Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Desempenhocracia ostentação

'O capitalismo e a sociedade moderna colocaram o desempenho no lugar do mérito, atribuindo-lhe as virtudes morais'

Brasil de Fato | Santa Maria |
"Dinheiro é o fetiche do mundo moderno. É bizarro, é triste, é fato, é cada vez mais real" - PXhere

Sabe, só estou escrevendo este texto, requentando velhas ideias e histórias, porque não para de passar na timeline das minhas redes sociais os stories de influenciadores se jactando da própria prosperidade financeira depois que, enfim, aceitaram a Jesus, focaram na família, desenvolveram um propósito, mantiveram a consistência, evitaram distrações, se aproximaram de pessoas prósperas, afastaram os pessimistas e fracassados, enfim, o receituário de sempre.

O último foi um destes coaches de comportamento apresentando o seu novo Porsche de 2,5 milhões, comprado com o faturamento da venda de seus cursos na internet. Na hora me perguntei: ora, tempos atrás, antes das redes sociais, isso pareceria ridículo, estúpido, tolo, mas porque não parece ser assim hoje em dia, pelo menos para os seus seguidores? Ou, onde foi que a ostentação perdeu a vergonha?

Bem, voltemos um pouquinho.

Há uns 10 anos, em dois artigos intitulados 'Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira', escrevi que a meritocracia atual não é exatamente baseada em reconhecer e premiar a virtude do mérito, mas sim do desempenho, pelo que rebatizei-a de 'desempenhocracia'. Simplificando ao extremo, o argumento envolvia a ideia de que o mérito é um parâmetro subjetivo, e que por conta disso, o capitalismo e a sociedade moderna acabaram por colocar o desempenho - muito mais fácil de medir e demonstrar - em seu lugar, atribuindo a ele as virtudes morais do mérito.

Adicione-se a isso a enorme difusão, pelas redes sociais, da ideologia neoliberal, que defende a função central do mercado em medir o desempenho, e portanto o mérito, e portanto o bem, e a prosperidade financeira se torna imediatamente a principal unidade de medida da virtude moral.

Então, no moderno capitalismo neoliberal, seu mérito e seu valor são do tamanho do seu desempenho, mais especificamente, da sua prosperidade, a ponto de a ostentação perder a vergonha e passar a ser pública e deliberadamente cultuada.

Não precisa gastar muitos ATPs para descobrir o quanto de estupidez humana isso provoca. Da glorificação dos milionários à cruel responsabilização dos pobres pelos males do mundo; da massificação das piores vertentes musicais à degradação da educação em escolas voltadas à competição e ao empreendedorismo; da mercantilização vil do sofrimento humano à redução da Fé às virtudes morais da prosperidade. Enfim, exemplos não faltam.

Então, a meritocracia atual não só não existe, como o seu simulacro, a 'desempenhocracia', ao contrário de fazer do mundo um lugar mais justo e melhor pra se viver, tende a formar um mundo moralmente inóspito, de pessoas cruéis, culturalmente pobres e socialmente degeneradas.

Bem, quando escrevi isso há uns 10 anos tive que gastar algumas páginas neste argumento. Mas hoje, com a onipresença das redes sociais em nossas vidas, e depois de alguns danos políticos históricos que elas já nos causaram, me parece que não é preciso mais tantas explicações. Basta observá-las, ver quem se projeta neste caos, o tipo de valores que elas promovem, e colecionar exemplos do pior da 'desempenhocracia'. Dos adoradores do Elon Musk aos vendedores de cursos, palestrantes e coaches mostrando seus carrões novos; do sucesso de músicas estilo 'ostentação' a pastores justificando a demonstração pública de suas fortunas como exemplo de prosperidade a os seus fiéis, já que elas são a prova da retribuição de Deus à sua Fé.

Enfim, um show de glorificação do dinheiro, do sucesso financeiro e da acumulação de bens. Tudo aquilo que - embora seja a alma do capitalismo - outrora era muitas vezes escamoteado, fruído com relativa discrição e parcialmente purgado em filantropia e obras de caridade pelos muito ricos.

As redes sociais, parece, por dispensarem as mediações culturais e institucionais na promoção de uma ineditamente massificada interação entre as pessoas, acabaram por acelerar esta espiral decadente do capitalismo, quem sabe, rumo a um renovado 'estado de natureza', este em que a força bruta do homem primitivo dá lugar ao poder e autoridade moral da riqueza, do dinheiro e do mercado.

Talvez o exemplo mais eloquente e desconcertante desta realidade seja o da atleta Kay Alves, participante do Big Brother Brasil 23, que numa das tantas indiscrições que o reality produz, disse ter mentido que ganhava R$ 200 mil por mês no OnlyFans, uma rede social de conteúdo adulto, embora isso fosse 50 vezes mais do que o valor real.

Nas palavras dela: "quando eu fiz o OnlyFans falei: 'preciso fazer isso aqui ser bem visto'. E aí a estratégia de marketing foi: 'vou soltar quanto eu ganho jogando pra galera entender porque eu fui pra lá. E aí eu soltei que ganhava R$ 1.500,00. Mas o que veio de gente atrás de mim... Você não tem noção, um monte!", afirmou ela. Então "falei (que ganhava) R$ 200 mil por mês (no OnlyFans)! Acabou com o povo. Ninguém mais viu que eu estava fazendo coisa errada". Ao contrário, diziam: “você está certa”.

Afastados todos os juízos moralistas, a moça deu uma aula involuntária de sociologia, quiçá de filosofia moderna, sobre a superioridade moral do dinheiro e dos endinheirados na 'desempenhocracia' capitalista neoliberal contemporânea. Dinheiro que a tudo redime, que a tudo torna bom, torna crível, digno, legítimo e certo. Dinheiro que é a régua do desempenho, a métrica do mérito, o juízo de valor, que é fonte de autoridade, que separa o joio do trigo, o bom do ruim, o digno do ordinário. Dinheiro que, enfim, é o fetiche do mundo moderno.

É bizarro, é triste, é fato, é cada vez mais real, e é tudo por hora.

* Professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).

** Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko