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Carta a amigxs argentinxs

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"Na Argentina, pudemos acompanhar a violência institucional operando através das prisões de socorristas e mulheres mapuche" - Foto: Colectivo Manifiesto
Movimento feminista tem vocalizado a urgência de uma reforma do judiciário com perspectiva de gênero

* Lea la versión en español después del texto en portugués.

A escritora e intelectual brasileira Vilma Piedade criou o conceito de dororidade para conseguir abarcar a experiência de meninas e mulheres negras no reconhecimento do racismo estrutural e suas estratégias de enfrentamento, em direção a uma democracia feminista e antirracista. Empresto este conceito para dizer do lugar onde falo e me posiciono, na tentativa de encontrar significantes que deem conta do que temos passado, feministas e transfeministas de Abya Yala.

A barbárie patriarcal colonialista, como sabemos, necessita se apropriar de nossas lutas através dos códigos institucionais e, através deles, aniquilar conjuntamente a memória e seus símbolos de resistência, o pertencimento e os vínculos de toda ordem. Assim foi com a perseguição e prisão das socorristas em dezembro de 2022, invadindo a data que marcou os dois anos da lei que tornou legal o aborto em território argentino após anos de ativismo e ação direta que consolidaram a luta por justiça reprodutiva no país vizinho. Uma vez que o movimento feminista tem vocalizado a urgência de uma reforma do judiciário com perspectiva de gênero, evidenciando o papel estrutural desta instituição na manutenção das desigualdades sociais, a tentativa de silenciamento se configurou com a criminalização das práticas de acompanhamento nas situações onde o Estado se omite sem, no entanto, deixar de se apropriar dos nossos corpos.

No Brasil, temos assistido as contínuas violações dos nossos corpos-território, com espetacular crueldade sobre os corpos-territórios das infâncias. Enquanto, na Argentina, pudemos acompanhar a violência institucional operando através das prisões de socorristas e mulheres mapuche, no Brasil se tornavam públicas as imagens do genocídio Yanomami e do calvário sofrido por uma menina de 12 anos, estuprada e obrigada a gestar e parir pela segunda vez consecutiva. Ambos os casos foram denunciados nas cortes internacionais de direitos humanos e esperamos que recebam a atenção devida. Desde janeiro deste ano, tal como ocorreu com as manifestações chilenas de 2018, onde consignas tomaram as redes sociais e as ruas, a hashtag #SemAnistia se converteu no chamado popular que convoca as instituições nacionais e internacionais para os crimes que se sucederam no país durante a gestão genocida de Jair Bolsonaro, e cujo ethos persiste mesmo com a sua saída.

O relatório Yanomami sob ataque, que tem sido divulgado por lideranças indígenas e organizações, descreve e retrata o processo de invasão, destruição, aliciamento e exploração sexual de comunidades yanomami por milhares de garimpeiros que, segundo o ex-presidente, praticavam um hobby e uma “prática artesanal tradicional”. Impossibilitados de se alimentar pela contaminação dos rios com mercúrio, os povos dessa região adoeceram gravemente. Mulheres e crianças foram ofertadas como presas sexuais a garimpeiros em troca de alimentos e, segundo denúncias recentes, investiga-se o tráfico de crianças através de adoção ilegal e cerca de 30 meninas estão grávidas. O atual governo brasileiro está em busca destas crianças, para identificá-las e acolhê-las nos serviços e políticas públicas destinadas às vítimas de violência sexual.

No entanto, é impossível ignorar como tem se comportado o Estado brasileiro para casos como este, em que as crianças são as principais vítimas. Através de reportagens, soubemos, em 2020, que uma menina no estado do Piauí foi violada por seu tio aos 10 anos de idade, e não teve acesso ao aborto legal por conta da atuação de médicos e da própria ministra dos Direitos Humanos à época, Damares Alves, hoje eleita senadora. A criança foi obrigada a parir e criar o bebê, junto da família consanguínea. Novamente estuprada no mesmo contexto, a menina foi então acolhida em um abrigo em 2022 e, assim como sua família, novamente coagida a desistir do aborto, sob risco de vida. Tal situação teria levado a adolescente a uma tentativa de suicídio e, segundo a conselheira tutelar que a acompanha, estaria sob efeito de medicações que é obrigada a tomar sem, no entanto, receber informações sobre isso. “Aguentou da outra vez, aguenta agora um pouco mais”, teria escutado a jovem de uma médica que a atendeu.

Ainda sobre este caso, o que nos surpreendeu, para além de toda a tortura a que esta jovem está sendo submetida novamente, foi a conduta da juíza responsável, que designou um curador para o feto. Esta é uma manobra prevista pelo estatuto do nascituro, um projeto de lei que a bancada de apoio a Bolsonaro e Damares tentou aprovar à força, ao final de dezembro do ano passado, sem sucesso. O procedimento viola o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei federal vigente desde 1990 e construída no bojo da Constituição Federal de 1988, a primeira após os anos de ditadura cívico-militar no Brasil.

Tudo isso nos prova que, para o Judiciário e para a classe médica, há leis próprias e impostas à sociedade sem nenhum rito de legalidade, sendo o estatuto do nascituro a maior prova. Nós sabemos que é essa instituição que opera nos tribunais e nos hospitais, lugares onde nossos corpos são, com a autorização do Estado, sequestrados e violados. Segundo a Constituição Federal, estão assegurados os direitos a toda pessoa nascida viva no país. O que o estatuto do nascituro inaugura, sem surpresa, é o que já sabemos e combatemos: somos estupráveis desde que nascemos.

Em um mundo justo, abortos são necessários para a garantia da dignidade humana. É um direito nosso, não um ato privativo e exclusivo de uma categoria profissional. Quem ensinará isso a juízes e juízas, médicos e médicas?

Por um mundo justo, nos tenemos y nos necesitamos.

Com carinho e dor,

B.

* Benke Yelene é ativista por direitos humanos

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Capa do relatório Yanomami sob Ataque | Portada del informe Yanomami sob Ataque / Reprodução

Carta a lxs amigxs argentinxs

La escritora y intelectual brasileña Vilma Piedade creó el concepto de doloridad para poder  abarcar la experiencia de niñas y mujeres negras en el reconocimiento del racismo estructural y sus estrategias de enfrentamiento, hacia una democracia feminista y antirracista. Tomo prestada éste concepto para mostrar el lugar desde donde hablo y me posiciono, en un intento de encontrar significantes que den cuenta de lo que hemos vivido, feministas y transfeministas de Abya Yala.

La barbarie patriarcal colonialista, como sabemos, necesita apropiarse de nuestras luchas a través de códigos institucionales y, a través de ellos, aniquilar conjuntamente la memoria y sus símbolos de resistencia, pertenencia y vínculos de todo tipo. Así fue con la persecución y detención de socorristas en diciembre de 2022, invadiendo la fecha que marcaba los dos años de la ley que legalizó el aborto en territorio argentino tras años de activismo y acción directa que consolidaron la lucha por justicia reproductiva en el vecino país. Una vez que el movimiento feminista ha vocalizado la urgencia de una reforma del judiciario con perspectiva de género, destacando el rol estructural de esta institución en el mantenimiento de las desigualdades sociales, el intento de silenciamiento se configuró con la criminalización de las prácticas de acompañamiento en situaciones donde el Estado es omiso y, sin embargo, sin dejar de apropiarse de nuestros cuerpos.

En Brasil, hemos visto las continuas violaciones de nuestros cuerpos-territorios, con espectacular crueldad sobre los cuerpos-territorios de la infancia. Mientras en Argentina pudimos seguir la violencia institucional operando a través de las detenciones de socorristas y mujeres mapuche, en Brasil se hicieron públicas las imágenes del genocidio yanomami y el calvario sufrido por una niña de 12 años, violada y obligada a gestar y parir por segunda vez consecutiva. Ambos casos han sido denunciados en tribunales internacionales de derechos humanos y esperamos que reciban la debida atención. Desde enero de este año, tal como sucedió con las manifestaciones chilenas de 2018, donde las consignas estallaron  en las redes sociales y las calles, al hashtag #SemAnistia se ha convertido en el llamado popular que convoca a las instituciones nacionales e internacionales a los crímenes ocurridos en el país durante la gestión genocida de Jair Bolsonaro, y cuyo ethos persiste incluso con su partida.

El informe Yanomami sob ataque, que ha sido difundido por líderes y organizaciones indígenas, describe y retrata el proceso de invasión, destrucción, coerción y explotación sexual de las comunidades yanomami por parte de miles de exploradores de minería que, según el expresidente, practicaban un hobby y una “práctica artesanal tradicional”. Al no poder alimentarse debido a la contaminación de los ríos con mercurio, la gente de esa región se enfermó gravemente. Mujeres y niñas fueron ofrecidas como presas sexuales a los explotadores a cambio de alimentos y, según informes recientes, se investiga el tráfico de niños, niñas y niñes a través de adopciones ilegales y alrededor de 30 niñas están embarazadas. El actual gobierno brasileño está buscando a estas niñas, para identificarlas y acogerlas en los servicios y políticas públicas dirigidas a las víctimas de violencia sexual.

Sin embargo, es imposible ignorar cómo se ha comportado el Estado brasileño en casos como este, en los que les niñes son las principales víctimas. A través de informes, supimos, en 2020, que una niña en el estado de Piauí fue violada por su tío a la edad de 10 años, y no tuvo acceso a un aborto legal debido a la actuación de los médicos y la ministra de derechos humanos en la vez, Damares Alves, hoy electa senadora. La niña fue obligada a dar a luz y criar al bebé con la familia consanguínea. Violada nuevamente en el mismo contexto, la niña fue luego acogida en un albergue en 2022 y, al igual que su familia, nuevamente obligada a renunciar al aborto, bajo riesgo de vida. Tal situación habría llevado a la adolescente a un intento de suicidio y, según dijo la consejera de tutela que la acompaña, estaría bajo el efecto de medicamentos que se ve obligada a tomar sin, todavía, recibir información al respecto. “Ella aguantó la otra vez, aguanta un poco más ahora”, habría escuchado la joven de una médica que la atendió.

Aún en este caso, lo que nos sorprendió, además de toda la tortura a la que está siendo sometida nuevamente esta joven, fue la conducta de la jueza responsable, quien designó un tutor para el feto. Se trata de una maniobra prevista por el estatuto del no nacido, un proyecto de ley que la bancada de apoyo a Bolsonaro y Damares intentó aprobar por la fuerza, a fines de diciembre del año pasado, sin éxito. El procedimiento viola el Estatuto del Niño y del Adolescente, ley federal vigente desde 1990 y construida en el marco de la Constitución Federal de 1988, la primera después de los años de dictadura cívico-militar en Brasil.

Todo esto nos prueba que, para el Poder Judicial y para la clase médica, existen leyes propias e impuestas a la sociedad sin ningún rito de legalidad, siendo la condición del no nacido la prueba más grande. Sabemos que es esta institución la que opera en tribunales y hospitales, lugares donde nuestros cuerpos, con autorización del Estado, son secuestrados y violentados. De acuerdo con la Constitución Federal, se garantizan los derechos de toda persona nacida viva en el país. Lo que introduce el estatuto del no nacido, sin sorpresa, es lo que ya sabemos y peleamos contra: somos violables desde el nacimiento.

En un mundo justo, los abortos son necesarios para garantizar la dignidad humana. Es un derecho nuestro, no un acto privativo y exclusivo de una categoría profesional. ¿Quién enseñará esto a los jueces y juezas, médicos y médicas?

Por un mundo justo, nos tenemos y nos necesitamos.

Con cariño y dolor,

B.

* Benke Yelene es activista por los derechos humanos

** Este es un artículo de opinión. La opinión de la autora no expresa necesariamente la línea editorial del periodico Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira