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Coluna

De Norte a Sul global, a moradia e a cidade na mira do interesse do capital especulativo

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Movimentos sociais urbanos do Brasil e da Espanha se reuniram em São Paulo, de 20 a 25 de abril, para debater o avanço do sistema financeiro sob a moradia e a cidade - Arquivo pessoal
Temos visto investidas dos agentes de mercado sob os governos para incidir nos Planos Diretores

Este artigo tem como propósito compartilhar uma síntese do debate de análise acerca do avanço do sistema financeiro sob a moradia e a cidade realizado em intercâmbio entre movimentos sociais urbanos do Brasil e da Espanha, ocorrido em São Paulo, de 20 a 25 de abril passado. Os movimentos organizadores foram o Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos – MTD – criado em 2002 e atuante nacionalmente no Brasil e a Plataforma de Afetados pelas Hipotecas – PAH – , criada em 2009, no auge da crise das hipotecas espanhola. Cada um, herdeiro de uma história de urbanização diferente, porém, afetados por um mesmo processo global: o alinhamento neoliberal que avança para mercantilização e financeirização da moradia e da cidade com um todo.

O intercâmbio entre os movimentos foi viabilizado por apoio da Fundação Rosa Luxemburgo do Brasil, o que torna oportuno para lembrar a lição da intelectual e revolucionária alemã ao afirmar que os mecanismos de expropriação, ao lado dos mecanismos de exploração da força de trabalho, sempre operam de forma organicamente vinculadas e contínuas na história do capitalismo. O quadro internacional de crescente precarização no mundo do trabalho produtivo anda de mãos dadas com o processo de corrosão dos direitos e recursos básicos da reprodução social da vida, tais como a moradia e os recursos urbanos comuns.  

O caso espanhol é emblemático sobre a produção da precarização da moradia. Em pouco mais de uma década foi produzido um ciclo completo próprio da lógica capitalista: criação de uma bolha imobiliária, crise generalizada da economia e expropriação da moradia das famílias, o que a literatura chama de acumulação por despossessão.

Para rapidamente explicar o caso espanhol é preciso partir dos anos 1990, em que importantes legislações foram alteradas. Dentre as principais estão duas leis eliminando barreiras dos preços de aluguéis e diminuindo tempo de contratos e uma lei que ficou conhecida como “Ley del todo urbanizable”. De 1998 até 2008, quando estoura a bolha imobiliária, na Espanha de pouco mais de 40 milhões de habitantes, foram construídas 6,6 milhões de moradias. Os preços dos imóveis tiveram alta de 232% e os diversos setores envolvidos na construção civil chegaram a representar 30% do PIB do país e 13% dos postos de trabalho.

Uma grande aposta financiada, em grande parte, pelo endividamento das famílias que, por mais de década, só encontraram facilidades para acessar financiamento imobiliário com 30 ou 40 anos para pagar. Em 2008, logo após o estouro da bolha imobiliária nos EUA, foi a vez da Espanha ver sua economia ruir, assim como de outros países que apostaram na mesma estratégia como modelo de desenvolvimento.

Com desemprego de 26% da PEA e 47% entre jovens e imigrantes, em poucos meses a inadimplência cresceu. Resultado: não demorou para os bancos acionarem, de um lado, os tribunais para despejar as famílias dos imóveis e, de outro lado, os cofres públicos, de onde receberam diferentes medidas de resgate bancário no montante de 25% do PIB do país, entre os anos 2009 e 2013.

Os mesmos bancos que receberam dinheiro público, protagonizaram uma onda de despejos da ordem de 5,82 lares para cada mil e, na comunidade autônoma da Catalunha, 8,96 despejos para cada mil lares. Os imóveis oriundos dos despejos eram leiloados por 60% do valor, o que não cobria a dívida das famílias que haviam perdido a moradia, considerando que o contrato era do capital e dos juros, por 3 ou 4 décadas.

Os grandes compradores da “banana da vez” foram os fundos de investimentos. Além de acumular imóveis de leilão, compraram carteiras de créditos dos bancos – leia-se dívidas das famílias – igualmente por preço de banana. Com isso, acumularam milhares de imóveis para especulação. O fundo de investimento estadunidense Blackstone tornou-se um dos maiores investidores do ramo e hoje é conhecido como a maior imobiliária do mundo. Garantido o monopólio dos imóveis, o ajuste seguinte de mercado vem sendo chamado de “ajuste planetário de aluguéis”. No caso espanhol, entre 2014 e 2019 viu-se o incremento no preço dos aluguéis da ordem de 52% e, na Catalunha, de 60%.


O intercâmbio entre os movimentos foi viabilizado por apoio da Fundação Rosa Luxemburgo do Brasil / Arquivo pessoal

O dilema urbano brasileiro é bem conhecido dos frequentadores destas páginas. Nossa urbanização acelerada e precária, dada pela equação expulsão dos pobres do campo, industrialização incapaz de absorver a mão de obra e a ausência de política habitacional resultou nas cidades autoconstruídas pelos pobres com precária infraestrutura que bem conhecemos. Seguimos sem superar esta “marca de nascença”. Porém, temos visto um agravamento nas condições de vida nas cidades brasileiras. Somado ao déficit habitacional e de infraestrutura urbana, assistimos as investidas dos agentes de mercado sob os governos para incidir nos Planos Diretores “ao gosto do mercado”, como no caso de Porto Alegre, amplamente discutido pelo Observatório.

Processos de gentrificação de áreas inteiras das cidades, investidas para concessão à iniciativa privada de parques e áreas públicas, tensões para a privatização da prestação de serviços – do transporte, saúde, saneamento, para citar exemplos da pauta nacional – coexistem com outros processos que vão corroendo as condições de vida na cidade. Nesse pacote da realidade brasileira deve ser considerado o alto grau de endividamento da população, que chega a 78,9% das famílias brasileiras. Destes, 51% devem a bancos, com os maiores juros do mundo, a título de dívida com financiamentos (carro e casa), mas também por atraso de pagamento de cartão de crédito e cheque especial.

Fácil imaginar que as dívidas com cartão de crédito de grande parte destes inadimplentes é com mercado, combustível para deslocar-se na cidade, remédios, roupas para família e demandas da reprodução da vida. Outros 49% têm dívidas com o fornecimento de água, luz, telefone, internet e outros. O que demonstram os dados é que a população brasileira vem se endividando numa condição ainda mais precária do que o caso dos “hermanos” espanhóis.

Trata-se de endividar-se para garantir as condições básicas de morar na cidade: dispor de água, luz, internet, deslocar-se, garantir roupa e comida. Isso tudo é articulado pela mesma corrente: o processo de canalização da moradia e das condições de habitar a cidade para a gestão de mercado, em que o acesso “aos produtos” passa pelo crédito, pelo endividamento das famílias por anos e décadas.

Essa é uma das feições do processo de mercantilização da moradia e dos recursos das cidades que ligam Espanha e Brasil, PAH e MTD, num desafio global. Outras feições requerem aprofundamento, para traçar estratégias de ação. O MTD e a PAH reunidos, assumiram compromisso com criar agendas de estudo e ação direta compartilhadas, aprofundando compreensão global, para potencializar atuação local.  

* Márcia Falcão, educadora popular, Doutora em Geografia pela UFRGS e pesquisadora do Observatório de Metrópoles Núcleo Porto Alegre.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko