Rio Grande do Sul

OUSAR ROMPER

Artigo | O povo quer se alimentar de ideologia

"As pessoas querem ser mobilizadas por ideias, precisamos dizer que mundo queremos para nós, pro nosso povo"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"As pessoas querem ouvir opiniões ideológicas que não precisam estar atreladas a uma realidade material, mas a ideais de vida" - Foto: Renan Mattos

Não me entenda mal. Esse não é um texto pra dividir opiniões sobre se há pessoas que passam fome ou não. Não nego a existência dessa mazela na sociedade, mas venho tratar de um assunto mais abstrato e um pouco delicado para a esquerda contemporânea, moderna, ou moderada, que aparentemente tem preferido deixar de lado.

Me agrada o termo moderado, de certa forma me considero um. Acho que porque moderado traz o sentido de cautela, significa entender que as coisas têm um tempo para acontecerem. O significado de moderação, porém, não extingue a necessidade de lembrarmos dos nossos princípios, ou seja, o que nos leva a ser. Tão pouco extingue a nossa estratégia, ou seja, para onde queremos ir. Ser moderado não significa não ser radical, no sentido de pensar e buscar solucionar a raiz das questões, e muitas dessas raízes levam e levarão muito tempo para serem superadas. Contudo, ter um tempo maior não significa achar que as coisas não devem ser pavimentadas para acontecerem.

A extrema direita entendeu consideravelmente isso. Entendeu que disputar uma sociedade é, talvez principalmente, disputar a sua mentalidade, e só se disputa este nível profundo de percepção com ideologia, com ideais. Eles conseguiram fazer um deputado antigo do "baixo clero" da Câmara, preguiçoso e corrupto, se tornar um líder político a ponto de ser eleito presidente do país, e alcançando na última eleição 58 milhões de votos. Por óbvio essa imensidão não foi toda de pessoas identificadas na extrema direita, muitos liberais, pessoas de direita ou "apenas" antipetistas somaram-se nessas fileiras de eleitores de Bolsonaro, mesmo compreendendo o catastrófico governo que o mesmo realizou.

O cenário é hiper-complexo, as subjetividades estão por toda a parte, mas esse elemento é inegável na consolidação do bolsonarismo: o posicionamento ideológico transmitido pela cúpula do Bolsonaro, desde 2016 e perpassando por todo o seu governo, reavivou ou trouxe à tona sentimentos de pessoas que há muito não sabiam o que era defender uma ideia, e isso é um grande acerto na estratégia deles. Talvez o maior. Não à toa durante todo o seu governo, em meio a crises diversas e milhares de mortes, eles mantiveram pelo menos 20% de aprovação, muito engajamento e ações articuladas em Brasília, mas também nacionalmente, além de pressões política e institucionais por parte dos seus apoiadores, sem contar votações enormes em candidaturas do seu campo.

Essas coisas todos já sabemos não é um acerto na estratégia da extrema direita apenas no Brasil. Mundo afora, em países desenvolvidos e do centro econômico, os movimentos e narrativas foram os mesmos e os acertos também, atingindo milhões de mentes, tirando-as da inércia e colocando-as em movimento, lhes dando sentido de lutar por algo. Um propósito político-ideológico. As pessoas não se movimentaram somente por programas específicos ou políticas governamentais. Pelo contrário, as pautas que mais as tiraram do lugar foram as ideológicas.

É um espaço que só a extrema direita tem para ocupar? Ela só dialoga com fascistas, sociopatas, psicopatas e mau-caráteres? Porque se acreditarmos que é só esse o perfil, então temos um problema psiquiátrico e de índole mundial muito maior do que o imaginado. Mas se podemos considerar que também tem espaço no espectro político, então podemos elaborar elementos parecidos, que não desloque somente os que estão "lá" mas também os que não querem estar em lugar algum, que hoje demonstram ser outros milhões.

As pessoas querem ser mobilizadas por ideias, as pessoas querem ouvir opiniões ideológicas que não precisam estar atreladas a uma realidade material, mas a ideais de vida. Mesmo que não seja para uma conquista imediata, precisamos dizer que mundo queremos para nós, pro nosso povo, e isso perpassa por valores abrangentes mas também por propostas políticas que na prática ousem romper com o que é considerado tradicional e imutável.

Não é o nosso dever, enquanto esquerda, cumprir o papel de mediadores do capitalismo, de apaziguadores dos conflitos causados pelas suas contradições enquanto sistema produtivo (que tem se agudizado por ser cada vez menos produtivo e mais financeiro). Nosso dever é questioná-lo apresentando alternativas, de curto e de longo prazos, do ponto de vista social, valorativo, econômico e produtivo. As pessoas estão desacreditadas da política e sem esperança porque a esquerda largou de mão cumprir essa função, a de alimentar as almas e as mentes com ideologia para um outro horizonte, para uma outra forma de pensar e ver o mundo.

* Bacharel em Administração Pública – UFRGS, servidor público

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira