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Densidade urbana em tempos de revisão do plano diretor de Porto Alegre: reflexões a partir do Censo 2022

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"Para que a política habitacional contemple de fato a população compreendida no déficit habitacional é necessário que a gestão municipal se comprometa no direcionamento de políticas que respondam às demandas da população"
"Para que a política habitacional contemple de fato a população compreendida no déficit habitacional é necessário que a gestão municipal se comprometa no direcionamento de políticas que respondam às demandas da população" - Foto: Luciano Lanes/PMPA
A expansão do mercado imobiliário não acontece sem estímulo do Estado

Em junho de 2023 foram divulgados os dados iniciais do Censo 2022 realizado pelo IBGE no segundo semestre do ano passado. Paralelamente, em Porto Alegre, vem sendo realizada a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA), comandada pela Prefeitura Municipal (PMPA). Neste artigo seguimos com as discussões do que os resultados do Censo nos dizem ou podem nos dizer. 

No novo Censo duas tendências chamam a atenção: a perda demográfica de Porto Alegre (um recuo de -5,45% entre 2010 e 2022), o aumento no número de domicílios (19,58%) e, especialmente, o número de domicílios vagos (101.013), que, somado aos de uso ocasional (27.250), perfazem 18,65% do total. Os dados apontam para a necessidade de pensarmos sobre a atual produção habitacional realizada pelo mercado na cidade, que tende a se concentrar especialmente em setores valorizados, ou com expectativa de valorização. Além de produzir para a chamada “demanda solvável” (setores de alta e média renda, com acesso ao crédito imobiliário), deixando pouco espaço para a produção habitacional para quem está fora das ofertas de mercado.

Os dados do IBGE suscitam a reflexão sobre a densidade urbana e o que significa densificar algumas áreas do município, proposta em voga nos discursos dos atuais gestores municipais. Precisamos refletir como esses dados confrontam a narrativa da PMPA que propõe a necessidade de densificação de áreas já consolidadas em altura ao longo da orla do Guaíba e, principalmente, na área central da cidade. O Censo nos mostra, a partir de dados ainda preliminares, uma realidade que precisa ser compreendida de forma mais ampla e que depende de dados que ainda não foram detalhados. Apesar disso, observa-se o descompasso entre densidades construtiva e populacional.

A partir daí - considerando a atual revisão do PDDUA - importa entender o que é a densidade enquanto indicador de compreensão de como nos distribuímos territorialmente no município, sobretudo em metrópoles tradicionalmente mais populosas, como Porto Alegre.

A densidade trata da relação entre uma área e o universo de objetos ou sujeitos que a ocupam, sendo um componente estrutural para pensar as cidades. A densidade urbana é a razão entre o número de domicílios (de preferência ocupados) e o espaço de referência. A densidade traz implícitos aspectos que só um olhar mais atento da realidade revela: a) os domicílios ocupados possuem tamanhos, quantidades de pessoas e qualidade do espaço muito distintos; b) esta ocupação em geral mistura a quantidade de domicílios com outros espaços da cidade, como os espaços abertos e áreas non-edificandi, que acabam por diferenciar espaços em extensão, distinguindo as localizações mais privilegiadas, ou seja, aquelas que possuem infraestrutura básica, daquelas em situação de precariedade.

As condições territoriais específicas de Porto Alegre interferem na forma como as pessoas se distribuem - e há uma lógica locacional que não pode ser ignorada. Na porção norte do município está a maior concentração de pessoas e domicílios, com maior número de prédios onde há bairros economicamente mais dinâmicos, tais como: o Centro Histórico, Moinhos de Vento, Petrópolis, entre outros. Nestes, há prédios mais altos, em função de suas vantagens locacionais (proximidades a eixos viários importantes, a equipamentos urbanos atrativos e valor paisagístico). Sua população pode escolher onde morar; em geral, se desloca de automóvel para o trabalho ou amplia as estatísticas do home office pós covid-19 e participa de uma cidade que interessa ao setor imobiliário, que tende a investir em áreas já consolidadas, com claro apoio da municipalidade.


Exemplo de investimento imobiliário que amplia as densidades / Fonte: Reprodução de publicidade

Nas bordas dessa área consolidada encontra-se uma alta concentração de assentamentos precários que tende a aumentar - de 55.994 domicílios em 2010 com estimativa em 2019 de crescimento para 61.729, segundo o IBGE - sem infraestrutura e em moradias com baixa qualidade habitacional. Mais horizontalizadas, estas concentram um grande percentual da população de baixa renda que habita e trabalha em Porto Alegre, usando ônibus ou bicicleta para ir aos locais de trabalho, quando não, a pé.

Tal realidade não aparece nos dados e no horizonte de planejamento em curso da PMPA na revisão do PDDUA, pelo contrário: no Seminário realizado dia 30 de julho passado verificou-se que, além de não aparecer com clareza na fala e nos dados oficiais, as áreas de alta precariedade e qualidade habitacional são sobrepostas pela proposta de um novo modelo espacial apresentado pelo arquiteto argentino Roberto Converti (estranhamente num Seminário que se propunha à Leitura da Cidade!) com previsão de expansão urbana para o setor de ocupação rarefeita, entre os morros e o setor rurbano. Sem dúvida, o colega portenho parece desconhecer as distintas densidades do município!


Modelo espacial proposto pela Prefeitura para a revisão do PDDUA / Fonte: PMPA - Avaliação das Estratégias e Consolidação da Leitura da Cidade, p. 25

O inquietante silêncio da PMPA sobre a dualidade - já tão antiga - entre ricos e pobres em Porto Alegre, é mais do que uma das expressões do projeto neoliberal de valorização dos setores imobiliários: é uma clara exclusão das pessoas que moram sem condições de habitabilidade no espaço onde conseguem se estabelecer. A expansão do mercado imobiliário não acontece sem estímulo do Estado, que vincula-se mais aos interesses das construtoras e pautado pela lógica de mercado, do que à realidade objetiva e às reais demandas do município.

Nacionalmente, a expectativa de que o desalinhamento entre a atividade do setor imobiliário e a ocupação justa de domicílios na cidade pode ser mitigado com a volta do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Mas para que a política habitacional contemple de fato a população compreendida no déficit habitacional é necessário que a gestão municipal se comprometa no direcionamento de políticas que respondam às demandas da população.

* Heleniza Ávila Campos: professora do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbanos e Regional (Propur) da Ufrgs e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Núcleo Porto Alegre. Paulo Roberto Rodrigues Soares: professor do Programa de Pós-graduação em Geografia (Posgea) da Ufrgs e pesquisador do Observatório das Metrópoles, Núcleo Porto Alegre. Nicole Leal de Almeida: doutoranda do Propur da Ufrgs e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Núcleo Porto Alegre.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko