Rio Grande do Sul

Coluna

A violência do abominável mundo novo: o frenesi dos diagnósticos

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"De 2002 até hoje, tenho atendido muitos adultos que foram crianças diagnosticadas com TDAH, cujo sofrimento psíquico jamais foi levado em conta" - Foto: iStock
Ritalina, a “droga da obediência”, teve uma caminhada sinistra até chegar às nossas crianças

Quando estudei neurociências na França, no final dos anos 1990, onde a Ritalina, conhecida medicação para TDAH nunca havia entrado, fiquei impactada com a informação de que esta droga já era administrada para os soldados nos campos de batalha na segunda guerra mundial. Ela fazia com que ficassem menos agitados pela tensão constante e mais atentos na execução de estratégias de ataque e defesa. Mais tarde, ela sofreu pequenas alterações de moléculas e foi usada nos presídios, nos Estados Unidos. Enfim, teve uma caminhada sinistra, a “droga da obediência” até chegar às nossas crianças.

Em 2002, meu impacto com a Ritalina foi bem maior. Uma colega pediu que a ajudasse em um centro de cuidados infantis, em uma vila do bairro Cristal. É um desses lugares onde as crianças ficam no turno inverso à escola. O pessoal da pedagogia e os demais profissionais que atuavam ali não sabiam mais o que fazer, por isso pediram ajuda a psicanalistas.

As crianças tinham rompantes de agressividade, de desespero, ou de prostração. Algumas gritavam sem parar durante algum tempo. E isso acontecia do nada, estavam bem, brincando ou fazendo tarefas da escola e a crise explodia. Depois de atender várias daquelas crianças, resolvi ir até a escola do bairro para saber como iam as coisas na sala de aula. A professora me informou que apenas duas delas não precisavam tomar a Ritalina antes da aula. Ela estava autorizada pelo médico do posto de saúde a administrar. Então as crianças faziam fila, tomavam sua Ritalina e ficavam quatro horas apaziguadas, ela podia dar sua aula.

Não vou dar mais detalhes desta história, só lhes digo que foi um furdunço, pois com toda evidência era uma cena nazista, aquela fila diária. E obviamente, as oscilações quase esquizofrênicas de comportamento não estavam dissociadas disso. Ao contrário, aquelas crianças estavam em profundo sofrimento psíquico, agravado pela mordaça química que lhes davam, cujos efeitos colaterais nada tem de inócuo.  

De 2002 até hoje, tenho atendido muitos adultos que foram crianças diagnosticadas com TDAH, cujo sofrimento psíquico jamais foi levado em conta. Tudo se resolveria pela bioquímica cerebral. Os estragos que isso causou em suas vidas são impressionantes.

Hoje, não apenas o TDAH está no auge da moda dos diagnósticos, como também o autismo, este sofrimento psíquico dos mais dolorosos que também virou transtorno, foi transformado quase em um atributo pessoal, aliás, bastante glamourizado, principalmente por adultos, que o recebem como um presente. “Ah, finalmente agora eu sei qual é o meu problema! Está na minha fisiologia!”

O curioso é que muitas crianças com sofrimento autista não são diagnosticadas como tal, muitos neuropediatras relutam em concluir por autismo, decerto esperando a criança crescer. Então, enquanto adultos gozam de colocar este esparadrapo do diagnóstico em suas feridas psíquicas, essas crianças não diagnosticadas ficam desassistidas clinicamente, o que é uma violência. Importante notar que tais transtornos são considerados como incuráveis, e o recomendado como tratamento é medicação e terapias comportamentais.

Ontem (26), depois de muito ouvir falar no TOD - Transtorno de oposição desafiadora, doença que acomete crianças entre 7 e 12 anos, fui investigar. São crianças que não respeitam autoridade, que não se submetem a nada, que enfrentam os adultos e mesmo outras crianças, pois não aceitam nenhuma norma que venha do outro. Também é considerada uma doença incurável, recomendam terapias comportamentais, enquanto pesquisam medicamentos.

Fiquei estarrecida com esta descrição patológica, pois me parece de uma violência imensa.  Atendi crianças durante quase 20 anos e até hoje supervisiono casos clínicos. Este comportamento infantil sempre foi recorrente. São crianças muito angustiadas e que estão completamente órfãs daqueles que delas se ocupam, ninguém sustenta o seu lugar de adulto. Com tanto desamparo, só mesmo tomando o comando para suportar. E o sintoma de uma criança é uma defesa, não um destino. Uma criança insubordinada e desafiadora pode estar inclusive se defendendo da depressão dos adultos.

O melhor vetor do estado psíquico de uma criança é a escola, é lá que tudo eclode, pois é o lugar das leis comuns. Toda criança precisa de estrutura psíquica para suportar esta transição entre a família e o mundo exterior, e cabe aos adultos ajudá-la a se construir subjetivamente para poder ocupar seu lugar no social. Não existe injustiça maior do que não dar essas condições a uma criança.

O diagnóstico de TOD é mais um dos tantos “presentes” que a neurociência oferece a quem nada quer saber da sua responsabilidade com seu sofrimento ou com o sofrimento de sua criança. A maior violência nisso tudo é que muitas crianças carregarão pela vida tal diagnóstico como uma sentença de fracasso, sem falar nas formas de defesa das quais elas podem precisar para sobreviver a tal predestinação. O terrível é que por detrás de tudo isso está um mercado que movimenta bilhões de dólares por segundo no mundo todo:  a indústria farmacêutica.

* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora  Bestiario, 2022).

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.         

Edição: Katia Marko