Rio Grande do Sul

Coluna

Sobre a morte e o morrer

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Saber sobre a morte de outro nos desloca, nos produz o vazio do encontro com a finitude da própria vida" - Imagem: Vincent Van Gogh/Wikimedia Commons
A vida é isso, uma série de comédia dramática que todos sabemos o fim, mas não o enredo até ele

Talvez essa crônica seja lida por poucos, afinal, sempre tentamos silenciar este tema. Falar sobre a morte é um tabu, esse assunto geralmente é negado, censurado, silenciado, calado e quando falado, na maioria das vezes, é recoberto por várias possibilidades de continuidade. A pergunta “o que vem depois?” apazigua nossa própria finitude. Apesar das diferentes respostas que giram em torno de reencarnação, céu, inferno e tudo o mais que a criatividade humana consegue criar, ela vem. Muitas vezes do nada, volta a cena e devasta.

Atrasado, assisto Fleabag (2016). Uma série fenomenal, com um humor incrível. Os diálogos são surpreendentes e é nisso que reside a graça. Me pego rindo nas narrativas que levam a lugares inesperados. Mas por que falo sobre rir se o tema aqui é a morte? Só é possível falar de algo tão real com o anteparo do humor?

Bem, a série cômica é atravessada pela história da repentina morte da melhor amiga da personagem principal. Fleabag claramente não consegue lidar com o luto. Não fala sobre o que aconteceu e vive uma vida de solidão e comportamentos destrutivos. No início o tema da morte estranhamente não me tocou. Mas ao longo dos episódios surgem cenas de vivências entre as amigas. Em sobressalto me identifico e percebo que já vivi exatamente isso. Por que demorei tanto pra me dar conta? Onde tinha ficada guardada essa conexão entre dramaturgia e vida real? Eu mesmo já perdi um melhor amigo.

Eu me lembro dele quase todos os dias. Acho que o “quase” já é um intervalo de respiro, uma distância que consegui construir em relação ao ocorrido. Mas hora ou outra me pergunto como seria a minha vida com ele ao meu lado? Estaríamos próximos como antes? Teríamos nos afastado por posições políticas? Seguiríamos compartilhando intimidades?

Há mais de uma década uma ligação anunciou seu fim. Fiquei perdido, desnorteado. Como assim? Até ontem falávamos todos os dias! Sonhávamos juntos, fazíamos planos de um dia cursarmos Psicologia - juntos. Eu realizei nosso sonho, ele não teve tempo. 

É tão estranho perceber que num determinado dia um acidente de carro nos separou. Eu ainda sigo, por todos esses anos, carregando as lembranças dos nossos sorrisos, confidências, danças, festas. Como sobreviver à morte de alguém que amamos? Me apoiei nos que ficaram, nos laços que nos uniam, nas histórias que compartilhamos até aquele momento. Segui sonhando, por nós. 

Saber sobre a morte de outro nos desloca, nos produz o vazio do encontro com a finitude da própria vida. É uma dor indizível, é um real que chega nos arrancando desse registro imaginário de que conosco não vai acontecer. Não há inscrição da morte no nosso inconsciente. Embora seja paradoxal, não nascemos pra morrer.

A morte só chega quando nossas histórias morrem. Enquanto eu viver, todos que perdi continuarão vivos e quando eu morrer, que eu viva através de outros. E a vida é isso, uma série de comédia dramática que todos sabemos o fim, mas não o enredo até ele. Viver é escrever a história que sobreviverá a nós.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko