Paraíba

DEFESA DA VIDA

Artigo | A Solidariedade é Vermelha e Emancipatória

O Levante e o MST realizaram trabalho de base na cozinha do Jeremias (CG) fortalecendo vínculos e enfrentando a fome

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Cozinha Comunitária foi reativada pelo MST e Comitê Popular Sindical, no bairro Jeremias, em CG. - MST


“Minha terra é dor, fome, miséria, é esperança também de milhões, igualmente famintos de justiça”
(Paulo Freire)

 

A fome, um problema tão antigo quanto a própria humanidade, ainda persiste e atinge um grande contingente de pessoas. A lógica de produção capitalista tem por natureza mercantilizar os processos de vida, presentes nas relações humanas e não humanas. Dessa forma,  o alimento é mais um produto a circular no mercado sob a lógica do capital, como um valor de troca e não de uso, deixando parte da população desfavorecida e sem acesso, sendo o alimento um direito inerente à dignidade humana, além da subsistência. 

Diante de um quadro de desmonte das políticas públicas no Brasil, no período de 2016 até agora, resultou em 2022 num total de 33,1 milhões de pessoas passando fome no Brasil. Isso acontece por uma série de fatores, dentre eles, a crise econômica, o desemprego, a pandemia, que se agrava pelo desmonte das políticas públicas de combate a fome, aumentando a desigualdade (PENSSAN, 2022).

Presenciamos e vivenciamos, ao longo da pandemia, inúmeros exemplos de solidariedade da classe trabalhadora. Dessa forma, nosso objetivo é mostrar as diferentes formas de solidariedade e o porquê a solidariedade praticada pelos movimentos sociais é uma solidariedade ativa e, portanto, diferente da solidariedade feita por grandes empresas. Como exemplo, apresentaremos a experiência da Cozinha Solidária e Popular do bairro Jeremias na cidade de Campina Grande e a solidariedade ativa exercida pelo Coletivo de Juventude do MST e pelo Levante Popular da Juventude. 

Ao observarmos o relatório da Rede PENSSAN (2022), percebemos que a geografia da fome continua inalterada, isto é, o Norte e o Nordeste ainda são as regiões onde estão concentrados os maiores índices de pessoas passando fome no Brasil. A realidade do Nordeste tem o equivalente a 38,4% de pessoas sofrendo insegurança alimentar moderada ou grave. Esses dados ganham ainda mais complexidade no semiárido brasileiro, onde 47% das pessoas estão em situação de fome, o que equivale a 3 milhões e 674 mil de pessoas  (BRASIL DE FATO, 2021).

Segundo os dados do IBGE (2021), Campina Grande tem uma população estimada de 413.830 pessoas. O Secretário Municipal de Assistência Social (SEMAS), Valker Neves Sales, em entrevista ao Jornal o Dia, em outubro de 2021, declarou: “mais 28 mil famílias na cidade estão em situação de pobreza ou extrema pobreza” (Jornal o DIA PB, 2021).

Foi nesse contexto da escalada crescente da fome, que no dia 19 de abril de 2021, movimentos sociais, partidos e sindicatos fizeram uma ocupação da Cozinha do Bairro Jeremias no município de Campina Grande. A cozinha é um prédio público da prefeitura de Campina Grande e esteve fechada entre 2013 e 2019 até ser ocupada pelos movimentos sociais. Após a quebra do cadeado feito por um militante do Coletivo de Juventude do MST, entramos na cozinha e a partir desse momento começou todo o processo de construção desse importante ato de solidariedade. 

Compreendermos a experiência da Cozinha Popular Solidária do Jeremias - Campina Grande PB, como um espaço de organização social formado por um coletivo de pessoas de movimentos sociais, com o apoio de voluntários e voluntárias da própria comunidade, que ocupou de forma pacífica em 19 de abril de 2021, reabrindo a cozinha. Nos primeiros meses, eram servidas cerca de 800 refeições diárias, distribuídas gratuitamente às moradoras e aos moradores do bairro (BRASIL DE FATO, 2021). 

Contudo, a cozinha não pôde ser mantida ao longo de 2021 por causa da falta de recursos financeiros. O que era uma cozinha funcionando cinco dias por semana, passou a funcionar três dias até que, no segundo semestre de 2022, ela foi fechada sem data para reabrir. Todavia, esse processo como um todo nos permitiu conhecer profundamente o que é a solidariedade ativa. 

A Solidariedade dos movimentos populares (Levante e MST) na cozinha do Jeremias tinha um conteúdo político, dialogando com as afirmações de Freire (2014), assim como declara Edna Castro de Oliveira, no prefácio de Pedagogia da Autonomia (2014): “Freire anuncia a solidariedade enquanto compromisso histórico de homens e mulheres, como uma das formas de luta capazes de promover e instaurar a “ética universal do ser humano” (p.11). Essa defesa ética se entrelaça com o entendimento comum acerca da Solidariedade destes movimentos, potencializando afirmações e experiências de partilha de um mesmo projeto.

No caminhar da história, essas ações acumularam esforços desde a produção de alimentos, até a doação para as periferias urbanas. No compromisso ético com a defesa da vida, a solidariedade humana semeia um florescer coletivo que projeta um novo modelo de desenvolvimento com democracia e justiça social em oposição aos males individualistas da ganância do capital, que foi aprofundado pela pandemia. A solidariedade faz parte da prática do povo na defesa de sua sobrevivência. Faz parte das estratégias da formação social brasileira, enquanto estratégia de sobrevivência da classe trabalhadora. 

No sentido inverso ao da lógica imposta pela solidariedade do grande Capital, estão os movimentos sociais, que defendem a partir da sua prática cotidiana, uma outra possibilidade de se relacionar com os bens naturais, de produzir alimentos e de relações pessoais. Essa perspectiva anuncia a luta em defesa da vida, na defesa de um povo soberano em sua alimentação, autonomia política e de organização societária. 

É nessa perspectiva, no qual está o trabalho  de base se entrelaçando com outro conceito fundamental, o da Educação popular, uma relação dialógica entre a teoria e a prática em que educando e educador estão em um ciclo de trocas e saberes e são partes de uma mesma construção.

Fundamentando-se no método do Materialismo Histórico-Dialético para a leitura da realidade, onde é necessário considerar a realidade em permanente tensão e disputa, em intenso processo de luta, analisa-se o processo na disputa em torno das diversas apropriações sobre o tema da solidariedade.

Entendemos que a discussão passa por questões estruturais, mas também perpassa a dimensão simbólica. A simbologia de uma juventude organizada, que além de lutar por Reforma Agrária e por uma vida digna no campo e na cidade,  como é o caso do MST e do Levante Popular da Juventude, também está preocupada em proporcionar vida digna e alimentação às famílias do bairro Jeremias. Não existe saúde onde tem fome. 

A ação concreta através da experiência das Cozinhas Solidárias, uma estratégia política dos movimentos sociais de recriar formas e reorganizar os espaços coletivos para produzir refeições a serem distribuídas diariamente para as populações vulneráveis,  e para tal, se demonstra a articulação de uma engrenagem social que concretiza a solidariedade e qualifica o trabalho de base. 

Esses movimentos populares e organizações comunitárias buscaram acumular forças, resgatar experiências e experimentações alternativas, referenciadas em um leito histórico latino-americano de organização comunitária. Os voluntários na Cozinha do Jeremias desafiaram-se em  construir uma política de solidariedade ativa através das ações de solidariedade. Essa ação produz em seus envolvidos um singular cotidiano, provocando uma leitura de mundo, que Freire conceberia como um direito subjetivo, dominado por signos e sentidos cravados por experiências no saber-sobreviver.

Essa materialidade acontece por meio de ações concretas dentro da Cozinha. Destaco a primeira que foi o rompimento do cadeado, consequentemente a organização do trabalho voluntário exercido dentro da cozinha entre moradores e moradoras do bairro e os militantes dos movimentos sociais, por conseguinte, as diversas atividades que ali existiram: roda de conversa sobre violência doméstica, produção de canteiros de hortaliças na cozinha, grafite na parede da cozinha, roda de conversa sobre o método de aprendizagem de Paulo Freire, mas, sobretudo, nas trocas que aconteciam durante o corte das verduras, descascar das macaxeiras, servindo as refeições, portanto, uma série de questões mínimas que fazem parte da estratégia política do trabalho de base. O trabalho de base se reverberou também nos homens e mulheres do bairro Jeremias na participação nos vários atos  políticos denunciando a fome e o descaso da prefeitura de Campina Grande e do governo Bolsonaro. 

Os resultados das campanhas de solidariedade ainda são pouco mensurados. No entanto, as experiências podem apontar indícios sobre os próximos passos. Ao passo que a organização Popular ganha centralidade enquanto uma ferramenta importante, o trabalho desenvolvido nos territórios dá início a diferentes frentes de trabalho de base, tendo como princípio essa relação dialógica entre os movimentos e as comunidades.

O caminho para destacar como e por que essas ações ocorreram e ainda, é necessário revisitar, organizar, ordenar por prioridades e considerando uma reflexão crítica dos fatos. As ações organizadas dos movimentos populares expressam a compreensão coletiva de que há uma ciência na escuta. A Solidariedade pode ter uma dimensão humana espontânea, mas também pertence à estratégia política de fortalecimento de vínculos mútuos e no fazer frente a ataques políticos, econômicos e culturais. 

Portanto, queremos ressaltar a importância das cozinhas populares e solidárias como um instrumento da solidariedade ativa, especialmente, a cozinha popular solidária do bairro Jeremias. Enfatizamos também, a necessidade da sua reabertura e da abertura de novas cozinhas no município de Campina Grande. As estratégias de combate à fome passam por uma política de solidariedade em que os sujeitos são protagonistas na história.  

A solidariedade ativa é  o encontro de sujeitos distintos do campo e cidade, que tem no alimento um elo de encontro e sentido. Além disso,  processos concomitantes se encontram com o fortalecimento dos vínculos entre os movimentos populares e a classe trabalhadora e em contrapartida, as famílias se deparam com um espaço de fraternidade, amorosidade e de partilha de suas angústias.  

Por fim, o mês de abril é tempo de honrarmos o legado de Oziel Alves, um jovem de 18 anos que foi brutalmente assassinado em uma das ações mais violentas praticadas pelo Estado brasileiro contra famílias do campo. A coragem, o legado, a memória, a luta, a determinação e a solidariedade de Oziel continuam vivos em cada militante do MST e do Levante Popular da Juventude na luta pela terra, por vida digna e a sua trajetória segue viva  na luta pela Reforma Agrária Popular, por produzir alimentos saudáveis para superar a fome e na solidariedade ativa e emancipatória. 

Referências:


Brasil de Fato. Fome: 47% da população no semiárido está sem acesso a alimentos, diz pesquisa. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/05/10/fome-47-da-populacao-no-semiarido-estao-sem-acesso-a-alimentos-diz-pesquisa>. Acesso em: 28 de novembro de 2022. 


Brasil de Fato. Sem apoio do poder público, sociedade civil mantém Cozinha Solidária em Campina Grande. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/10/27/sem-apoio-do-poder-publico-sociedade-civil-mantem-cozinha-solidaria-em-campina-grande>. Acesso em 28 de novembro de 2022. 


FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Editora Paz e terra, 2014. 


PENSSAN, REDE. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil (II VIGISAN): relatório final. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar-PENSSAN. São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022. 


Rádio O Dia PB. SEMAS revela que 28 mil famílias passam fome em Campina Grande. Disponível em: <https://odiapb.com.br/semas-revela-que-28-mil-familias-passam-fome-em-campina-grande/>. Acesso em: 08 de fevereiro de 2023.  

 

*Paulo Romário de Lima, direção estadual do MST-PB, assessoria nacional da PJR, doutorando em Ciências Sociais pela UFCG;

 **Larissa Padilha de Brito, educadora no Instituto de Educação Josué de Castro, Mestre em Política Social e Direitos Humanos pela UCPEL.

***Paulette Cavalcanti de Albuquerque, professora e pesquisadora do IAM/Fiocruz PE e UPE

 

Edição: Heloisa de Sousa