Rio Grande do Sul

8 DE MARÇO

Educação machista, estereótipos culturais e raiva estão na base da violência contra a mulher

Especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato RS avaliam possíveis causas do cenário de agressões, violações e feminicídios

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em 2022 foram registrados uma violação a cada quatro horas e um assassinato por dia, conforme relatório Elas Vivem - Foto: Jorge Leão

Grávida de cinco meses, Kelly Lidiane Carvalho Moreira, de 36 anos, foi morta na madrugada do dia 12 de fevereiro, em Uruguaiana (RS), vítima de feminicídio, pelo companheiro Guilherme Pansardi Grisóstimo, com quem mantinha relacionamento há um ano. Horas antes do crime, Kelly havia acionado a polícia depois de ter sido agredida por Guilherme. A mulher morreu com golpes de faca logo após ele ter sido liberado da delegacia. Guilherme foi preso após o assassinato. Ela era mãe de quatro filhos. 

Na cidade de Estância Velha (RS), um homem de 29 anos foi preso por tentativa de feminicídio contra a namorada, no dia 14 de fevereiro. A namorada está internada em estado grave.

Casos de violência contra a mulher que não são isolados. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 apontam o RS como terceiro estado com o maior número de morte de mulheres por contado feminicídio. No ano passado o estado registrou 106 casos e mais de 40 mil registros de violência contra as mulheres. Os números podem ser maiores, uma vez que há subnotificação de casos, causada por medo ou vergonha das mulheres relatarem. 

Em sua quarta edição, a pesquisa "Visível e Invisível, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto ao Instituto Datafolha e com apoio da Uber, aponta que mais de 18 milhões de mulheres sofreram alguma forma de violência no país em 2022. De acordo com o levantamento, em comparação com as pesquisas anteriores, todas as formas de violência contra a mulher apresentaram crescimento acentuado.

De acordo com o relatório Relatório Elas Vivem, divulgado nesta segunda-feira (6) pela Rede de Observatórios da Segurança, no ano passado foi registrada uma violação a cada quatro horas e um assassinato por dia. A grande maioria dos crimes é cometida dentro de casa, por maridos, namorados, companheiros e ex-companheiros. 


Indicador de violência contra as mulheres no RS 2023 / Fonte: SIP/PROCERGS - Atualizado em 06/02/2023

De onde vem a violência 

Machismo, ciclos de violência que vêm desde a infância e estereótipos de gênero são elementos que podem ajudar a entender o que causa os casos de violência e como eles se perpetuam. Especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato RS destacam que o fenômeno da violência sempre é multifatorial. 

“Podemos pensar na cultura da região, na educação, na rede de proteção às mulheres, nas condições que a população possui de exercer sua cidadania em diferentes territórios, entre outros", destaca a psicanalista, psicóloga, Marina Medeiros Pombo.

Segundo ela, ao se falar sobre os altos índices de violência que os homens exercem contra as mulheres, é necessário ampliar o raciocínio e identificar os ideais da cultura da sociedade sobre o que é um homem. "Ao fazer isso não estamos dizendo que todo o homem é violento, mas dizendo sobre porque muitos homens o são”, pontua.

A psicóloga Thays Carolyna Pires Mazzini Bordini também considera importante entender que o indivíduo que prativa a violência está inserido em uma sociedade com características muito significativas. “A violência é algo muito complexo, ela vem de muitos lugares.Precisamos entender que a falta do básico, de direitos humanos básicos, é um fator que pode ajudar a gerar violência”, afirma, destacando a necessidade de políticas públicas para diminuir a desigualdade social. 

Ela chama atenção ainda para a perspectiva de raça dentro deste contexto, onde a violência contra as mulheres negras é significativa. "Precisamos olhar para outros fatores que fazem com que essas mulheres tenham mais risco de sofrer a violência justamente porque temos uma rede de atendimento que, às vezes, pode ser muito falha" avalia.

Segundo ela, isso pode fazer com que haja revitimização, "de não acreditar na vítima, de perpetuar violências significativas, o que faz com que as mulheres muitas vezes não consigam se sentir bem para fazer uma denúncia". Ela lembra que "fazer uma denuncia implica em uma mudança absurda na vida dessas mulheres”.


Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Instituto Datafolha. Pesquisa Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, edição 4, 2023 / Foto: Reprodução

A influência da cultura estereotipada gaúcha

No caso especifico do estado do Rio Grande do Sul, as especialistas apontam o forte sentimento de regionalismo arraigado em torno da figura do gaúcho. Também um forte machismo e misoginia, que se reflete na educação e na cultura. 

“A gente não pode deixar de atrelar a violência no RS de uma naturalização da violência enquanto forma de educar. Muitas vezes o homem justifica uma violência a partir deste estereótipo de gênero. Se esse homem realmente acredita, sente, entende que a mulher, por exemplo, com quem ele está casado, tem que se comportar de X maneira e ela não se comporta, então é justificável que ele agrida”, destaca Thays. Avalia que apesar do avanço do feminismo, há no estado ainda uma maneira forma de gênero que diz como o homem e a mulher devem deve se comportar.

De acordo com Marina, o imaginário cultural que cerca esse sujeito é de um homem branco sem fragilidades, que possui algumas necessidades, não leva desaforo para casa e não é dado a delicadezas. Lembra que existem músicas tradicionalistas de conhecimento difundindo que contam sobre a história e sobre o lugar do gaúcho no universo masculino. “Ajoelha e chora, quanto mais eu passo o laço, muito mais ela me adora", exemplifica, pontuando que a mulher na cultura gaúcha, por sua vez, é colocada no oposto desse mito do homem viril, heróico e branco.

"Às mulheres é dado dois papéis: a da prenda, recatada e dada às questões tradicionais, ou a china, dada aos prazeres. A mulher não é considerada um sujeito com desejos e autonomia própria, ela é dita nesse imaginário como quem serve alguém seja da forma que for e isso é o que chamamos de machismo", afirma Marina. "Sem falar do racismo intrínseco da nossa cultura, em que a mulher negra é vista como subalterna ou objetificada sexualmente. Os ideais culturais e a nossa educação dizem sobre uma rigidez moral e punitiva direcionada às mulheres e uma flexibilização das normas e regras para os homens. Infelizmente, naturalizamos diversas violências desde cedo ao educar crianças com esse imaginário de masculino e feminino.”

Para Thays, é preciso fazer muitas coisas para que isso mude. Como principal medida, sugere modificar e desconstruir entendimentos estereotipados de gênero. Também alerta para os danos de agrassividade e da violência em casa como forma de educação. “Desde a infância, tanto de mulheres como homens, identificar que bater não é uma maneira saudável de educar. A gente precisa ajudar essas crianças, mostrar que agressão não é uma forma de lidar com uma questão e como essas pessoas podem regular entender seus sentimentos.”


Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Instituto Datafolha. Pesquisa Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, edição 4, / Foto: Reprodução

Incluir os homens no atendimento 

"Todos nós nascemos na mesma sociedade, que é extremamente machista, patriarcal, portanto, precisamos incluir os homens no atendimento de uma maneira que eles reflitam as suas próprias atitudes e seus crimes que eventualmente cometerem", sugere Thays. No caso dos crimes relacionados à violência contra a mulher, significa que os homens entendam isso e consigam encontrar estratégias para lidar de uma maneira diferente para que isso não volte a se repetir. "Precisamos de políticas públicas que consigam dar conta dessas questões”, frisa.

Ao comentar o que precisa ser feito para diminuir os índices de violência, a psicóloga cita itens como rede de assistência para vitimas de violência; rede unificada em que a pessoa vítima de violência consiga entrar no serviço, receber a segurança e a proteção que necessita; medida protetiva; algum acolhimento para a mulher e talvez para seus filhos que também precisem; grupos reflexivos sobre gênero para os agressores, o que a Lei Marinha da Penha também preconiza.

“Precisamos de tratamentos eficazes para essas pessoas. Esses grupos são muito importantes, precisamos fazer com que eles cada vez mais aconteçam. Contudo o que vemos, na realidade, é que poucos lugares conseguem ter esse serviço. Em Porto Alegre tem no Fórum, mas em cidades menores, como no interior, não acontece, o que explica essa violência muito significativa que acontece no RS”, expõe. 

Mestra em psicologia, Thays realizou, em 2020, juntamente com outras pesquisadoras, o estudo Homens Autores de Violência contra Mulher: Um Estudo Descritivo. De acordo com ela, dois entre os oito homens entrevistados tinham histórico anterior de Maria da Penha.

“De uma maneira geral, todos os homens da pesquisa mostraram algum nível de expressão de raiva desadaptativa, ou seja, que tinham dificuldade em lidar com a raiva. Alguns externalizavam mais a raiva, botando pra fora, sendo agressivos. Outros tinham problemas crônicos de raiva, de estarem em constante estado de raiva e isso é importante pra gente entender que esses homens, muito provavelmente tinham dificuldade quando crianças. Vários deles apresentavam negligência física e emocional, duas violências mais frequentes”, apresenta. 

Ainda segundo ela, em dois casos foram identificados histórico de violência. “Provavelmente sofreram algum tipo de violência, mas ainda não conseguiram perceber que era violência. Alguns homens também sofreram violência física. Foram homens que quando criança sofriam violência e eram negligenciados emocionalmente, portanto, uma dificuldade de entender, de expressar sentimentos, de conseguir nomear e lidar com isso. Isso entra muito em consonância de precisamos desde de criança ensinar os homens majoritariamente, já que estamos falando de homens produtores de violência, a lidar com suas emoções e sua raiva, e atrelar esse entendimento de gênero das emoções."


"A gente não pode deixar de atrelar a violência no RS de uma naturalização da violência enquanto forma de educar" / Foto: Jorge Leão

O que se entende nos discursos de homens que agridem as mulheres é que eles dão justificativa para os seus atos criando lógicas que legitimam a violência, relata Thays. “Porque, 'se eu entendo que minha mulher precisa fazer minha janta e ela não faz, isso é uma ofensa, eu tenho o direito de agredi-la', 'se ela me trai ou não faz o que eu quero ela merece apanhar', 'se ela estava com tal roupa, ela merece sofrer violência porque ela não pode mostrar o corpo'", exemplifica.

Para ela, é muito importante identificar quais são essas crenças, porque é sobre elas que se pode fazer com que esses homens reflitam sobre si. “Um homem que cresce em um ambiente que lida com violência, que apanha na infância, que talvez identifique que lidar com as situações de uma maneira agressiva resolva. Junto com todo esse entendimento de crença legitimadora de violência, que talvez ela merece sim apanhar e uma desregulação da raiva muito significativa, isso nos mostra algo muito perigoso. Não significa que vai ser assim, mas os homens que agridem têm essas características muitas vezes e precisamos, tanto na terapia quanto na discussão sobre gênero, olhar essas questões para desmistificar esses entendimentos.” 

Marina relata que existe um número considerável de homens que procuram o consultório por terem sido violentos com suas companheiras. “São homens comuns que procuram se responsabilizar por sua própria forma de ser e estar no mundo, muitos trazem um histórico familiar da figura paterna como um indivíduo violento, independente da admiração ou não que possuem. Outros falam do sentimento de pertencimento e status entre os amigos que certas atitudes machistas lhe oferecem quando compartilhadas com os demais”, comenta.


Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Instituto Datafolha. Pesquisa Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, edição 4 / Foto: Reprodução

Estar atento aos sinais

Para as especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato RS, os sinais de que esteja havendo violência de gênero, especificamente a doméstica, são complexos. “Quando a mulher percebe que está em uma relação violenta, normalmente, é quando começa a ficar físico, antes talvez seja mais difícil para ela perceber”, afirma Thays.

Em relacionamentos amorosos a violência sempre começa sutil, complementa Marina. Cita pequenas tentativas de controle do comportamento da mulher, falas pejorativas ou desqualificantes, culpabilização constante da mulher como se a mesma fosse responsável pelo que acontece de ruim ao homem, até rompantes de agressividade contra móveis e objetos, entre outros. “Mas, os sinais do início da naturalização da violência podem ser vistos desde cedo, por exemplo, no comportamento de um menino que desfaz da mãe ou das mulheres a sua volta em palavras e/ou gestos”, frisa.

Ao falar de como isso afeta a vida das mulheres, Marina destaca o dano à autoimagem da mulher, que muitas vezes se sente responsável pelas agressões que sofre. "É como se o amor próprio da mulher em questão fosse sendo minado, na relação os afetos bons e elogios direcionados a ela vão sendo retirados aos poucos até que em algum momento só restam críticas e culpas. O discurso de desqualificação feito pelo agressor a faz acreditar que não será amada por mais ninguém, e que ficará sozinha para o resto de sua vida se terminar o relacionamento.”

Conforme destaca a psicanalista, é comum em relacionamentos conjugais em que a violência existe que a mulher seja afastada dos demais membros da família e acabe isolada. “Os membros da família precisam estar atentos aos sinais de violência. Sabemos que o impacto da violência atinge a todos, mas é a mulher que precisa de cuidados nesse momento crucial”, afirma.

No caso da violência ser causada por estranhos, complementa Marina, um dos impactos mais visíveis é o quanto isso abala a sensação de segurança física e afetiva dessa mulher com o mundo ao seu redor. Ponto que "remete à urgência de pensarmos em um projeto de cidade em que as mulheres estejam e sintam-se seguras nas ruas”.

Thays chama atenção que o autor da violência não é o tempo todo violento, pode ser um pai querido ou um marido bom em alguns momentos. “Precisamos também entender que essa mulher nunca vai estar em uma relação violenta porque ela gosta. Ela gosta da pessoa que não maltrata, e essa é a pessoa que ela quer. Isso é importante de entendermos para parar de ter o julgamento de que se essa pessoa está há muitos anos nessa relação é porque ‘está tudo bem com ela’. Não está. Essa mulher precisa entender isso para ela conseguir ter meios de contar isso para alguém, porque muitas vezes tem muito julgamento sobre ela, o que faz com que as mulheres tenham muito medo de denunciar."

Ainda de acordo com ela, além das questões de autoestima, culpabilização e sentimento de vergonha, a violência pode acarretar uso de substâncias, depressão, ansiedade e até tentativa de suicídio. Alguns transtornos podem atingir os filhos que presenciam a violência. "O pai que agride a mulher às vezes pode bater na criança também como uma outra forma de entender a educação, que é completamente equivocada. Toda a família está dentro de um ambiente violento e é muito importante conseguirmos trazer isso para essas pessoas identificarem, também para os homens autores de violência.”

As especialistas salientam que não é fácil romper o ciclo da violência e que as mulheres precisam de uma rede de apoio para isso. Em Porto Alegre há algumas casas de acolhimento para mulheres em situação de violência. São elas: A Casa Mirabal - Ocupação Mulheres Mirabal, A Casa de Apoio Viva Maria e a Casa Betânia.

Onde procurar ajuda  

Brigada Militar – Disque 190
Se a violência estiver acontecendo, a vítima ou qualquer outra pessoa deverá telefonar imediatamente para o 190 a fim de que a Brigada Militar se desloque até o local do fato para prestar socorro.

Polícia Civil
Se a violência já aconteceu, a vítima deverá ir, preferencialmente à Delegacia da Mulher, onde houver, ou a qualquer Delegacia de Polícia para fazer o Boletim de Ocorrência e solicitar as medidas protetivas. Veja as delegacias especializadas de atendimento à mulher.

Delegacia online
A delegaciaonline.rs.gov.br é uma plataforma digital criada pela Polícia Civil do RS onde as vítimas podem relatar as agressões sofridas sem ter que ir até a delegacia. Também facilita a solicitação de medidas protetivas de urgência.

Central de Atendimento à Mulher 24 Horas – Disque 180
Recebe denúncias ou relatos de violência contra a mulher, reclamações sobre os serviços de rede, orienta sobre direitos e acerca dos locais onde a vítima pode receber atendimento. A denúncia será investigada e a vítima receberá atendimento necessário, inclusive medidas protetivas, se for o caso. A denúncia pode ser anônima.

Defensoria Pública – Disque 0800-644-5556
Para orientação quanto aos seus direitos e deveres, a vítima poderá procurar a Defensoria Pública, na sua cidade ou, se for o caso, consultar advogado(a).

Centros de Referência de Atendimento à Mulher
Confira aqui a lista  dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher.


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Edição: Marcelo Ferreira