Rio Grande do Sul

ONDA DE PROTESTOS

Artigo | 2013, dez anos depois – Parte 2: significados, limites e potências

"Além do 'legado', uma das preocupações mais recorrentes é com 'aprendizados' de 2013"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Manifestação do dia 13 de junho de 2013 em Porto Alegre - Foto: Ramiro Furquim

Neste conjunto de dois artigos que marcam os dez anos desde junho de 2013, a opção foi tratar primeiramente de alguns dos principais fatos que ocorreram naquelas jornadas de luta que tiveram início, na realidade, algum tempo antes, e estenderam-se em diferentes linhas do tempo nos anos seguintes. Agora, neste segundo artigo, superada a recuperação histórica básica, é hora de discutir o que de fato significou o processo político-social vivido no Brasil em 2013 e, em um salto, pensar aquele ano na perspectiva de 2023 e para o futuro próximo.

Significados, limites e potências

Na ânsia de se encontrar “culpas” para o que houve depois – o golpe, a prisão de Lula, a eleição de Bolsonaro e todo o desmonte democrático e de direitos que surgiu disso – algumas análises chegam a 2013. Mas me parece simplificador atribuir essa responsabilidade aos manifestantes daquele ano ou cobrar deles ações de resistência ao terremoto que vivemos daí em diante. É preciso compreender as dinâmicas daquelas jornadas, daquele período histórico e dos atores envolvidos em todo o processo, dentro dos movimentos ou nas instituições.

Vivíamos um momento de ascensão global de movimentos híbridos, que uniam – e unem – as manifestações de rua às ações nas redes sociais digitais. Essa complexidade território-ciberespaço carrega enormes potencialidades, mas também traz riscos. Dentre as potencialidades, podemos falar, por exemplo, da chance de participação política e engajamento de pessoas que, em outro cenário, estariam de fora do debate público e da ação política. Por outro lado, entre os riscos, chegamos justamente à baixa qualificação dessa participação quando não organizada, quando essa participação fica resumida à ação, sem reflexão ou organização, quando o ativismo fica esgotado em si mesmo. Trata-se de uma participação política despolitizada e, portanto, despolitizante.

Em 2013, esse era um cenário novo, tanto para quem estava nas ruas quanto para quem estava nos governos. Mesmo quando os governos estiveram interessados em dialogar com as ruas, encontraram dificuldades por conta das dinâmicas próprias de uma institucionalidade que limita a participação popular e entrega boa parte das decisões a relações de cúpula, pouco transparentes e menos ainda democráticas. Em relação aos movimentos, a maior dificuldade talvez tenha sido manejar a aparente contradição entre controle das manifestações e horizontalidade impulsionada pela composição das mobilizações. Para nenhum desses atores havia tempo para parar e refletir de forma mais profunda sobre os melhores caminhos a seguir.

É exemplar dessa situação o momento em que, com a direita crescentemente presente nas ruas, em diversas capitais os impulsionadores originais das mobilizações discutem o que fazer. Nem a saída estratégica em São Paulo esvaziou as manifestações, nem a opção por disputar espaço em Porto Alegre espantou a direita dos protestos. Não existia resposta certa.

Dez anos depois, é mais fácil fazer o balanço daquele período. Se uma das linhas que sai daquela efervescência desemboca no golpe de 2016, há outra linha que corre para o outro lado do espectro político e irá estimular, por exemplo, as ocupações de escolas e universidades durante o governo golpista. Se formos falar em “legado”, não há, portanto, uma única genealogia de 2013, já que não havia ali apenas um grupo mobilizado.

Além do “legado”, uma das preocupações mais recorrentes é com “aprendizados” de 2013. Aqui, podemos pensar, por exemplo, na necessidade de democratização de partidos e movimentos para melhor enfrentar situações limite como a que vivemos uma década atrás, possibilitando que ativistas esparsos deem o passo além que os poderá transformar em militantes ou, ao mesmo, qualificar sua participação política por meio da reflexão coletiva. Ao mesmo tempo, fica clara a relevância das organizações – inclusive sindicatos, pouco presentes naquele momento – para impulsionar e coordenar em alguma medida grandes manifestações populares; sem isso, a chance de captura se torna muito maior. Cada um desses dois itens, porém, não é viável sem o outro. O reconhecimento das organizações como fonte de liderança e a democratização interna dessas organizações são estradas que só podem correr paralelas, afastando-nos de armadilhas e, ao mesmo tempo, potencializando as lutas necessárias.

Como em 2013, vivemos, hoje, sob um governo de centro ou centro-esquerda, capitaneado pelo PT, mas dividido com diversos outros partidos e ideologias. Isso em um país cujo sistema político compõe-se como presidencialismo de coalizão, exigindo certo jogo de cintura para levar adiante projetos sem apelar – ou ao menos sem render-se – a fisiologismos e interesses escusos. Assim, o atual governo, como o de 2013, caminha constantemente em uma corda bamba, buscando equilibrar-se entre o projeto vencedor nas urnas, de mais direitos para a maioria da população, e um sistema partidário e um Congresso que muitas vezes puxa para o outro lado.

É nesse contexto que os movimentos populares precisam operar, o que não é fácil. As relações com os governos anteriores, de Temer e Bolsonaro, eram mais óbvias: pressão e resistência. Agora, a complexidade é grande e não há caminhos óbvios. Tudo o que aconteceu em 2013 e a partir dali ajuda a entender essas ambivalências e o que pode resultar dos diferentes manejos possíveis.

O governo Lula já tem e terá ao longo de todo o mandato pressões à direita. Essas pressões geram um ambiente institucional e social de consenso à direita. A não ser que haja, também, pressões no sentido contrário. O próprio Lula já disse mais de uma vez que os movimentos populares e sindicatos precisam manter-se mobilizados para empurrar o governo rumo a transformações democratizantes da política e da economia. Estar nas ruas para defender os interesses da população é, além de tudo, pragmaticamente funcional se queremos manter o governo de pé e vinculado à agenda eleitoralmente vitoriosa. Ao mesmo tempo, essa ação política deve estar claramente diferenciada da direita, das elites, sob pena de jogar água em um moinho que possa enfraquecer o governo até o ponto deixá-lo inoperante ou, pior, insustentável. Não se trata de uma matemática fácil.

A democratização interna de movimentos e sindicatos, já citada rapidamente acima, é instrumento nevrálgico para minimizar esse problema. A qualificação da participação política da população passa por movimentos e sindicatos fortes, articulados com as bases e conectados com as exigências dessas bases e com os instrumentos de luta contemporâneos. A expertise das organizações sindicais e sua capacidade de aglutinar pessoas em torno do que é fundador e central na sociedade capitalista – o mundo do trabalho – é fundamental para aumentar as chances de que as lutas gerem transformações benéficas para a maioria da população. Ao mesmo tempo, a aliança com os novíssimos movimentos populares, o reconhecimento das potencialidades da internet e a construção de estruturas de comunicação pujantes e libertadoras são caminhos igualmente imprescindíveis.

Da parte do governo e dos partidos progressistas ou de esquerda que o compõem ou apoiam, também não se pode apenas esperar as pressões externas. O processo de 2013 chamou a atenção para a falta de porosidade tanto do governo federal quanto dos estaduais e municipais. A democracia brasileira ainda inclui o povo de forma muito marginal, com pouca escuta e menos ainda possibilidades de influência nas dinâmicas decisórias. Tornar o Estado mais aberto à população organizada, aprofundar a democracia e fortalecer a voz dos movimentos populares é uma das estratégias possíveis e necessárias para que os movimentos populares possam ocupar as ruas sem receio de servir às elites e para que processos de mobilização por mais direitos não acabem capturados e redirecionados em sentido oposto.

* Jornalista, cientista social, Doutor em Comunicação. Autor de “Nada será como antes – 2013, o ano que não acabou, na cidade onde tudo começou”, editora Libretos.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko