Rio Grande do Sul

Coluna

Sobre a guerra química, a colonização das mentes e a superação da apatia

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Relatos em região dominada pelo agronegócio no Ceará envolvem casos de câncer, malformação fetal, aborto, distúrbios hormonais, doenças neurológicas e puberdade precoce - Foto: Pablo Piovano
Diversas vezes relatores da ONU recomendaram que o Brasil proíba a pulverização aérea de agrotóxicos

Artigo escrito em parceria com Murilo Souza e Naiara Bittencourt


Vandana Shiva se referia à nossa cegueira em relação aos agrotóxicos como resultado da colonização de nossas mentes. E de fato, talvez o principal problema de nossa realidade atual diga respeito ao sucesso daqueles que trabalham pela construção e difusão de uma mistura asquerosa que, combinando ignorância com apatia, nos anula e está literalmente envenenando a sociedade em que vivemos.

Não satisfeitos em lucrar com a contaminação dos solos e das águas, com a degradação de nossas relações com a natureza e da qualidade de vida das nossas famílias, estão tratando de acelerar a destruição da democracia e da regulação metabólica e hormonal, que atua em todos os seres vivos.

Nos referimos aos serviçais daqueles interesses. Gente que não se incomoda com a eliminação da humanidade e da saúde de tudo que respira, que existe neste território e que está sob responsabilidade coletiva.

Nos referimos aos promotores de retrocessos civilizatórios. Gente como aqueles indivíduos trabalharam para garantir o envenenamento dos gaúchos, flexibilizando a venda, naquele estado, de agrotóxicos que a lei estadual não permitia serem usados ali.

Nos referimos a seus associados, capachos dos mesmos interesses, que pretendem agora garantir que os cearenses sejam contaminados por chuvas de veneno que lá estão proibidas pela Lei Estadual n. 16.820/2019, denominada de Lei Zé Maria do Tomé, que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos em todo aquele estado.

:: Parlamentar propõe lei que autoriza pulverização de agrotóxicos via drone no Ceará ::

Neste caso, os líderes do atraso, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.137/2019, ajuizada pela Confederação Nacional de Agricultura (CNA), pretendem acabar com legislação estadual que eleva o respeito concedido aos cidadãos daquele estado ao mesmo nível assegurado aos habitantes da União Europeia, onde a pulverização aérea de agrotóxicos já não é permitida desde janeiro de 2009 (Diretiva 2009/128/CE do Parlamento Europeu).

O preço que os cearenses já pagaram para efetivar esta lei, aprovada em 2019, é elevado. Aos 25 tiros que mataram José Maria Filho se somam a confirmação de que, nesta região, dominada pelo agronegócio, 97% dos trabalhadores e trabalhadoras estavam expostos aos agrotóxicos e 60% apresentavam quadros de intoxicação, conforme pesquisas da Universidade Federal do Ceará (UFC). Relatos envolvem casos de câncer, malformação fetal, aborto, distúrbios hormonais, doenças neurológicas e puberdade precoce.

Desde a aprovação da Lei estadual, apesar da vedação da pulverização aérea, não houve queda de produtividade e nem da exportação de frutas, em especial de bananas, nas cidades onde o setor é mais forte. Por outro lado, certamente ocorreu a diminuição do fenômeno da deriva ocasionado pela dispersão aérea, vez que na pulverização aérea, dependendo da altura das plantas, apenas metade do produto aplicado atinge o alvo. O restante se dissipa pelo solo, pelas águas e pelo vento.

Tanto é que por diversas vezes relatores da ONU recomendaram que o Brasil proíba a pulverização aérea de agrotóxicos em todo o território nacional.

A desconsideração destes fatos e a pressão para a revogação daquela lei por setores do agronegócio e da indústria dos venenos, contam com nossa apatia para reversão de votos da ministra Carmen Lúcia e do ministro Fachin, os dois já favoráveis à manutenção da Lei do Ceará. 

Segundo a ministra Carmen Lúcia, relatora da ADI, a Lei Zé Maria do Tomé fez prevalecer a defesa do meio ambiente e a proteção da saúde humana. Para ela, “determinou-se restrição razoável e proporcional às técnicas de aplicação de pesticidas no Ceará, proibindo a pulverização aérea em razão dos riscos ambientais e de intoxicação dela decorrentes, sem, entretanto, impedir por completo a utilização dos agrotóxicos”. O ministro Edson Fachin, acompanhou esse entendimento.

O processo foi interrompido após o pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes, no final de 2021. Agora a ADI 6137 foi devolvida e entrará em votação entre os dias 19 e 26 deste mês de maio, em julgamento virtual.

Aquela lei é um passo importante de civilidade e do interesse de todos os brasileiros e brasileiras, que precisam ver estendidos ao território nacional os mesmos direitos e a mesma proteção já assegurada aos europeus há mais de duas décadas.

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Segundo a ministra Carmen Lúcia “não há óbice constitucional a que os estados editem normas mais protetivas à saúde e ao meio ambiente quanto à utilização de agrotóxicos”.

Entendemos também que a leitura da ministra está em consonância com as últimas decisões do STF que chancelou a proteção dos estados e municípios quando autorizou a proibição da comercialização de amianto (vedação que começou pelo estado de São Paulo) ou mesmo quando considerou constitucional estados e municípios estabeleceram medidas mais restritivas de circulação de pessoas e do próprio comércio na pandemia de covid-19, com base no direito constitucional à saúde humana.

Ainda, apesar da ADI tratar de uma leitura constitucional sobre o tema, a própria Lei de Agrotóxicos (Lei 7.802/1989) autoriza que estados e municípios legislem sobre o USO de agrotóxicos. Não é difícil perceber que a forma de aplicação de agrotóxicos (por aeronaves e drones neste caso) é uma regulação sobre uma forma, uma modalidade de uso. Se esta forma implica maiores riscos à saúde e à biodiversidade, nada mais certo do que vedar a prática.

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O que acontecer neste caso também indicará os rumos a serem tomados nas deliberações sobre o pacote do veneno (PL 1459/2022), em debate no Senado, que ofendendo compromissos morais e legais, é uma sombra que nos ameaça a todos e todas.

Como sugestão de leitura deixamos o Atlas de Los Pesticidas, da Amigos da Terra

* Murilo Souza, Pesquisador do Núcleo de Agroecologia e Educação do Campo – GWATA, e Naiara Bittencourt, advogada da Terra de Direitos.

** Foto gentilmente cedida por Pablo Piovano (www.pablopiovano.com)

*** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko