Rio Grande do Sul

MAL DA TERCEIRIZAÇÃO

Artigo | Trabalho escravo: 'Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter'

Identificação de trabalho na condição análoga à escravidão no Lollapalooza Brasil mostra banalização da exploração

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Trabalhadores terceirizados do Lollapalooza eram obrigados a dormir em tenda de bebidas, sobre papelões - Ministério do Trabalho e Emprego

A atual redação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro define que o que venha a ser reduzir alguém à condição análoga à de escravo (submeter o trabalhador a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, sujeita-lo a condições degradantes de trabalho, restringir por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho) é fruto da Condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso que ficou conhecido como Fazenda Brasil Verde x Brasil.

Por meio de sucessivas fiscalizações restou identificada a presença de trabalho na condição análoga à de escravo nos anos 1994, 1996, 1997 e 2000.

Diante da inércia do Estado brasileiro, da omissão diante da reiterada prática de submeter trabalhadores a condição análoga à de escravo, a Comissão Pastoral da Terra e o Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) denunciaram o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

No ano de 2016, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por não ter adotado medidas efetivas para impedir a submissão dos trabalhadores nas condições acima descritas e muitos menos impedir a reincidência de tais situações.

Como resultado deste processo é que nasce a atual redação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro. A atual redação foi atacada logo após a queda do governo de Dilma Roussef. E com certeza voltará a ser alvo de críticas, dado ao grande número de identificações de trabalho na condição análoga à de escravo e a repercussão que tais casos têm recebido dos meios de comunicação.

O fato é que o trabalho na condição análoga à de escravo está entre nós. Talvez reflexo de uma cultura escravocrata tão arraigada em nosso país. Mas muito por conta da flexibilização dos direitos, da retirada de patamares mínimos civilizatórios, introduzidos pela reforma trabalhista e chancelados pelo Supremo Tribunal Federal.

Não é mera coincidência que a maioria dos casos envolvam empresas terceirizadas. O tomador de serviços ou não fiscaliza as atividades da terceirizada ou sabe da ilicitude e nada faz, pela simples razão de que seu lucro aumenta, na medida em que o trabalhado terceirizado sai mais barato e pouco importa os métodos praticados pela prestadora de serviços (terceirizada) por ele contratada. Não é mera coincidência que 80% dos homens submetidos a tal condição sejam negros, que a maior parte destes tenha até o quinto ano incompleto e que cerca de 10% destes sejam analfabetos.

O mesmo sistema que abandona homens e mulheres ao analfabetismo e à falta de profissionalização cria um meio legal de utilizar essa mão de obra, com salários mais baixos e sem a devida proteção legal. A precarização dos direitos, a derrubada das redes de proteção asseguradas pelo trabalho formal, permite que a prática de submissão de trabalhadores passe a ser fonte de lucro para tomadores de serviços e prestadoras de serviço. Tudo às custas da vida e da dignidade da pessoa humana, que é ponto central da Constituição Federal de um país que se diz democrático e promete valorizar o trabalho, a função social da propriedade e a igualdade de seus cidadãos.

Não se pode admitir um passo atrás no combate a tal crime e nenhum milímetro com relação a flexibilizar a caracterização do trabalho na condição análoga à de escravo, contida na atual redação do artigo 149 do Código Penal.

Ao contrário, essa é a hora de aprofundar o debate sobre qual tipo de sociedade queremos, uma sociedade que assegura proteção aos trabalhadores. O que significa retomar o espaço perdido com relação aos direitos revogados ou flexibilizados, ou, no mínimo, proteger, com todas as forças o que restou do patamares mínimos de civilização. Dentro disso se encontra não admitir trabalhos forçados, jornada exaustiva, sujeição a condições degradantes de trabalho, restrição por qualquer meio de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

Caso contrário estaremos aceitando a banalização da transformação dos trabalhadores em coisas, peças que podem ser usadas para alimentar um sistema que persegue o lucro, sem que seja assegurado qualquer freio ou limite.

Não se pode esquecer que a mesma CF que assegura o lucro e a propriedade privada estabelece direitos mínimos dos trabalhadores. E indica, ao lado do lucro, o valor social do trabalho e o primado do trabalho.  

Lembro da canção de Humberto Gessinger. “Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter (...)” “(...) e tudo ficou tão claro e o que era raro ficou comum”.

Ainda que na verdade nem tão raro, mas melhor escondido e menos fiscalizado. De qualquer forma, uso a canção para lembrar que pela quarta vez (2018, 2019, 2022 e 2023) foi identificado no festival Lollapalooza Brasil a presença de trabalho na condição análoga à de escravo.

A expressão Lollapalooza, entre outras, é uma extraordinária ou incomum coisa, pessoa ou evento; um exemplo excepcional ou circunstância.

Pois bem, nesse evento extraordinário, fora do comum, que recebe um público de mais de 100 mil pessoas, que ocasionou a lotação de cerca de 80% das rede hoteleira e que a previsão de faturamento é de 421,8 milhões, foram localizados trabalhadores que, sob a promessa de receberem 130 reais ao dia, viram-se jogados em jornadas de 12 horas ao dia. Foram obrigados a dormir no próprio local de trabalho sobre papelões e madeiras, entre os estoques de bebidas, sem ter direito a papel higiênico e sabonete. E, mais uma vez, se tratava de uma prestadora de serviços.

A banalização da condição análoga à escravidão, desta vez, estava atrás dos bastidores de uma extraordinária ou incomum coisa, pessoa ou evento; um exemplo excepcional ou circunstância, no caso o Lollapalooza Brasil. No meio de luzes, brilhos e frases de contestação ao sistema, estava presente esta chaga que, se não combatida, se tornara cada vez mais comum (sempre buscando retomar a condição de normal, como já o foi a séculos atrás).

O que era raro fica comum e milhares de pessoas podem ser o que são (escravizados) e podem ter os sonhos que podem ter (sobreviver e, por vezes, fugir de tal condição e chegar a algum Quilombo). A submissão de pessoas à condição análoga à de escravo já não se esconde nos fundões de propriedades rurais, ocorre em evento internacional, no centro das atenções.

Que sabe para onde irá? O certo é que seguirá tentando se instalar como normal, mas certo também é que milhões de brasileiros sabem qual a sociedade a ser buscada. Aquela em que isso não seja normal, comum, e que sejamos o que queremos ser e não o que nos permitem ser. E que vivamos nossos sonhos, sem a limitação impostas por outros.

* Advogado, sócio da AJS Advogados e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia RS (ABJD/RS)

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira