Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | A extrema direita descobriu os direitos humanos após 8 de janeiro?

Comitiva de parlamentares bolsonaristas erra destino do Comitê de Direitos Humanos da ONU

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Dos 1,5 mil presos em 9 de janeiro, cerca de 250 continuam em regime fechado - Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Brasil tinha, no fim do ano passado, população prisional de 832 mil pessoas. A esse total foram acrescidos cerca de 1,5 mil homens e mulheres nos presídios da Papuda e da Colmeia, ambos em Brasília, no dia seguinte aos ataques de 8 de janeiro. Esse grupo parece ter mudado radicalmente a percepção da extrema direita sobre direitos humanos nos cárceres, mas uma mirada mais ampla não autoriza essa conclusão.

A trajetória do deputado federal Marcel van Hattem (NOVO/RS) é um bom exemplo. Há uma semana, ele integrou comitiva de parlamentares bolsonaristas em viagem ao exterior. O objetivo era internacionalizar a luta em defesa daqueles que são considerados presos políticos pela extrema direita e entregar ao Comitê de Direitos Humanos da ONU documento acerca de violações sofridas pelos denunciados por crimes tais como associação armada, tentativa de abolição violenta da democracia e de golpe de Estado. O deputado começou a alimentar seus seguidores com uma live antes do embarque no aeroporto de Guarulhos, mas a falta de intimidade com o tema talvez justifique sua viagem com destino a Nova York, pois o Comitê de Direitos Humanos da ONU fica em Genebra, na Suíça.

Em 2014, o ainda desconhecido Marcel van Hattem tentava uma vaga na Assembleia Legislativa gaúcha pela terceira vez. Durante uma atividade de campanha no Parque da Redenção, em Porto Alegre, ele cruzou com a petista Maria do Rosário, empunhou seu megafone e disparou hostilidades à deputada federal. “A senhora nos envergonha, porque a senhora defende bandidos.”

Seu vídeo viralizou no YouTube e, assim, ele teve seu primeiro mandato estadual. Pois foi em 2014 que repercutiu a expedição de medida cautelar pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA) contra a violação de direitos no Presídio Central, em Porto Alegre. A CPI do Sistema Carcerário já havia escolhido o Central como o pior presídio do país em 2008.

Um de seus projetos propôs que os presos indenizassem o erário - com dinheiro, se tivessem, ou através trabalho - pela “estadia” em prisões como o Central. Embora inútil, cínica e perversa, a ideia foi um sucesso junto a seu eleitorado e ele se tornou o deputado federal gaúcho mais votado em 2018.

Inútil porque é inconstitucional, pois a Lei de Execução Penal (LEP) é federal, além de cláusula pétrea vedar trabalho forçado nas prisões. Cínica porque são exceções os estabelecimentos penais onde os presos têm função laboral remunerada. Perversa porque a LEP prevê, antes de indenizar o estado pela “estadia”, que a remuneração recebida pelo preso seja usada, quando possível, para reparar prejuízos sofridos pelas vítimas. Seu projeto não se ocupa de vítimas reais.

Entre 1990 e 2017, a população prisional brasileira cresceu absurdos 700% e ela continuou aumentando mesmo durante a pandemia da covid-19, embora houvesse recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para diminuir a superlotação. Seu perfil estatístico é de um homem jovem, pouco escolarizado e pobre. Furtos, roubos e tráfico somam cerca de 75% das condenações. Os negros são quase 70% da população encarcerada. A construção de novas prisões não consegue conter o excedente de presos e há muitas pesquisas dedicadas a compreender o complexo fenômeno que implica segurança e sistema penal, bem como seus muitos desdobramentos e custos.

Dos 1,5 mil presos em 9 de janeiro, cerca de 250 continuam em regime fechado. Embora não haja estatística conhecida, a julgar pelos vídeos gravados na porta de quartel e dos ataques na Praça dos Três Poderes, seu perfil estatístico é visivelmente diferente: mais velho, mais branco, mais escolarizado e mais situado nos estratos médios da pirâmide social.

“Quem está lá preso, a maioria das pessoas são trabalhadoras de sol a sol, que pagam seus impostos, são pais de família, crentes”, descreveu a advogada gaúcha Gabriela Ritter, presidente da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro (Asfav), durante audiência pública no Senado. Ela reconhece ter havido invasão e depredação de patrimônio por parte de alguns, que devem ter suas condutas individualizadas e direito à defesa, mas refuta a acusação de tentativa de golpe, um crime pelo qual seu próprio pai foi denunciado. A Asfav elaborou um relatório com as violações de direitos, que é a base do documento levado pela comitiva de aloprados a Nova York. Não tenho dúvida de que ela sofre como filha, embora possa discordar de suas elaborações.

Nas franjas à esquerda, a cobrança pela punição aos responsáveis pelos ataques de 8 de janeiro, não raras vezes, confunde-se com vingança social, o que deve ser afastado de juízos sérios e julgamentos justos. Embora seja utópico pensar em um mundo sem prisões, devemos, como já assinalou Angela Davis, pensar mais em noções de restituição e de reparação por parte de quem violou o direito, o que diferencia um “homem mau” do “homem que errou”.

Na extrema direita, infelizmente, a negação da sequência de eventos que antecedem os ataques de 8 de janeiro e seu continuado proselitismo selvagem não contribuem para alcançarmos um futuro sem violações e com respeito por direitos humanos para todos os presos.

* Jornalista e mestre em Antropologia Social

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko