Rio Grande do Sul

Coluna

No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco

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Colona sentada, de Portinari - 1935.
Colona sentada, de Portinari - 1935. - Reprodução/Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Coleção Mário de Andrade, São Paulo - SP.
Lutar por um mundo onde toda diferença seja respeitada! A nossa maior riqueza é a diversidade

O título é uma frase do livro “O Avesso da Pele”, escrito pelo brilhante carioca radicado em Porto Alegre, Jeferson Tenório. Com uma narrativa sensível e extremamente dolorida, pude mergulhar na estrutura racista na qual nossa sociedade está afogada. Partindo do lugar de privilégio que ocupo na estrutura social - já que sou um homem branco - vivi a melhor experiência que uma leitura pode proporcionar: desacomodação. Frente às diferentes narrativas de violência que os personagens negros sofrem ao longo da história, chorei.

Pedro, o personagem principal, tem o pai morto durante uma abordagem policial. Desde então, busca reconstruir o passado da família refazendo os caminhos paternos. Todas as cenas são permeadas pela condição de um homem negro em um estado racista chamado Rio Grande do Sul. O racismo está na nossa fundação.

Retirando a hipócrita romantização da Guerra dos Farrapos, resta sangue de negros escravizados. Sangue de um povo traído, que caiu na emboscada de lutar uma guerra com promessa de liberdade e ao fim, após a vitória, foram assassinados em nome de um Império que buscava “apaziguar” os rebeldes que temiam uma “massa descontrolada”. Essa parte da nossa história é geralmente “esquecida” propositalmente. Nos eventos tradicionalistas exaltam-se apenas a coragem do “gaúcho macho e honrado que lutou bravamente pela independência”. Mas é importante lembrar que os farroupilhas foram vilões. Lembrando também da impronunciável frase do hino riograndense que diz que “povo que não ter virtude, acaba por ser escravo”. Não seria justamente o contrário? Um povo sem virtude, acaba por escravizar?

Em 2022, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, 156 trabalhadores foram resgatados em condição análoga à escravidão no RS. Atualmente, 3 produtores de fumo estão na “lista suja” do trabalho escravo. Na última semana, em algumas vinícolas da serra gaúcha, mais de 200 trabalhadores foram resgatados durante uma operação policial. No local foram apreendidos spray de pimenta e máquina de choque que eram utilizados em pessoas que reclamavam da situação. A palavra escravidão reverbera em nosso território e isso não é uma coincidência.

O Brasil é um país racista. Espero que não seja uma novidade escrever que nossa origem se deu a partir da invasão de terras por europeus e posterior genocídio dos povos originários. Não fomos descobertos, somos frutos de violência. Ao mesmo tempo que corpos negros foram objetificados e suas almas retiradas pela tirânica igreja Católica que participou ativamente da implantação e manutenção da escravidão. Nossa sociedade se “desenvolveu” a partir da exploração brutal de seres humanos que tiveram sua humanidade retirada pelo sistema vigente. E o pior: foi tudo naturalizado. Foi? Ou ainda é? O que dizer de um país em que, entre os anos de 2008 e 2018, 75% das pessoas assassinadas são negras?

Num diálogo de Pedro com sua tia, ele questiona como ela suporta todo o racismo que viveu ao longo da vida. A resposta é: "A gente se acostuma com tudo. A gente se acostuma quando você caminha na rua e as pessoas recolhem as bolsas e mochilas, a gente se acostuma quando os próprios homens preferem as negras mais claras, a gente se acostuma a ser só. A gente se acostuma a chegar numa entrevista de emprego e fingir não perceber a cara desapontada do entrevistador". Será que é possível se acostumar com tanta violência? 

Obviamente não para quem sofre a violência. Mas e para privilegiados? O trágico é que justamente por vivermos em uma estrutura social racista os olhos se acostumam a ver abordagens policiais violentas com homens negros, a hipersexualização de mulheres negras, o povo negro em profissões com menos status social, piadas que reproduzem estereótipos e violentam a referida população. Há um automatismo nessa violência. Se não nos atentarmos, reproduziremos a estrutura discursiva. Eis a importância de questionar o nosso próprio racismo.

E num brilhante diálogo com o pai, Pedro escuta que “É necessário preservar o avesso. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem que preservar algo que não se encaixa nisso”. 

“Numa sociedade racista não basta não ser racista. É preciso ser antirracista”, como bem anunciou a filósofa Angela Davis. Lutar por um mundo onde toda diferença seja inscrita e respeitada! A nossa maior riqueza é a diversidade. Necessitamos combater o conservadorismo. Por que algumas pessoas temem tanto as mudanças sociais e buscam desesperadamente manter um status quo? Provavelmente uma das respostas seja sustentar o seu lugar de privilégio. O mundo muda quando o discurso social muda. Que estejamos cientes da nossa responsabilidade, enquanto sociedade, frente aos riscos submetidos a um corpo negro que habita o nosso país. “A carne mais barata do mercado segue sendo a carne negra...”. Qual a minha contribuição para essa luta?

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko