Rio Grande do Sul

'AUTOCRATA'

'A questão dos direitos humanos deve ser abraçada por todos', afirma oposicionista nicaraguense

Em visita ao Brasil, Mônica Baltodano faz agenda extensa com líderes de movimentos e parlamentares

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Mônica Baltodano, ex-comandante guerrilheira na Revolução Sandinista, vive hoje exilada na Costa Rica - Arquivo pessoal

"Um capitalista que aplica todas as políticas neoliberais e tem feito um relato mentiroso de que segue sendo um homem de esquerda e anti-imperialista". É assim que Mônica Baltodano, oposicionista nicaraguense e Fundadora do Movimento de Resgate ao Sandinismo, define o atual presidente do país, Daniel Ortega. 

Para ela, que lutou ao lado de Ortega na Revolução Sandinista de 1979, o ex-companheiro de luta não é mais um sandinista: "todas as suas práticas e suas políticas são o mais grosseiro neoliberalismo extrativista favorecedor das grandes transnacionais."

Mônica Baltodano entrou em 1972 para a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Dois anos depois, aos 20, ela teve que, em suas palavras, "se esconder" da perseguição do regime do então ditador Luis Somoza. Passou a meia década seguinte na clandestinidade.

Agora, em visita ao Brasil, ela percorre quatro capitais, em agendas que incluem palestras, uma conversa com parlamentares em um dos plenários da Câmara dos Deputados, reservado para o ocasião, além de encontrar lideranças de movimentos sociais e religiosos, como Frei Betto e Padre Júlio Lancelotti - ambos conhecidos pelo forte ativismo social e por se identificarem com a ala mais progressistas da Igreja Católica. 

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Mônica começou a militar ao mesmo tempo em que ia "catequizar". Suas raízes políticas se conectam com a Teologia da Libertação, visão filosófica que fez parte da origem ao Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil.


Mônica Baltodano com Lula e Frei Betto na comemoração do primeiro aniversário da Revolução Sandinista, em 19 de julho de 1980 / Arquivo pessoal

Em suas missões da juventude, Baltodano também diz que aprendeu a alfabetizar, "desde muito jovem, com o método de Paulo Freire." Foi uma das três mulheres elevadas à condição de comandante guerrilheira após a Revolução Sandinista de 1979, em um contingente de 30 homens. Entre eles estava o próprio Daniel Ortega. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, Mônica afirma que Ortega "se converteu em um autocrata e se elege uma vez ou outra violentando as normas básicas da democracia."

Atualmente, a ativista vive exilada na Costa Rica e é uma dos mais de 300 nicaraguenses que perderam a sua nacionalidade. No último 7 de março, o representante do Brasil em Genebra disse que o país se disporia a receber cidadãos e cidadãs nicaraguense que se tornaram, formalmente, apátridas. 

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O diplomata reafirmou o "comprometimento humanitário" do governo brasileiro que, no entanto, recusou-se a assinar declaração conjunta da Organização das Nações Unidas (ONU) com críticas ao governo da Nicarágua.

Longe de tratar de um tema unânime na esquerda, dentro ou fora do Brasil, Mônica Baltodano insiste que o atual mandatário nicaraguense é, na verdade, "um capitalista" que "favoreceu a privatização da seguridade social e dos meios de comunicação."

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: Você tem uma agenda extensa nos próximos dias no Brasil. Qual é o principal objetivo da sua visita?

Meu principal objetivo é encontrar com pessoas do povo brasileiro. Nas cidades que vou visitar, também vou estar com parlamentares, líderes políticos dos movimentos sociais, muita gente vinculada à Nicarágua pela teologia da libertação e pelo movimento de libertação dos anos 80 [revolução sandinista], para poder informá-los do que está acontecendo na Nicarágua e os sofrimentos que está passando a maioria do povo nicaraguense. Estamos sofrendo um regime ditatorial, um regime totalitário muito cruel que aplica medidas repressivas muito fortes contra todos que pensam diferente. 

Estou aqui para informar que Ortega não é mais sandinista e partícipe daquela linda revolução dos anos 80. Ele se converteu em um autocrata e se elege uma vez ou outra violentando as normas básicas da democracia. Além disso, é um capitalista que aplica todas as políticas neoliberais e tem feito um relato mentiroso de que segue sendo um homem de esquerda e anti-imperialista. Porém, todas as suas práticas e suas políticas são o mais grosseiro neoliberalismo extrativista favorecedor das grandes transnacionais.

Por que, especificamente, você caracteriza o governo da Nicarágua como sendo neoliberal?

As mudanças dele [Ortega] vêm antes de sua chegada ao governo, no ano de 2007.  Ele escolheu o caminho do apoio ao Tratado de Livre-Comércio [das Américas]. Os deputados subordinados a ele aprovaram a criminalização do aborto, inclusive nos casos em que a vida da mãe está em perigo. Também se dobrou a concepções religiosas muito conservadoras. O seu propósito é nunca deixar o poder, está determinado por uma ambição de permanecer no governo a qualquer custo e para isso ele fez uma grande aliança com o grande capital, particularmente os banqueiros.

Ele permitiu todas as concessões, inclusive modificou a lei para que concessões para a exploração mineral a céu aberto, que é a mais brutal para a exploração das floretas, para a exploração pesqueira, para garantir grandes vantagens às transacionais. Ele favoreceu a privatização da seguridade social e dos meios de comunicação.

Chegou a tanto em seu arranjo com os grande empresários que eles permitiram uma série de mudanças nas leis que garantiram uma concentração total dos poderes Legislativo, Judicial e Eleitoral, a Controladoria. Fez acordo com o grande capital para que eles cuidassem do negócio e que o deixassem livre para cuidar da política, e isso está refletido até hoje em dia na Constituição da República e outros elementos que para mim são determinantes para provar o caráter de Ortega.

Temos denunciado que os Estados Unidos critica Ortega, mas é uma crítica retórica porque, na prática, a Nicarágua segue sendo um grande sócio comercial dos Estados Unidos; 60% exportações da Nicarágua vão aos EUA e os EUA são parte dos investidores, e grande parte do capital é investido em mineração e na pesca em zonas de livre comércio e zona franca. 

Em suas entrevistas, é comum encontrar citações em que Ortega é caracterizado como um ditador. A revolução sandinista foi feita, também, com a bandeira da derrubada da ditadura de Somoza. Parece que você fala como se o tempo estivesse dando voltas. Por que agora, com o Movimento de Resgate ao Sandinismo, que você faz parte, seria diferente?

Sandino foi uma figura que lutou contra a intervenção norte-americana, pela autodeterminação, e conseguiu tirar os gringos em 1933. Logo depois, foi assassinado por Somoza [pai de Luis Somoza] em 1934. A ditadura cruel de Somoza, que durou 40 anos, deu origem a uma luta que envolveu toda uma geração de nicaraguenses, particularmente nos anos 70, até por fim a ela em 1979.

O propósito da nossa luta não era somente terminar com a ditadura, mas fazer a construção democrática do país, com justiça social. A revolução nos anos 1980 foi impedida pela intervenção norte-americana que apoiou a contra revolução todos esses anos.

Eu tenho uma irmã que foi assassinada quando tinha 16 anos e foram mais de 50.000 nicaraguenses que morreram por essa luta contra Somoza. O lógico seria que esses ideias permanecessem intactas dentro da organização. O nosso grande desafio é enfrentar um governo que se diz de esquerda e contruir uma alternativa progressista de esquerda. Em meu caso, creio que sigo sendo reivindicando os ideais de Sandino.

Agora teremos que transformar a ditadura de Ortega, desta vez, pela via cívica, pela via pacífica. Ninguém está pensando em luta armada, em derramar sangue, mas sim construir um novo caminho através de um percurso pacífico, democrático. Esse é o grande desafio.

E que tipo de democracia o seu movimento defende para a Nicarágua?

Pensamos que a democracia reduzida a processos eleitorais é uma democracia limitada. Nós sempre temos trabalhado por uma democracia participativa, onde não é apenas o voto que delega todo o poder para que um pequeno grupo tome todas as decisões. 

Eu acredito muito na democracia participativa e além disso acredito na democracia econômica, quer dizer, uma democracia que não seja apenas eleitoral, que está acompanhada também de medidas radicais para fazer transformações radicais.

Mas na Nicarágua nem sequer há democracia eletiva. Todos os processos eleitorais dos último anos têm sido fraudulentos. Como pode se querer democracia onde 100% das municipalidades ficou nas mãos do orteguismo? Nas eleições de 2021, Ortega capturou todos os candidatos que faziam oposição e os manteve presos até fevereiro deste ano, ou seja, 22 meses. A gente rechaça que a Nicarágua seja colocada no mesmo saco que Cuba ou Venezuela. Em primeiro lugar, porque o processo cubano é um processo de socialismo que tem suas próprias formas de democracia. 

Não se pode ter na Nicarágua ninguém que pense diferente. Ortega acaba de tirar a nacionalidade de 317 nicaraguenses, isso não fez Cuba e nem Venezuela. 

Há uma geração de pessoas que fizeram a revolução. Hoje você faz parte do Movimento de Resgate ao Sandinismo. Onde estão essas pessoas que lutaram junto com você e que fazem parte do movimento?

Na Costa Rica está a maior parte do movimento camponês. A liderança Dona Francisca Ramírez é uma camponesa muito emblemática que está vivendo em Upala. Ela está fazendo grandes sacrifícios para sobreviver. Os campesinos que estão na Nicarágua não podem falar nada, não podem opinar. 

Há um regime de vigilância muito forte, tem-se incrementando bastante os fundos [financeiros] da política e dos órgãos de segurança para controlar, é muito alto o nível de controle. Então a maioria dos líderes estão no exílio e os que ficaram têm que guardar silêncio, não opinar e nem dizer nada. 

Então estamos tratando de estabelecer vínculos entre distintas organizações porque estamos conscientes de que na luta pela liberdade, a primeira coisa que devemos conquistar é que temos que ser capazes de fazer pontos de comunicação para que se superem diferenças ideológicas, inclusive as diferenças políticas, porque na luta pela liberdade é de primeira ordem. Sem liberdade não podemos fazer nenhuma das outras lutas.

Você foi uma das três mulheres que se tornaram comandantes militares após a revolução de 1979, em um contingente de 30 homens. Como era ser mulher guerrilheira naquele tempo? E como é ser mulher nicaraguense nos dias de hoje?

Nós mulheres participamos ativamente da luta contra a ditadura de Somoza. Infelizmente, o machismo era predominante e se expressou no fato de apenas três mulheres terem sido reconhecidas como comandantes após a vitória. Foram aprovadas [após a revolução] algumas leis importantes que favoreciam as mulheres.

Para ter uma ideia, antes de 1979 mulheres não podiam fazer empréstimos em bancos se não tivessem a assinatura do marido. Havia um descaso muito grande em relação à responsabilidade dos homens, então foi aprovada uma lei para estabelecer a responsabilidade dos homens com relação à educação dos filhos.

Ele [Ortega] fez uma aliança com a hierarquia da Igreja Católica, principalmente com Monsenhor Obando, e recua em uma série de direitos das mulheres, e com isso coloca o slogan de que a revolução é Cristã, Socialista e Solidária, e é tudo mentira.

Em sua agenda, está programada uma visita à Brasília para conversar com parlamentares. Há previsão de articular alguma posição do governo brasileiro, ou de ações no Congresso Nacional?

Vamos conversar com as pessoas que trabalham com a questão dos direitos humanos porque queremos que todos os partidos de esquerda do Brasil saibam o que está acontecendo, saibam que Daniel não é de esquerda, que esta é a prática de Daniel Ortega é uma perda de prestígio para aquela esquerda.

A repressão brutal que está sendo vivida não tem justificativa, se Daniel Ortega fosse da esquerda ele também não aceitaria porque acredito que no século 21 a questão dos direitos humanos deve ser abraçada por todos, independentemente de serem de esquerda ou de direita.

Também vamos aos parlamentos estaduais para tentar informá-los e exigir que rompam com Ortega.

Você começou a sua militância muito jovem e ficou presa durante 5 anos. Por que continuar?

Sim, desde muito jovem fui muito sensível aos problemas sociais do meu país. Eu ia catequizar. Aprendi alfabetizar desde muito jovem com o método do Paulo Freire.

Depois de 15 anos participei de uma marcha por uma companheira que havia sido estuprada na prisão e, desde então, nunca mais deixei de ser um soldado pela causa da justiça e pelos direitos dos outros. Participei também [naquela época] de greves estudantis pelos direitos dos professores de ganhar um salário digno.

Todos os anos lutei pela liberdade dos presos políticos. Você pode imaginar para mim o que significa saber que pessoas como Dona María Téllez, uma heroína da revolução, passou 22 meses em uma cela escura sem poder ler? Perdeu parte da visão no escuro. Então os direitos dos presos políticos e presos em geral sempre me deixou sensibilizada.

Sem liberdade não pode haver outra bandeira. Você não pode sacrificar a liberdade, como disse Rosa Luxemburgo, a liberdade é o que há de mais precioso e isso significa a liberdade de ter uma opinião diferente.

Nos anos 70 não tínhamos consciência feminista suficiente. Não tínhamos consciência ambiental suficiente, porque não eram as questões que se debatiam, ou seja, temos alargado as bandeiras de acordo com os novos contextos nacionais e internacionais, mas no final das contas o que nos move é a luta.

Fonte: BdF Nacional

Edição: Thalita Pires