Rio Grande do Sul

MILITÂNCIA

'Sou outra pessoa', afirma o médico Ronald Wolff ao retornar da terra Yanomami

Integrante da organização Médicos e Médicas Populares relata ao Brasil de Fato momentos da experiência

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Equipe da 10ª Missão Yanomami participou da Força Nacional do SUS (FN-SUS) no estado de Roraima - Arquivo Pessoal

“Nenhuma dor humana é secundária”. Com a frase de Rosa Luxemburgo o médico Ronald Selle Wolff começa a explicar a motivação que o levou a integrar a Força Nacional do SUS (FN-SUS) no cuidado dos povos Yanomamis no estado de Roraima (RR), por ocasião da violência e da devastação do ambiente das comunidades indígenas, promovida pela atividade predatória do garimpo e pela total omissão dos governos Temer e Bolsonaro. Essa atividade tem nome de Missão Yanomami e é implementada pelo governo federal, através do Ministério da Saúde (MS).

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Dr. Ronald é um militante experiente, integra há muito tempo a organização dos Médicos e Médicas Populares. Já esteve em inúmeras instâncias de luta, assessorou greves de fome, caminhou junto dos trabalhadores rurais sem terra (MST), atuou em espaços periféricos em conflito, ainda hoje assessora os projetos do Instituto Cultural Padre Josimo e as ações do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Justamente esse histórico o levou a ser chamado, em maio passado, para integrar a Missão Yanomami. Como é seu costume, colocou-se a serviço. Depois de cumprir a tarefa, executada de 7 a 24 de junho, retornou a Porto Alegre. E nesse retorno trouxe lembranças de dias de trabalho, empatia e aprendizado.

“Eu volto outra pessoa, sem dúvida, sou outra pessoa”, afirma logo no começo da conversa, deixando claro o quanto a vivência foi intensa mesmo para um militante social experiente. Conta que depois que foram reveladas as imagens do que estava acontecendo lá, em meados de janeiro, tudo foi muito rápido. Dois dias depois o presidente Lula descia em Roraima com seus ministros. Mais dois dias se passaram e a Força Nacional do SUS começou a atuar. Desde lá, o esforço foi contínuo, com forte participação da organização dos Médicos e Médicas Populares e da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia, bem como de profissionais enfermeiros, técnicos em enfermagem, entre outros profissionais.  


Equipe reunida durante o planejamento das ações da Missão Yanomami / Arquivo Pessoal

Povos Yanomami foram submetidos ao risco de extermínio

O médico relata que em janeiro “viam-se idosos, adultos e crianças em situação degradante, morrendo de desnutrição e intoxicação por mercúrio decorrente da atividade do garimpo". Segundo ele, havia poluição total dos rios, devastação da floresta, falta de caça – que se retirou do local também por falta de condições de vida adequadas para os animais. "A pesca era pouca e contaminada por metais pesados. Estava severamente prejudicado o conjunto das condições necessárias à possibilidade de vida e sua qualidade no habitat dos Povos Originários da Selva Amazônica, da fauna e da flora.”

Desde janeiro sucederam-se de forma ininterrupta as missões da Força Nacional do SUS. A missão da qual Ronald participou foi a décima. Participaram junto os médicos Gustavo e Luan, a médica Clarissa, as enfermeiras Danila, Gisele, July Anne e Stéffane, os enfermeiros Maicon, Marigleison e Edcarlos e o técnico de enfermagem Paulo Rogério. Questionado se a motivação maior seria o sentimento de misericórdia frente as imagens terríveis que chegavam de lá, Ronald explica que é preciso ir um pouco além: “Quando decodificamos esta palavra, misere-cordia, ou seja, quem acolhe a miséria do outro em seu coração, a gente precisa encontrar o sentido do agir, precisamos ter misericórdia sim, mas também é preciso agir”.

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Mesmo depois de seis meses de atuação da Missão Yanomami, os dados apresentados à equipe ainda seguiam alarmantes. Os indicadores de saúde alertam, por exemplo, para a situação de malária – há comunidades com mais de 80% da população contaminada – e da oncocercose – segunda causa mundial de cegueira. “Não adianta sentir e só ficar olhando. Esse é o nosso jeito. Nesse sentido essa experiência tem muita tristeza, tem situações que nos deparamos com o caos instalado. Parece que não tem o que fazer, mas sempre podemos fazer algo, é só a gente ir fazendo o que dá. É como a história do beija-flor tentando apagar o incêndio na floresta, ele está fazendo a parte dele”, exemplifica.


Chegada da Força Nacional do SUS é sinal de esperança, mas há dificuldades extremas a serem enfrentadas / Arquivo Pessoal

Situações chocantes fizeram o militante experiente chorar

“Fui designado, juntamente ao enfermeiro Edcarlos e ao técnico Paulo Rogério, para atividade de acompanhamento dos pacientes internados na Casa de Saúde Indígena (Casai). Neste local ficam os indígenas que necessitam de atenção em nível de maior complexidade, trazidos das aldeias. Nossa responsabilidade consistia em avaliar os pacientes diariamente, prescrever, acolher novos pacientes e dar alta para aqueles que apresentassem remissão do quadro que os mantiveram internados. Essas pessoas vinham de sua aldeia acompanhadas de sua família, o que é uma tradição daquele povo. Também havia situações em que poderíamos ser solicitados para realizar remoções de casos graves nas aldeias, bem distantes, por situações como traumas, acidentes, infecções importantes, malária cerebral entre outras.”

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Durante os dias de missão, Ronald escrevia diariamente a amigos próximos que estavam no Sul. Além de compartilhar a vivência, os relatos via WhatsApp serviam também como uma espécie de desabafo, uma forma de dividir os sentimentos conflitantes que naturalmente atingiam os profissionais-militantes. Alguns casos marcaram profundamente:

“Recebi um jovem com trauma em membros superiores e inferiores além de laceração de períneo por queda de palmeira de açaí. Também uma mulher de 22 anos que foi barbaramente agredida a pauladas pelo companheiro, com situação gravíssima, pois ela teve cortes profundos na cabeça, fratura de olécrano esquerdo e o pior: seu bebê de colo morreu por ter levado as pauladas que o companheiro desferira contra ela. O choro constante, de sofrimento da mãe que perdeu o filho por agressão do próprio marido suplantava as dores físicas dos golpes sofridos.”

Questionamos o que o médico faz nessa hora, mas quem responde não é o profissional e sim o ser humano: “A tristeza e a falta de brilho nos olhos misturados com o fino som do choro de desespero entravam em meus ouvidos como açoite! Tentei, na ilusão de poder ajudar, consolá-la. Decidi não realizar exame físico naquele momento para respeitar seu sofrimento de mãe que perdera o filho. Ofereci apenas a minha presença e afeto. Precisei buscar alívio em um canto isolado de prescrição para poder esconder o choro. Jamais esquecerei a expressão dos olhos daquela mulher!"


Situação enfrentada pelos Yanomami ainda é muito grave e requer mobilização contínua (foto editada para preservar a identidade dos pacientes) / Arquivo Pessoal

Sorrisos, esperanças... Perigos, medo...

Outra lembrança que comove o médico é a de um menino de 7 anos que, por conta do descuido dos pais, ambos alcoolistas, havia sofrido traumatismo craniano e estava internado há bastante tempo. “A criança alimenta-se por gastrostomia, que é uma sonda introduzida no estômago por acesso abdominal. Todos os dias, ao examiná-lo, dava um tempo maior para ele, já que ele raramente tinha com quem interagir. Eu tinha um sentimento muito grande de empatia e amor por esse garoto. Ele interagia bastante comigo, e chegou a dar umas gargalhadas. Todos os dias eu dedicava alguns momentos para dar atenção e carinho para ele. Ele ficava muito feliz, era quando ele esboçava um lindo sorriso e brilho nos olhos capaz de fazer qualquer pessoa derreter-se de carinho. No último dia fui vê-lo. Meu Deus, parece que ele já sabia, ou leu em meus olhos! Ficou um pouco ansioso, mas logo se acalmou, e me olhava como se me perdoasse ou consolasse pela partida. Todos os dias lembro deste curumim, rezo por ele, como se estivesse mandando um Xabore.”

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Que tipo de reflexão se faz em momentos como estes? “Passei esses dias, juntamente com meus colegas de Missão, com mistura de sentimentos. Uma parte de mim sentia-se honrado por ter sido chamado para agir em uma situação tão grave, por ter sido considerado capaz de ajudar a enfrentar uma situação daquela magnitude. Outra parte sentia tristeza. Desespero pela situação das pessoas que tiveram sua vida completamente devastada pela ganância dos descendentes dos colonizadores que chegaram às Américas há pouco mais de 5 séculos e que continuam vendo, neste continente e no seu povo, oportunidade de explorar, de extrair até as últimas consequências, as riquezas do subsolo, sem importarem-se com o danoso impacto causado ao meio ambiente e aos seus habitantes. Experimentei muitos momentos de reflexão sobre o que estava realmente ali acontecendo, sobre qual seria nosso papel nesta realidade, sobre qual seria o meu papel ali e na equipe.”

Ronald explica que a experiência vivida tem muito de preocupação, de tristeza e de medo. A sensação de perigo é onipresente. “O colete da Força Nacional do SUS não pode ser utilizado em qualquer lugar. A cidade, os espaços por onde a gente andava, ainda estavam repletos de garimpeiros. Estávamos num posto onde todos sabem a localização. Precisava ter segurança acompanhando constantemente. O medo é real. Sabemos que ali nós somos uma ameaça para eles, para além do que podemos fazer por aquelas pessoas, nós estamos ajudando a escancarar para o mundo o que aconteceu e o que ainda está acontecendo ali. Tem olhares do mundo todo se dirigindo para ali. Lideranças indígenas já se manifestaram em diversos momentos comentando que quando os coletes azuis da Força Nacional do SUS chegam ao território passa a vontade de chorar, porque conseguiam voltar a sentir esperança. Ouvir isso nos fazia conseguir respirar com um pouco mais de alívio”.


Infraestrutura para prestação de serviços de saúde segue sendo um desafio a parte a ser enfrentado / Arquivo Pessoal

Cada um precisa fazer a sua parte

Há solução? A resposta é direta: “Sim. A solução é acabar com o garimpo. Essa é a única solução possível. Dar condições para os povos indígenas daqueles territórios retomarem seus modos de vida, em harmonia com o habitat. Ainda há muito a ser feito. Ainda tem garimpo sim, ainda tem violência. Mas é possível construir uma solução e devolver a dignidade àqueles povos.”

Se por um lado os profissionais da Medicina e da Enfermagem levam saberes importantes até os Yanomamis, também é fato que aprendem muito com os povos amazônicos: “Aprendemos sim, muito. A gente vê o jeito diferente deles, o modo de vida, a cultura que precisa ser respeitada. Apesar do sofrimento, são um povo bem humorado, são um povo forte, de muita resistência”. E dessa interação, vem transformação: “Precisamos ser vigilantes com a nossa atitude, para que nós não estejamos ali também representando a invasão do homem branco. Perder a ternura é algo que não precisamos deixar acontecer ali. Precisamos aprender a nos colocar no lugar deles”.

Ronald costuma falar que a prática da Medicina em meio ao povo fez dele “um médico de homens, mulheres e almas”. Esses dias entre os Yanomamis levam essa condição a um novo patamar. “Volto outra pessoa, sem dúvida, sou outra pessoa”, ele repete. “Não transformado por presenciar mais uma tragédia humana. Mas sim, muito impactado por perceber como permitimos que essa situação chegasse a esse ponto. O que o governo passado fez? Foi negligência, incompetência ou foi intencional? Os Povos Originários estavam atrapalhando seus planos de derrubar a floresta para criação de campo de gado e plantação de soja para exportar para as vacas da América do Norte?"

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Segundo ele, voltou outro, mais decidido da importância de agir. "A causa dos Povos Originários é também nossa! A vida e a sua qualidade devem sempre ser compromisso de todos e todas! A saúde é direito do cidadão e dever do Estado, conforme nossa Constituição! A fome é a maior vergonha da humanidade! Devemos sair desse estado de anestesia diante da fome! O olhar de uma criança faminta, esteja ela nas ruas das grandes cidades, no campo ou nas aldeias, não pode permanecer sem uma resposta digna da parte de toda a sociedade!", salienta.

Para o médico, a fome e a pobreza devem causar mais indignação e mobilização do que a desclassificação do nosso time do campeonato, das peripécias dos vilões das novelas, ou de tantas questões que são tão pequenas diante das tragédias humanas, mas que povoam demasiadamente as preocupações das pessoas, e que acabam sendo assunto no ônibus, no trabalho, ou nos encontros em família.


"O beija-flor faz a sua parte para apagar o incêndio na floresta", exemplifica Ronald Wolff para falar do trabalho de cada membro da FN-SUS / Arquivo Pessoal

"Precisamos apenas uns dos outros"

Será que valeu a pena? “Eu fiz universidade pública, então é uma forma de eu devolver um pouco para a sociedade o investimento que a sociedade fez em mim. É uma honra poder participar de projetos de voluntariado e de lutas como esta. Meu sonho é fazer o que eu estou fazendo, falar a língua do povo, poder estar junto, sentar no chão e conversar, brincar com as crianças e ver que os pais têm olhos tranquilos porque sabem que nem eu nem meus colegas vamos abusar delas”.

Mas essa postura de evitar os estereótipos de uma profissão que se tornou para muitos exemplo de ostentação, também arrecada críticas de muitos pares que não abrem mão do conforto e da segurança dos seus gabinetes clínicos. “Eu não me meço por aqueles que me odeiam e até acho bom que essa gente não goste de mim. Eu me sinto realizado, sendo filho de um marceneiro e de uma dona de casa, vindo da periferia, por conseguir chegar até as pessoas, conseguir atingir de forma tão intensa. O que me deu essa condição não é nem mesmo o esforço que possa ter realizado, mas sim simplesmente por eu continuar me articulando coletivamente com as pessoas que valem a pena. É querer estar do lado certo. Me sinto como ser humano contemplado, realizado, sinto a vida em plenitude quando eu não fico calado e parado diante do sofrimento e quando consigo de alguma forma transformar esse sofrimento em alivio e as vezes até em alegria.”

Os dias de trabalho incessante não cansaram o médico-militante. Ao contrário, retornou energizado. “É hora de agirmos. De não mais aceitarmos tantas desgraças sem que tenhamos uma atitude efetiva como cidadãos e cidadãs e como sociedade. Que tenhamos um Poder Público, Executivo, Legislativo e Judiciário que priorize as pessoas sempre, em relação a todas as outras questões, e o faça com equidade. Mas que, principalmente, sejamos todas e todos nós os primeiros a protagonizar essa tomada de nova postura! Que tomemos nós as rédeas das nossas vidas e pautemos o Estado a partir das prioridades reais para que a vida e sua qualidade seja a meta constante, real e efetiva! E que, em relação a resolução dessas prioridades e a evolução, lembremos o que nos dizia Carlito Maia: para realizarmos nossos anseios e transformar todos os nossos sonhos em realidade, não precisamos de muitas coisas, apenas uns dos outros."


Edição: Katia Marko