpergs realizou a entrega do 9º Prêmio de Jornalismo, assim como o 1º Prêmio ADPERGS de Direitos Humanos – Lélia Gonzalez. gostaria que falasse sobre eles. 

Mário - O 9º Prêmio de Jornalismo é uma forma de valorizar o jornalismo independente, o jornalismo humano e responsável, preocupado em levar a informação. E claro, promover o conhecimento daquilo que é o trabalho, muitas vezes silencioso, que a defensora e o defensor público fazem. Que pelos olhos de quem trabalha na comunicação acaba chegando e atingindo uma quantidade muito maior de pessoas e até mesmo mexendo com os sentimentos. 

Acho que o prêmio tem sido um sucesso nas últimas edições, com uma grande quantidade de matérias. O grande desafio sempre é fazer a avaliação desses trabalhos, porque são realmente matérias muito interessantes. Seja em função da riqueza da fonte, que é o trabalho da Defensoria Pública, das defensoras e defensores. Seja pela qualidade das nossas jornalistas, dos nossos jornalistas em construir e comunicar essas matérias. 

E o 1º Prêmio de Direitos Humanos é uma iniciativa dessa gestão. Vem justamente da ideia de promover e incentivar cada vez mais que haja práticas efetivas, inovadoras, e artigos também, trabalhos científicos, acadêmicos, que promovam direitos humanos. 

Esse ano houve a homenagem a Lélia Gonzalez, a temática escolhida foi a étnico-racial, foi uma escolha para a primeira edição. A Lélia é a precursora do conceito de interseccionalidade. Poderíamos trabalhar com outras questões que dialogassem com a questão étnico-racial. Mas entendemos que, no contexto atual, considerando as peculiaridades históricas do Brasil e especialmente aqui do RS, a temática étnico-racial merecia que o foco. Nos parece que ela é central e é transversal em relação a todas as outras questões de direitos humanos. 

Acho que foi um sucesso a primeira edição, foram muitas práticas extremamente interessantes e importantes com capacidade real de fazer transformação social, e diversos artigos também que realmente contribuíram e contribuem muito na construção da defesa dos direitos humanos aqui no RS e no Brasil. Queremos fazer mais. Quem sabe vai se tornar uma tradição tão forte, tão representativa, como já é o prêmio de jornalismo da nossa associação. 

Vídeo produzido pelo Brasil de Fato foi apresentado na abertura da entrega do 1º Prêmio de Direitos Humanos


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Edição: Marcelo Ferreira