Rio Grande do Sul

Coluna

Na relação entre altura dos prédios e densidade populacional, tamanho não é documento

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"Não faz sentido usar o argumento de aumento da população mundial para incentivar a construção de prédios em Porto Alegre, já que a população da cidade está caindo" - Foto: Jefferson Bernardes/PMPA
Prefeitura de Porto Alegre e a sua base na Câmara estão aprovando todas as demandas das construtoras

Porto Alegre passa atualmente por um processo de revisão do seu Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA), o que já deveria ter acontecido há quatro anos. No entanto, desde a última revisão geral do PDDUA, em 2009, algumas mudanças foram aprovadas pela Câmara Municipal para regiões específicas, com um fatiamento da legislação urbanística em que se deixa de discutir a cidade como um todo para atender a interesses específicos.

As alterações recentes mais importantes foram as leis complementares nº 930, que institui o "Programa de Reabilitação do Centro Histórico", e nº 960, que institui o “Programa +4D de Regeneração Urbana do 4º Distrito”. Com vários pontos em comum, ambos programas tiveram como um dos itens mais polêmicos o fim da altura máxima para a construção de prédios.  O argumento principal apresentado pela Prefeitura é que essa mudança permitiria um maior adensamento populacional, o que traria vários benefícios à cidade. Por incrível que pareça, o argumento foi usado da mesma forma para os dois casos, mesmo que eles sejam completamente diferentes. Afinal, o Centro Histórico possui 16.047 hab/km² e o Quarto Distrito, apenas 4.685 hab/km².

O discurso foi repetido à exaustão, começando pelo prefeito Sebastião Melo: “Sempre defendi que a cidade deveria fazer processo de maior adensamento e menor extensão territorial. (...) Se adensar cidade, melhora transporte, tratamento de esgoto”. Na sessão em que foi votado o PL do Centro Histórico, o vereador Felipe Camozzato (Novo) também defendeu o adensamento: “Nós temos uma tradição no Brasil de ter cidades muito pouco densas. (...) E densidade populacional em zona urbana significa desenvolvimento, significa qualidade de vida, significa redução do custo de vida na cidade (...) conforme nós temos regiões mais adensadas na cidade, nós oportunizamos que o empreendedor de bairro, o dono do mercadinho, o dono da farmácia, o dono do boteco possa ter mais sucesso no seu negócio de bairro porque tem mais gente morando perto dele". Outro parlamentar que seguiu essa linha foi Ramiro Rosário (PSDB), que, em artigo de opinião publicado na Zero Hora, defendeu aumentar a altura dos prédios com o seguinte argumento: “O mundo acaba de bater a marca de 8 bilhões de habitantes. Em 2060, seremos 10 bilhões de moradores da Terra. Haverá o dobro do número atual de edifícios no planeta. Para chegar lá, há dois caminhos a seguir: construir para cima ou expandir de forma horizontal. Sou um entusiasta dos arranha-céus”.

Embora existam vantagens na construção de cidades com maior densidade populacional, esse tema tem sido tratado de forma oportunista e desonesta no debate porto-alegrense. Não faz sentido, por exemplo, usar o argumento de aumento da população mundial para incentivar a construção de prédios em Porto Alegre, já que a população da cidade está caindo nos últimos anos, reduzindo a demanda por moradia. O próprio secretário municipal de Planejamento e Assuntos Estratégicos, Cezar Schirmer, citou em uma entrevista que as placas de “aluga-se” e “vende-se” se proliferam há anos em Porto Alegre. Mas, por incrível que pareça, ele usa isso como argumento para construir mais imóveis. O que poderia ser feito é construir habitação de interesse social. Não para aumentar o número total de moradias, mas para substituir as atuais residências precárias. No entanto, não é isso que a Prefeitura está fazendo.

Outra falácia é igualar densidade demográfica com altura dos prédios, o que fica claro com os próprios exemplos citados pela administração municipal. Em uma apresentação divulgada sobre o “Programa de Reabilitação do Centro Histórico”, um dos modelos de alta densidade em que a Prefeitura diz se inspirar é o distrito de Eixample, em Barcelona, com 36 mil habitantes por km². Projetado em 1859 pelo engenheiro Ildefons Cerdà, o distrito possui regras urbanísticas muito diferentes daquelas propostas para o Centro Histórico de Porto Alegre. O Plano Cerdà permitia originalmente a construção de prédios com, no máximo, quatro andares. Essa regra foi flexibilizada algumas vezes, como mostra esse levantamento realizado por Isabela Sollero, e desde 1976 a altura máxima permitida é de apenas 20,75 metros, muito abaixo dos limites porto-alegrenses:

Ou seja, a própria Prefeitura de Porto Alegre sabe que densidade demográfica não é da altura máxima dos prédios. Aliás, de acordo com o IBGE, as maiores densidades do Brasil são encontradas em duas favelas: Paraisópolis, em São Paulo, com 45 mil hab/km² e Rocinha, no Rio de Janeiro, com 45 mil hab/km². Esses, definitivamente, não são locais caracterizados pela grande presença de arranha-céus.

Por outro lado, um dos exemplos que Ramiro Rosário citou em seu texto em defesa dos prédios altos foi o Cidade Nilo, empreendimento da Melnick em parceria com o Zaffari em frente à praça da Encol. Ele possui apartamentos de até 330 m2, com quatro vagas de garagem cada um, além de amplas áreas de lazer. Cada unidade custa mais de R$ 6 milhões de reais e o grande espaço ocupado por cada família (e por seus carros) faz com que a densidade desse tipo de empreendimento seja bem mais baixa do que nas vilas da cidade. Ou seja, a defesa nunca foi pela densidade. Mas a menção a projeto não surpreende, já que o maior doador da campanha eleitoral de Rosário em 2020 foi Milton Melnick, dono da construtora.

Em outras palavras, a defesa da cidade densa é falsa e baseada em argumentos que não se sustentam. A suposta densidade é apenas uma desculpa para defender um nicho do mercado imobiliário de prédios altos (e pouco densos) para pessoas ricas. Em alguns momentos eles nem disfarçam. Na entrevista já citada, Cezar Schirmer foi questionado sobre a questão da habitação popular. Sua resposta foi: “por óbvio, não adianta trazer um morador para o Centro que não possa pagar o condomínio”.

Outro sinal de que o adensamento se trata de um discurso vazio dos nossos governantes é a política que eles reivindicam para as áreas mais afastadas da cidade. Para defender o adensamento do Centro, Sebastião Melo reclamou que as capitais brasileiras “perderam o rumo quando espraiaram a cidade”. Já Ramiro Rosário disse que “Porto Alegre adotou uma medida de urbanismo, uma política habitacional equivocada ao longo das últimas décadas. A cidade se espraiou, fizemos loteamentos habitacionais no Extremo-Sul da cidade”. Mas menos de um mês após a aprovação do suposto adensamento do Centro Histórico, a mesma Câmara Municipal aprovou um projeto do executivo que autoriza a construção de condomínios de luxo na Ponta do Arado, uma área de 426 hectares no extremo sul da cidade. Talvez por mera coincidência, o dono do terreno foi um dos maiores doadores da campanha de Melo.

Ou seja, a Prefeitura de Porto Alegre e a sua base na Câmara estão aprovando todas as demandas das construtoras, independente delas significarem um adensamento ou um espraiamento da cidade. Os discursos a favor da densidade não se sustentam e são mudados a cada semana, para justificar o projeto discutido na ocasião. Foi assim nos últimos anos e tudo indica que a retórica oportunista continuará sendo regra durante a discussão do novo Plano Diretor.

* André Coutinho Augustin é Mestre em Economia e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles - Núcleo Porto Alegre

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira