Rio Grande do Sul

Coluna

Mulheres semente, bem mais do que mulheres somente

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Sônia Guajajara e Anielle Franco tomaram posse em cerimônia lotada, com presença de Lula e Dilma - Ricardo Stuckert
Não iremos nos render! Sem Anistia! Nunca mais, um outro golpe neste país

A posse de Sonia Guajajara e Anielle Franco, protelada na agenda governamental em decorrência do dia da infâmia, ocorreu nesta quarta-feira (11).

E foi grandiosa. Verdadeira continuidade daquele momento de alegria onde o povo brasileiro e a cachorrinha Resistência, subiram a rampa em companhia do presidente eleito e sua esposa. Indicava-se ali a recuperação do prumo de um país que avança em direção à sua reconstrução como nação soberana. Explicitava-se, ali, a decisão coletiva de um povo que se coloca como disposto a demolir o muro discriminatório que, ao longo de meio milênio, submeteu seus ancestrais a discriminações e práticas de racismo que negavam os próprios fundamentos da humanidade. O agravamento do caos, que se alargou ao longo do período de trevas da era Bolsonaro, parecia estar relegado às dores do passado, quando ocorreu aquilo que se viu no dia 8, que ainda reverberará por tempo indeterminado.

A descontinuidade imposta por aquele dia de transbordamento da infâmia, que separou no tempo a subida da rampa, pelo povo, e a dança de orixás sob os tambores de Xangô, após a posse das ministras dos povos ancestrais e da igualdade racial, também teve seu peso simbólico.

Ali estavam, de volta, os predadores, os não humanos, com sua fúria e a violência despropositadas, atacando com ganas de apagar da existência a aldeias, agrupamentos, acampamentos, festas, templos religiosos, casas e corpos de homens, mulheres e crianças, negras e indígenas. Deu para ver, em tantas gravações por eles mesmos expostas, a arrogância e idiotice destrambelhadas, a doença da loucura e sua energia ruim, os olhos, nos gritos, nas pauladas, na destruição do que poderia ser destruído.

Bobos alegres, leões de chácara, velhotes, madames e jovens de todos os tipos e estilos, correndo como baratas tontas, a serviço de interesses que (e isso resultará evidente no momento de seus depoimentos à justiça) não entendiam nem saberiam justificar. Pediam ditadura em nome da liberdade e por conta disso se deixaram comprometer com a invasão e a destruição de patrimônio nacional relacionado aos Três Poderes que sustentam a República democrática brasileira.

Assumiam sem saber, e o expressaram com alegria, amplo desprezo aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em todos seus níveis. Eram pessoas comuns, mas também militares, vereadores, deputados, servidores municipais, estaduais e federais, apoiando ou executando diretamente a depredação das sedes dos Três Poderes. Realizando e estimulando a destruição e o roubo de coisas tão dispares como vasos, quadros, janelas, computadores, revolveres, fotografias, e até uma porta de determinado gabinete do STF.

E tudo isso com fúria similar àquela usada por seus pares, contra a casa daquelas professoras de Curitiba e contra os indígenas, o indigenista e o jornalista europeu e mesmo crianças de todas as idades, no Vale do Javari. Ou, indo mais a fundo no tempo, assemelhada aos feitos daqueles que no passado chacinaram Padre Josimo, Chico Mendes e Irmã Doroty, que provocaram os massacres de Sem Terra na Curva do S, dos caboclos no Belo Monte e dos  negros em Palmares. Se repetia, no século XXI, na praça dos Três Poderes, em Brasília, num palco vazio (e por isso sem mortes), simulacro de desvarios historicamente perpetrado por paus mandados, em defesa dos interesses de mandantes, que ao verem frustrados seus intentos, trataram de lavar as mãos, fazendo de tudo para que todo o peso da lei recaia apenas sobre os tolos que assumiram a linha de frente.

E estes, os do presente, transcorridos apenas três dias daquele frenesi, já devem estar começando a duvidar do apreço que supunham merecer por parte daqueles poderosos, que os mimaram, adularam e instigaram a agir da forma tal. Possivelmente ainda não alcancem perceber que foram jogados inutilmente contra o movimento da história, mas com certeza já acordaram para o fato básico: estão abandonados. Não devem compreender que foram usados com má fé, posto que jamais poderiam ter sucesso, naquela correria de formigas direcionadas à destruição de móveis e adereços, em tarefa que pretenderia deter o ascenso de cidadãos secularmente excluídos, a espaços que lhes são devidos por direito, e que, ademais, acabavam de ser reconquistados em luta heroica e desigual, pelo voto livre e democrático.

Simples assim como “um manda, outro obedece”, os peões foram usados, e agora estão abandonados. Surpresos com isso, enquanto amargam a ausência de atitudes que justifiquem sua devoção àquele rei, sua Barbie, seus bispos e bispas, torres e cavalos, reclamam do banheiro e do rango servido aos presos comuns deste país. Vai piorar. Não terão de volta, para si, o conjunto de direitos humanos e a proteção social que pretendiam negar àqueles que avançam no projeto de reconstrução nacional que, neste dia 10 de janeiro, na posse das ministras Sonia Guajajara e Anielle Franco, revelou a dimensão do seu brilho e espiritualidade.

“Somos mulheres semente, não mulheres somente.” Com esta frase síntese, Sônia Guajajara pontificou que, neste projeto, o amor e o cuidado serão a base sólida sobre a qual se assentará o Brasil do futuro.

“Não iremos nos render! Sem Anistia! Nunca mais, um outro golpe neste país.”

São palavras finais daquelas mulheres semente que sabem, do fundo de seu ser: quando necessário, as mulheres se levantarão e, neste momento, homem algum ficará sentado.

Não passarão!

Era minha intenção finalizar este breve texto com o hino nacional cantado na língua do povo Tikuna, por Dijuena Tikuna, que está disponível na gravação da cerimônia de posse. Não tendo conseguido, vou de Elis Regina: Aquarela do Brasil. O que foi feito deverá (Saudade do Brasil).

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko