Rio Grande do Sul

Vida das Mulheres

Conheça a história do Coletivo Feminista de Luta contra a Aids Gabriela Leite

Coletivo nasceu com o objetivo de articulação de políticas públicas e combate efetivo ao machismo estrutural

"A pauta aids não trazia a discussão pelo olhar do feminismo, foi daí que surgiu a necessidade de impulsionar a discussão a respeito dos direitos humanos" - Shutterstock

Era abril de 2022 quando um grupo de mulheres ativistas se juntaram para criar o Coletivo Feminista de Luta contra a Aids Gabriela Leite, hoje formado por aproximadamente 50 mulheres de diferentes realidades – dentre elas mulheres periféricas, cis e trans, brancas e negras, ativistas de saúde e percussoras dos direitos humanos que atuam com a pauta HIV/Aids, engajadas em ações em seus respectivos territórios. Neste mês de março, em homenagem às mulheres, a Agência Aids traz histórias de iniciativas de fortalecimento de ativistas.

O Coletivo nasceu durante reunião do Enong (Encontro Nacional de ONGs, Redes e Movimentos de luta contra a Aids), com o objetivo de articulação de políticas públicas e combate efetivo ao machismo estrutural. As mulheres estavam indignadas com o machismo dentro do Movimento de Luta contra a Aids.

Hoje, mais fortalecido, o coletivo tem se estruturado através de pontos focais regionais, com lideranças em quatro macrorregiões brasileiras. De acordo com as ativistas, essa composição busca garantir não só diversidade, mas a compreensão dos diferentes cenários locais e seus reflexos nas questões relacionadas a epidemia de Aids.


“Há mulher negra periférica vivendo com HIV; mulher trans, negra, indígena…”, destacou a advogada Márcia Leão / Foto: Arquivo Pessoal

“A pauta aids não trazia a discussão pelo olhar do feminismo, foi daí que surgiu a necessidade de impulsionar a discussão a respeito dos direitos humanos, de pensar políticas públicas e o enfrentamento ao machismo inserindo, de fato, a mulher no centro do debate”, explicou a advogada Márcia Leão, uma das idealizadoras do Coletivo Gabriela Leite e integrante do Fórum de ONGs/Aids do Rio Grande do Sul.

Márcia acredita que nos trabalhos o que há de mais positivo é a pluralidade de vivências e a interseccionalidade das discussões. “Há mulher negra periférica vivendo com HIV; mulher trans, negra, indígena…”, destacou.

Para ela, poder somar junto a todas essas mulheres e contar com a riqueza dos seus cotidianos, torna tudo mais potente. “Eu que em alguns termos falo de um lugar privilegiado, pois sou uma mulher branca, cis, heterossexual e que teve acesso à educação formal, sofro diariamente com o machismo e a misoginia, imagine o que não sobra para as minhas companheiras com trajetórias de muita luta’’, exemplificou, citando mulheres em contextos de maior vulnerabilidade que estão expostas a lidar com as demandas de gênero, raça e classe.

Carla Almeida, também ativista e membra do Coletivo Gabriela Leite salientou que alguns dos objetivos centrais é justamente rearticular e potencializar estas discussões relacionadas a gênero, raça e desigualdade social.

Enfrentamento ao machismo

“A gente entende que a compreensão da interseccionalidade, somado também ao viver com HIV, indica a urgência de uma agenda articulada com outros movimentos sociais para que a gente possa construir feminismos cada vez mais fortes. A gente busca ampliação desse debate junto ao Movimento de Luta contra a Aids e também junto aos demais atores para incidir de forma mais prepositiva na construção de políticas públicas comprometidas com o enfrentamento ao machismo, ao racismo, a LGBTfobia, as desigualdades de classe."

Nesse sentido, a feminista explica que o coletivo viabiliza diversas atividades e tem priorizado em suas ações a formação de mulheres, especialmente de lideranças comunitárias, em temáticas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, e também da compreensão da epidemia de aids enquanto uma epidemia político-social.


"O movimento aids reflete todas as relações de poder entre gênero e todas as demais dinâmicas sociais e as reproduz em seu cotidiano", avalia Carla Almeida / Foto: Fabiana Reinholz

Carla frisou outro ponto que o coletivo se detém, que ao seu ver é fundamental no seu campo de atuação: o enfrentamento à violência política de gênero intra e extra movimento. “O movimento aids reflete todas as relações de poder entre gênero e todas as demais dinâmicas sociais e as reproduz em seu cotidiano. As mulheres ativistas que compõem o movimento de luta contra a aids enfrentam nos espaços de militância política manifestações machistas e misóginas. Fenômenos como Manterrupting, Mansplaining e Bropriating são práticas frequentes. Além disso, muitas das vezes as demandas de nós mulheres são minimizadas e/ou silenciadas por parte considerável de ativistas do movimento”.

Manterrupting é o termo utilizado para definir uma situação em que um homem interrompe a fala de uma mulher antes de ela terminar o que está falando; Mansplaining é o ato de um homem explicar algo para uma mulher – muitas vezes um assunto do íntimo conhecimento e vivência da mesma – assumindo que ela não entende sobre o assunto, mas ele sim; já Bropriating define situações onde um homem se apropria da ideia de uma mulher, levando o crédito em seu lugar.

Carla diz que o coletivo se coloca hoje como uma voz insurgente, que tenta trazer para a discussão questões que se afastaram na agenda, especialmente questões relacionadas à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e temáticas feministas mais emergentes.

Autocuidado cercado de barreiras

“Esse distanciamento pode ser percebido nas lacunas existentes no campo da prevenção para mulheres cis e homens trans. A última aquisição de preservativo interno de látex, em detrimento ao de borracha nitrílica, foi realizada contrariando todas as reivindicações e evidências apresentadas por pesquisas mundiais, movimentos sociais e usuárias do SUS. É indispensável destacar a relevância deste insumo na promoção da autonomia das mulheres no contexto da prevenção”.

Sobre a Profilaxia Pós-exposição (PEP), alega que, seja nos casos de exposição sexual ou violência, as mulheres ainda enfrentam barreiras programáticas, culturais e morais que dificultam o acesso ao medicamento.

Em relação à PrEP, ela lamenta que “uma das principais ações de prevenção do governo, mesmo que tenha sido reformulado, ainda restringe o acesso das mulheres”.

Para além, Carla afirma que as revisões e incorporações no campo da assistência e cuidado são relapsas em relação às especificidades das mulheres que vivem com aids.

A ativista garante que esta conjuntura não se restringe aos espaços formais e/ou governamentais de construção de políticas públicas, mas as próprias agendas propostas pelas organizações da sociedade têm incluído também de forma muito incipiente temáticas que problematizam as vulnerabilidades das mulheres brasileiras.

“O mês de março é um marcador simbólico fundamental para as lutas feministas, para ampliar e visibilizar as lutas e temáticas feministas. Contudo, estas lutas se concretizam no cotidiano, no dia a dia das mulheres. Não há dúvidas que ser mulher é um ato político, o patriarcado se manifesta em todas as esferas e espaços sociais. O machismo, assim como o racismo, é estrutural. Atitudes machistas são naturalizadas, nós nos confrontamos com elas a todo momento", destaca.

Segundo Carla, março é importante para ampliarmos estas discussões, mas a luta feminista transcende o mês de março. "Neste momento, especialmente, nós temos que estar atentas para garantir que reconstrução e rearticulação da resposta brasileira à epidemia de aids tenha um compromisso inexorável com o enfrentamento do machismo, do racismo, da lgbtqia+fobia e desigualdades sociais, contra a pobreza menstrual, luta pelo direito ao aborto legal, pela regulamentação da prostituição, saúde das mulheres lésbicas e dos homens trans e tantas outras temáticas emergentes deixaram de compor as agendas de prevenção e atenção ao HIV, à aids e de outras ISTs.”

Luta contra o racismo 


“Muitas delas sofreram racismo, inclusive eu sofri muito racismo dentro do movimento de luta contra a aids”, conta Cleide Jane / Foto: Arquivo Pessoal

Cleide Jane, mulher negra vivendo com HIV, militante feminista e defensora dos direitos das pessoas vivendo com HIV/aids, também falou que já cansadas do machismo e do racismo sofrido pelos movimentos sociais, resolveram se unir a fim de construir um movimento que fosse composto integralmente por mulheres que se sentem violentadas, violadas e constrangidas diante de um machismo exercido, que é estrutural e cultural. “Muitas delas sofreram racismo, inclusive eu sofri muito racismo dentro do movimento de luta contra a aids”, denunciou.

Desde então, de acordo Cleide Jane, as ativistas têm procurado ocupar espaços de poder com o propósito de formação política de mulheres para combater o machismo e principalmente o racismo.

“A importância disso é máxima, todas as vozes feministas têm que se fazer ouvir, por mais que queiram nos silenciar, que falem que não estamos entendendo o que querem dizer, a gente está entendendo sim, a gente só não está é concordando. No coletivo mulheres negras, trans, brancas, cis, empreendedoras, rurais, indígenas… estamos em uma linha horizontal, nenhuma solta a mão da outra, não deixamos cair, e isso para nós não é teoria, é prática”, finalizou.

Quem foi Gabriela Leite?


Gabriela Leite foi uma ativista brasileira e prostituta da Boca do Lixo em São Paulo / Foto: Trip Transformadores

Gabriela Leite foi uma ativista brasileira e prostituta da Boca do Lixo em São Paulo, da zona boêmia em Belo Horizonte, e da Vila Mimosa no Rio de Janeiro. Pioneira na defesa das pessoas vivendo com HIV/aids e dos direitos das prostitutas, ela lutou pelo reconhecimento e regulamentação da prática enquanto profissão.

Gabriela fundou a grife de roupas femininas Daspu, dedicada à profissionais do sexo. Ela morreu em 2013, aos 62 anos, vítima de câncer.

Edição: Agencia Aids