Rio Grande do Sul

Coluna

A morte, o ato mais natural da vida

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"Só ela, uma gata-bruxa, que foi-se apagando como uma estrelinha, para deixar tanto amor e descobertas ao longo de quinze anos" - Arquivo pessoal
Eu te abraço para sempre, minha gatinha, e te deixo uma pedrinha e a vela acesa

Penso no título deste texto e penso na síntese dos últimos dias.

Poderia dizer que o maior aprendizado que me deixou a gata cristie (que não é igual que chamar ela de Ágata Christie) é a naturalização da morte.

Só ela, uma gata-bruxa, que foi-se apagando como uma estrelinha, para deixar tanto amor e descobertas ao longo de quinze anos.

Foi ela quem me ensinou a falar em gatês. Tão linda e tão particular com seu meio bigode que, desde o início, eu disse: um dia vamos fazer um autorretrato juntas?

Quando chegou em casa, em abril de 2008, ela tinha uma energia que a fazia correr e brincar com qualquer bolinha improvisada. E eu dizia dale Marta!

Também por isso, segunda-feira 24, cedo de manhã, acordei ela e a sua outra humana, Clarisse, que dormiam juntas embrulhadas em vários cobertores e levei-a para o sofá da sala. Tínhamos que assistir juntas o primeiro jogo da seleção brasileira que me nego a chamar de feminina. Me poupem. De mulheres, tá? Se vocês já leram alguma outra escrita minha, bem sabem da minha implicância em associar o femininO com as mulheres e pessoas socializadas e lidas como tal. (Eu sou andróginx, nem femenine, nem masculine.)

Anos atrás, escrevi um poema “Lo que puedo y lo que no”, no qual falava das coisas que podia, dentre elas, criar uma gata brasileira. Em outro, mencionava os olhos verdes da gata cristie e dizia que esse era meu lar. De tudo isso fui lembrando ontem, enquanto minha amora felina fazia sua passagem. Uma hora, quando já estava postradinha, porém ainda com certos movimentos, perguntei a ela se queria que eu lesse um poema. Levantou a cabecinha e me olhou. Então levei o livro Amor, placer, rabia y revolución, onde estamos juntas na contracapa e fiquei lendo nossos e outros poemas. Também do Grito de mar. É que a gata cristie faz parte da minha vida há 15 anos.

Quantos poemas cabem em todo esse tempo?

Nesta vida eu não fui mãe de humanxs, mas tive gatas e gatos.

A passagem da gata cristie mexeu muito comigo, ela nos deu a possibilidade da despedida. Ao longo de dois dias, foi nos preparando para sua partida. Sem ficarmos partidas? Será isso possível?

Na quinta-feira 20, depois de receber reiki, ela deixou sua mensagem: até aqui. Rejeitou de maneira contundente todo tipo de medicamentos e seringas pela boca e foi deixando de comer e de tomar água. Ela estaria organizando sua partida para desencarnar no 25 de julho, dia das escritoras/es?

Sem a gata cristie, e só com Violeta, a casa deixará de ser um gatriarcado?

Dias atrás, quando sua doença renal ia avançando, eu falei para Clarisse que gostaria de velá-la. Fazer uma despedida. Eu tinha muito medo de como seria seu final. Só sabia que não queria que ela sofresse. Assim como foi com Sofía, a gata que veio junto comigo de Buenos Aires. Com dez anos ela teve um câncer terminal e quando vimos que a químio não ajudava mais, optamos pela eutanásia. Tudo que não podemos com seres humanos eu quero oferecer aos meus seres animais. E assim foi-se a nossa Fufi. Em paz e com muito amor. Mas não fizemos nada, na época, mais do que chorá-la e lembrá-la.

Minha mãe, em vida, me ensinou a importância das despedidas. Minha vó (que também teve um câncer fulminante) deixou tudo bem anotado em um caderno, o que fazer e o que não, uma vez que ela tivesse desencarnado. Nada de velórios. Deveria ser cremada e suas cinzas jogadas nos parques de Palermo, em Buenos Aires. Corria o ano de 1978 e isso era muito de avançada. Assim foi Paulina, mi abuela. Mas para minha mãe faltou a despedida do velório. Da calma que vem depois da tormenta. Desse tempo à toa que a gente está com o ser que parte. Isso tudo chegou a me falar quando eu tinha apenas dez anos.

Contudo, décadas mais tarde, minha família sanguínea me negou a possibilidade da despedida da minha mãe. Eu já morava em Porto Alegre e fui informada por e-mail, dois dias depois que ela falecesse, depois de uma longa doença, quando já tinha sido velada e cremada. Conto isso para mostrar a minha necessidade de uma despedida.

Não chamo à gata cristie de filha, mas amo ela com um amor sem fronteiras, sem limites, sem nomes. Eu precisava estar junto na sua passagem à morte, e conversar e fazer cafuné e sim, ler poemas. Descobrindo juntas qual o jeito de ser/estar em esses momentos que nunca (es)tive.

Meu sobrenome, Pessah, significa passagem na língua hebraica. Melhor herança que recebi.

Assim como a minha mãe “organizou” sua partida para o mesmo dia do seu nascimento, 12 de maio, deixando uma única data de recordação; a gata cristie, planejou sua viagem derradeira para o dia das escritoras/es.

Neste 25 de julho, a gata cristie pôs o ponto final na sua vida na Terra e as redes sociais falam alto: “A gata mais inspiradora das escritoras feministas. Deixa saudades...”, “que bonita sua vida com a gata Cristie, que se tornou uma referência de gata entre nós, até, por seus poemas e carinho de tantos relatos...”

Eu te abraço para sempre, minha gatinha, e te deixo uma pedrinha e a vela acesa. Tu já conheces o caminho. Nosso lar, agora, será na poesia.

* mariam pessah : ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre desde 2017 e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta. 

** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko