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Mística marcou a abertura da 20ª Festa da Colheita do Arroz Agroecológico do MST - Foto: Marcelo Ferreira
Mais de 4 mil pessoas acompanharam a Festa da Colheita e isso deve ser avaliado em sua real dimensão

Com o Brasil preparando comitiva para visitar nosso maior parceiro comercial, em busca de divisas fundamentais à recuperação da crise onde os golpistas e bolsonaristas nos jogaram, e tantas outras coisas importantes acontecendo, é até irritante perceber que a mídia só fala dos escorregões verbais do Lula.

Ok, como todos nós, ele também fala besteira. Mas convenhamos, pela carga emocional envolvida, pelos gatilhos que o marreco e a juíza do copia e cola despertam, se trata de algo compreensível. Além disso, nada do que Lula falou se compara ao que escutamos daquele que entendia como necessário matar 30 mil pessoas, que não hesitou em facilitar a morte de mais de meio milhão e que sente “dor no coração” por ser obrigado a devolver itens que, como no caso daquelas joias, pretendia roubar da nação...  Mas não vamos falar sobre isso.

Vamos retomar o tema das possibilidades de desenvolvimento nacional, apontadas pelo MST em sua 20ª Festa da Colheita do Arroz Agroecológico.

Mais de 4 mil pessoas acompanharam aquele evento, realizado no assentamento Filhos de Sepé, em Viamão/RS, e isso deve ser avaliado em sua real dimensão. Como foi organizada, e “quem” mais poderia dar conta de uma atividade de tal porte, em clima de alegria e sem drenar os cofres públicos? Algum partido político? Alguma Federação patronal? Lideranças unidas das bancadas da bíblia, da bala, do boi e da bola? Duvido. Só o povo, abraçando noções de solidariedade, trabalho voluntário e dedicação a um projeto de vida é capaz de tamanha façanha.

Vejam que ali foram desenvolvidas atividades múltiplas conduzidas de forma simultânea e articulada, porem com coordenações descentralizadas, envolvendo núcleos autônomos de atendimento ao público e vasta mesa de autoridades, com representações municipais, estaduais, federais e internacionais. Tudo de forma disciplinada, sem choques personalistas e sem perda de tempo e superposição de autoelogios e denúncias repetitivas. Ao contrário, com amplo leque de anúncios e esclarecimentos sinalizando oportunidades (e compromissos) com um futuro melhor.

Aquela festa trouxe evidências da força de um povo que, para acelerar o desenvolvimento nacional, solicita tão somente impulsos simples como a oportunidade de acesso a possibilidades de realização humana. Saindo de barracas de lona para unidades produtivas ilustradas pelas que compõem aquele e outros assentamentos da reforma agrária, mais de 400 famílias ali estavam, envolvidas com a produção de consciência e emancipação, juntamente com toneladas de leite, mel, ovos, arroz, hortaliças, feijão, milho e outros alimentos de base agroecológica, além de produtos de agroindustrialização familiar como doces, pães, queijos, carnes e embutidos. Ali estavam os frutos do trabalho, para ver, tocar, provar e comprar a baixo custo. Ali também estava o convite de sempre: venha conhecer nossos assentamentos, venha comprovar a distância entre o que aqui se faz, de fato, e o que sobre nós mentem as propagandas de segmentos do agro pop fascista.

Apenas no arroz orgânico aqueles assentados de reforma agrária esperam colher, nesta safra, mais de 16 mil toneladas. Chegaram a isso construindo um itinerário técnico que dispensa o uso de agrotóxicos e que articula esforços de centenas de famílias dispersas em 22 assentamentos localizados em nove municípios das regiões Metropolitana, Sul, Centro Sul e Fronteira Oeste do estado.

E esta é a motivação deste texto. Chamar atenção para o que se evidenciou naquela festa. Podemos, sim, avançar rapidamente no combate à fome, apoiando e ampliando ações de suporte à reforma agrária e mobilizando outros segmentos da agricultura familiar que hoje disputa, em desvantagem, espaços territoriais, acesso a água e créditos necessários à produção de comida de qualidade.

Vejam que a festa também anunciou iniciativas dos assentados para superação de dependências nacionais relacionadas à importação de adubos. Os que lá estiveram puderam conhecer a Unidade de Produção de Bioinsumos Ana Primavesi. Trata-se de verdadeira fábrica de adubos biológicos/bioinsumos. Realizada em parceria da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap) com a Associação Internacional para Cooperação Popular (BAOBAB), ela contribuirá, a um só tempo, para a redução nos custos de produção relacionados à compra de adubos importados e ampliação/melhoria na fertilidade dos solos nas áreas reformadas.

As autoridades federais presentes receberam, da organização dos trabalhadores sem-terra, projeto que permitirá incorporação de 5,6 mil famílias ao primeiro projeto do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) rejuvenescido no governo Lula. No projeto se delineia mecanismo para enfrentamento da fome por meio da articulação de 27 entidades populares de Porto Alegre, 12 cooperativas do MST e mais de 1 mil famílias assentadas, entre outras iniciativas envolvendo a cadeia do arroz ecológico, além do beneficiamento de sementes e de indústria do arroz orgânico parboilizado.

Em termos de significado nacional, também foram entregues às representações ministeriais reivindicações para o assentamento imediato das 65 mil famílias acampadas no país, bem como de políticas públicas com garantia de crédito estrutural e assistência técnica que contribuirão para organizar a produção de alimentos necessários à garantia de três refeições ao dia, para milhões de brasileiros, impulsionando ao mesmo tempo o desenvolvimento territorial e a soberania nacional.

Alimentos limpos, implicando na redução da pressão dos agrotóxicos sobre a saúde humana e ambiental.

A importância disso pode ser evidenciada pelo fato de que, na vizinha Argentina, estudos revelam que a chance de morte por câncer, graças ao contato com agrotóxicos, já é três vezes maior para quem vive próximo às lavouras de um agronegócio que lá, como aqui, afronta os direitos humanos e os princípios da agroecologia que orientam o projeto de Reforma Agrária Popular. Os conceitos ali expostos são compartilhados por lideranças de povos de toda América Latina, onde se reafirma: “a construção da soberania se dá pela busca de autonomia”.

Enfim, a Festa da Colheita orienta nossa visão para necessidades comuns referentes ao controle do território, à construção de mecanismos de governabilidade com envolvimento social e à valorização de iniciativas populares guiados por uma ciência verdadeiramente cidadã.

Nesta mesma perspectiva, durante esta semana ocorreu lançamento do terceiro número da Revista Ciência Digna, produzida pela Union de Cientificos Comprometidos com la Sociedad y Naturaleza de América Latina, que é objeto de nossa atual recomendação de leitura.

Acesse, baixe, leia o N.3 da Revista Ciência Digna

Sugestão de música, em homenagem à ação daqueles que nos brindaram com a 20ª Festa da Colheita - Milton Nascimento lembrando que cabe a todos e a cada um de nós, parar com o chororô e tratar de refazer, com nossos próprios braços, nosso viver.

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko