Rio Grande do Sul

Coluna

Perspectivas da política urbana: Porto Alegre na contramão da história

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"Neste momento histórico em que nacionalmente se reconstrói uma política urbana centrada no direito à cidade, Porto Alegre se coloca na contramão da história de maneira notável" - Foto: Divulgação
O Programa Minha Casa Minha Vida já foi novamente estruturado, priorizando faixas de menor renda

Depois de ter dado uma marcha ré durante os governos de Temer e Bolsonaro, o Brasil parece estar retomando as rédeas de sua política urbana. O Ministério das Cidades foi reinstituído e além de se ocupar de temas tradicionais da pasta, como mobilidade, habitação e saneamento, duas novas secretarias foram criadas, a fim de dar conta de temas emergentes:

A Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano, que para além de tratar do tema metropolitano – uma problemática gigante e desde sempre negligenciada em sua importância no país – se encarregará também de debater a transição climática em um momento em que as cidades brasileiras pagam o preço pela aceleração do desmatamento nos últimos quatro anos.

E a Secretaria Nacional de Políticas para Territórios Periféricos, que supre uma lacuna importante da estrutura anterior do Ministério das Cidades, reconhecendo nossas cidades como uma totalidade da qual fazem parte os territórios autoproduzidos pela população de baixa renda nas periferias de nossas cidades.

Além dessas mudanças institucionais, o governo Lula está retomando o diálogo com os movimentos populares e redes de todo o país, visando reconstruir o processo de realização das Conferências das Cidades e o Conselho Nacional das Cidades, um passo importantíssimo para a redemocratização do órgão.

O Programa Minha Casa Minha Vida também já foi novamente estruturado, ganhando novos contornos, priorizando faixas de menor renda e ensaiando abranger também a locação social, o que será uma medida importante em um país em que a baixa renda sofre por um lado com a ameaça do despejo e por outro com o aumento dos aluguéis em um momento de forte ingresso do mercado de moradia de aluguel no circuito financeiro. Outra boa novidade é uma ampliação do público atendido, com uma abordagem voltada às mulheres responsáveis pela família, somada às prioridades para deficientes, idosos, famílias em situação de risco e emergência climática, além de contemplar a população em situação de rua.

Em que pese a notável rapidez com que o governo conseguiu estruturar-se institucionalmente, bem como propor programas importantes para o setor, é claro que há grandes obstáculos para esse movimento de reconstrução de uma política urbana nacional após um período de desmonte, como o orçamento minúsculo deixado pelo governo anterior para essas políticas setoriais.

Também é preciso ressaltar a necessidade de azeitar o diálogo com o Congresso Nacional para agilizar a aprovação da medida provisória sem desfigurá-la com as centenas de emendas propostas durante o processo legislativo. A formação de uma comissão mista para analisar a medida provisória, a presença de parlamentares oriundos do movimento de luta por moradia, como Guilherme Boulos, e a realização de audiências públicas que prometem estar lotadas por representantes de movimentos populares promete colocar o debate sobre a política habitacional sob holofotes no próximo período.

Outro desafio importante a ser enfrentado é o fato de que muitos governos municipais estavam alinhados politicamente com o governo anterior, bem como trataram de aprovar muitas “boiadas urbanísticas” no período, muito especialmente aproveitando, de forma oportunista, a tragédia da pandemia a concentrar a atenção da sociedade.

Municípios aprovam legislações urbanísticas ultraliberais

O Observatório das Metrópoles está presente em várias capitais brasileiras e alterações na legislação urbanística foram observadas de Norte a Sul do país, sempre refletindo localmente o movimento de inflexão ultraliberal da política urbana que se iniciou com o impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma Rousseff. Coincidiu que muitas cidades estavam em revisão do plano diretor e, com pequenas variações, o roteiro foi muito parecido em São Paulo, Natal, Florianópolis, Teresópolis, Xangri-Lá, e, infelizmente, também em Porto Alegre.

O caso de Porto Alegre é espantoso e se constitui como uma forte ilustração de como esse movimento de desmonte da legislação urbanística se deu em todo o país, viabilizando interesses do mercado imobiliário através de processos autoritários na maior parte dos casos.


"Porto Alegre concentra benefícios para poucos e mantêm sem políticas urbanas e habitacionais adequadas a população de baixa renda do município" / Foto: PMPA/Divulgação

Neste momento histórico em que nacionalmente se reconstrói uma política urbana centrada no direito à cidade e na função social da propriedade, bem como se desenvolvem políticas habitacionais para atender a demanda por habitação de interesse social acumulada em anos de absoluto descaso com o direito à moradia da população de baixa renda, Porto Alegre se coloca na contramão da história de maneira notável.

O município conduz uma revisão do plano diretor com precária participação popular, desrespeitando as regras do Estatuto da Cidade que preconizam um planejamento urbano que englobe o território do município como um todo e ignora as periferias urbanas, privilegiando os territórios que interessam à indústria da construção civil e aos demais operadores do mercado imobiliário. Enquanto a questão ambiental e a preocupação com as mudanças climáticas que têm gerado verdadeiras tragédias urbanas se tornam prioridades do governo federal, o governo local trata de aprovar uma legislação que muda o regime urbanístico da Ponta do Arado, transformando um paraíso ecológico em área urbana para fins de parcelamento do solo.

No que diz respeito às leis que alteraram o regime urbanístico do centro histórico e da área do 4º Distrito também se observam incentivos fiscais aos projetos que se beneficiarem de aumento de potencial construtivo, com mecanismos que destoam completamente das diretrizes da política urbana preconizada pelo Estatuto da Cidade. Enquanto a lei federal de desenvolvimento urbano propõe que o poder público promova a redistribuição da renda gerada pelo processo de urbanização, Porto Alegre trata de concentrar benefícios para poucos e manter sem políticas urbanas e habitacionais adequadas a população de baixa renda do município, que, especialmente no caso do 4º Distrito, corre o risco de ser expulsa do local que ocupou para fins de moradia por um projeto que promove gentrificação e elitiza o uso do território.

Somado a estes problemas, observa-se também um agravamento da crise do transporte intraurbano de passageiros na Capital, com supressão de itinerários, diminuição da frequência das linhas, superlotação e sucateamento dos ônibus, além de privatização de linhas outrora operadas pela Carris, a empresa estatal de transportes de Porto Alegre. Como coroamento da perversidade do modelo operado pelo atual governo da Capital, uma experiência piloto qualifica paradas de ônibus em bairros habitados e frequentados por população de maior renda na cidade, enquanto os equipamentos das periferias estão mais precários a cada dia.

Resumo da ópera: enquanto nacionalmente passamos a respirar novos ares, retomando a esperança em um país em que o direito à cidade possa ser desfrutado por todes, todas e todos, Porto Alegre marcha na contramão da história, implementando políticas ultraliberais que só atendem aos interesses do setor imobiliário, virando as costas para as necessidades e os direitos da maioria da população.

O Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles analisa com preocupação essa disjuntiva entre a política urbana nacional e aquela conduzida localmente pelo prefeito Sebastião Melo, bem como espera que a população de Porto Alegre reflita sobre suas escolhas para o governo municipal nas eleições de 2024, quando a cidade tem a chance de se somar ao esforço nacional que pretende retomar o respeito à ordem urbanística democraticamente construída no país.

* Betânia Alfonsin, Jurista, pesquisadora do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko