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Coluna

O desconhecido interior: entre Freud e Clarice Lispector

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"Às vezes, você não estranha de ser você? E então, como lida com esse estranhamento?" - Reprodução da obra de Renato Rodyner
Iludimo-nos pensando que, ao segurarmos firmemente às rédeas da vida, sofreremos menos

Você de repente não estranha de ser você? - Uma potente frase de Clarice Lispector, que une psicanálise e poesia, evocando o estranho que habita em nós. Esse tema também foi minuciosamente investigado por Freud em seu texto “Das Unheimliche” (1919), que pode ser traduzido do alemão para “o estranho”, “o inquietante” ou “o infamiliar”.

Clarice, no conto Mineirinho, escreve “Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”. A origem da poesia se dá deste estranhamento, da mesma forma a origem da arte. Tem algo que nos captura, mas não sabemos bem o quê. 

Em Freud, o estranho está associado ao terrível, algo que nos provoca angústia e horror. No entanto, também está relacionado ao próprio estranhamento interno, que é parte intrínseca da nossa existência. Esse sentimento pode ser desencadeado por um olhar no espelho, uma mudança estética ou o encontro com algo novo que nos desacomoda profundamente. 

Freud aponta que o estranho é o assustador que remete ao familiar e conhecido, de forma paradoxal. Uma palavra dita pode ser o gatilho para uma explosão de raiva, o encontro com determinado animal pode causar uma crise de ansiedade ou até mesmo acompanhar alguma situação pode nos remeter à impotência de controlar o nosso próprio corpo. Há um não saber sobre si que sempre está em jogo.

Descobrimos que não somos senhores absolutos de nossa mente e desejo, por mais assustador que isso possa ser. A própria Clarice, no conto “Os desastres de Sofia”, escreve que “O que quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de doçura, entendido pela minha ignorância. Ignorância que ali em pé — numa solidão sem dor, não menor que a das árvores — eu recuperava inteira, a ignorância e a sua verdade incompreensível”. Clarice escrevia a partir de um lugar de estranhamento, do desconhecido, do olhar inaugural da criança, da procura pelo entendimento da diferença. “Nunca saberei o que eu entendo, o que quer eu tenha entendido no parque”, diz a autora.

O próprio amor que move a humanidade transcende do nível consciente, não pode ser ligado e desligado arbitrariamente. Mesmo tentando controlar a vida com rigidez, antevendo as surpresas que podem nos deslocar, falhamos miseravelmente. Tudo planejado, tudo organizado, tudo no lugar. Mas de repente não é justamente a taça mais especial que quebramos quando vamos lavar a louça?

Sempre há algo que nos escapa. O inconsciente persiste até ser escutado. Iludimo-nos pensando que, ao segurarmos firmemente às rédeas da vida, sofreremos menos ao longo do caminho. Mas não será justamente o oposto? A rigidez nos leva a rejeitar até mesmo o que nos causa estranheza. Uma palavra que escapa, um sonho enigmático, uma risada fora do contexto.

Às vezes, você não estranha de ser você? E então, como lida com esse estranhamento? Escrevendo poesias, falando em análise, pintando quadros, criando esculturas, lendo livros, assistindo peças de teatro, construindo saídas outras para compreender um pouco mais sobre esse eu interior que às vezes aparece de forma tão assustador quanto o décimo terceiro tiro em Mineirinho.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko