Rio Grande do Sul

Coluna

Fator Gal

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Gal, dona do cristal na voz, não falava sobre sua intimidade visto que a mídia hegemônica, essa máquina de moer histórias, nunca teve muita polidez ao abordar esse tema"
"Gal, dona do cristal na voz, não falava sobre sua intimidade visto que a mídia hegemônica, essa máquina de moer histórias, nunca teve muita polidez ao abordar esse tema" - Marcos Hermes/Divulgação
É revoltante pensar que o que matou Gal seja, justamente, o fato dela ter sido quem é

Caminhávamos à noite, eu e mariam pessah, retornando de um evento destinado à visibilidade lésbica e nossos corpos e diálogos atravessados por um certo incômodo. Compartilhamos os trânsitos entre Brasil e Argentina e discutimos as diferenças e percepções observadas entre os movimentos lésbicos nos dois países, de maneira bastante crítica. Nessa diferença, constatamos que há algo que ainda não alcançou inteligibilidade acerca da existência lésbica, e talvez o que projete tais existências seja, justamente, politizá-las e não reduzi-las, uma vez que reduzidas, seremos silenciadas e invisibilizadas.

Explico: na Argentina, é usual que a palavra lesbiana venha desacoplada da palavra mulher. As lésbicas são justamente aquelas que se recusaram a tornarem-se mulheres como esperado pelo patriarcado, tal como apontou Monique Wittig. É praticamente uma identidade de gênero em si, para além de uma expressão de gênero, sendo o apagamento de sua possibilidade descrito por Adrienne Rich que, brilhantemente, evidencia o continuum lésbico recuperado com a saída do armário. No Brasil, o termo lésbica é simplesmente associado a uma orientação sexual cuja manifestação pública de afeto, não raro, vulnerabiliza quem se expõe à violência machista e à lesbofobia estrutural.

Talvez por isso Gal tenha silenciado. Ela, dona do cristal na voz, não falava sobre sua intimidade visto que a mídia hegemônica, essa máquina de moer histórias, nunca teve muita polidez ao abordar esse tema. Ao contrário, a propaganda heterocisnormativa sempre se encarregou de produzir ora abjeção, ora submissão do discurso às fantasias masculinas. A invisibilidade se produz na despolitização da temática e na necessidade de autoproteção.

É revoltante pensar que o que matou Gal seja, justamente, o fato dela ter sido quem é. É, porque segue sendo: uma referência estética, uma mulher que faz parte da história brasileira e da arte latino-americana. À altura de seu reconhecido talento se interpuseram as dificuldades em buscar ajuda para romper uma relação abusiva que se tornou pública a partir da reportagem da revista Piauí. Pessoalmente, eu já havia escutado relatos sobre essa violência a partir de uma amiga, jornalista, cujo amigo havia trabalhado na produtora da cantora e presenciado tais cenas. Confesso que, à época, passou pela minha cabeça a pergunta “será que é verdade ou se trata, mais uma vez, da lesbofobia que se apresenta a partir da fantasia de que relações entre mulheres serão sempre perfeitas?”. Hoje, sei que esse muro de isolamento tem a espessura do silenciamento que se produz em torno das perguntas que não ousamos fazer.

Como muitas, o termo lésbica foi dirigido a mim como algo extremamente pejorativo. Minha própria mãe, diante de minha adolescência insubordinada ao adestramento de gênero, me dizia “sua lésbica, você tem que arranjar um namorado pra ver se a sua cabeça volta para o lugar”. Assim aprendi que meus relacionamentos compulsoriamente com homens deveriam ser orientados pela minha capacidade de negociar o estupro. Digo compulsoriamente pois, em meu entorno, onde estavam as lésbicas? Foram décadas de profunda solidão dessa experiência, conversava com mariam naquela noite. E, em 2023, nós, que já não somos mais tão jovens, ainda compartilhamos dessa sensação de solidão. Por que nossas amigas hétero nunca vão aos eventos conosco? Por que fogem? Do que tem medo? E então, pensávamos em Gal: se para nós o incômodo e a solidão ainda se fazem presentes, imagine para ela, de uma outra geração e uma artista internacionalmente reconhecida?

Não está tudo bem dentro da sopa de letrinhas enquanto silenciarmos as violências que acontecem entre nós. E não está nada bem silenciarmos a violência doméstica nos relacionamentos lésbicos, pois isso é a nossa própria morte política e apagamento desta identidade, de nossas existências. Falo sobre esse assunto em primeira pessoa, com conhecimento de causa.

Nasci no dia do orgulho lésbico, 19 de agosto. Certamente, quando nasci, uma anja torta, dessas que andam a colorir desejos, disse “vai Lara, ser viada na vida”. Naquele ano eu vivia uma união homoafetiva nem tão estável assim, permeada de ciúmes e conflitos. Era meu aniversário e colegas da faculdade me esperavam com um bolo, mas não consegui chegar para a comemoração. Conversávamos sobre um assunto sobre o qual não tínhamos consenso e, a cada resposta minha, o carro era lançado, em movimento, na direção dos postes do meu lado da via. Era noite e chovia. Silenciei, pois disso dependia a minha vida naquele momento. Pedi que voltássemos para casa, eu não tinha condições de estar diante de qualquer pessoa depois daquilo. Me recuso a dizer que era uma brincadeira e, com a violência vivida, aprendi que não devem ser usados pleonasmos: aquilo, se não era uma tentativa de homicídio, seguramente era tortura psicológica.

Foram meses negociando a separação, escutando insinuações de ameaças de morte e um isolamento social profundo decorrente da lesbofobia, do deboche e de uma campanha difamatória que só vim a descobrir depois da assinatura dos papéis que, segundo a outra parte, asseguraram a proteção de seu patrimônio, dada a nossa diferença de classe social e condições socioeconômicas. Tive a sorte desse processo ser mediado por um advogado que, ao chegar em seu escritório, me disse que a outra parte o havia procurado para tratar da separação, uma vez que “nós não tínhamos mais relações sexuais” e esse era o motivo pelo qual solicitara a dissolução, haja visto o não cumprimento das obrigações maritais previstas. Naquele momento, todas as minhas lágrimas explodiram. Até onde eu teria que me preocupar em negociar estupros? Fui acolhida, expliquei tudo o que estava passando, o medo que sentia e a paralisia que me impedia de registrar um boletim de ocorrência e sofrer, além de tudo, a violência institucional previsível no meu caso.

As explícitas ameaças de morte vieram depois da assinatura dos papéis, tanto diretamente quanto através de uma amiga da época do colégio. Outra conhecida em comum, lésbica, professora universitária e pesquisadora da violência doméstica, entrara em contato me orientando a trocar as senhas das redes sociais pois desconfiou, depois de uma conversa, que elx estava tendo acesso às minhas mensagens. Ali compreendi melhor porque as amigas hétero haviam desaparecido, o grau de perversidade a ser enfrentado e que caberia a mim estabelecer estratégias de autoproteção, visto que abrira mão de solicitar uma medida protetiva para poder continuar frequentando a universidade. É essa ferida em comum que eu trato de curar em cada acolhimento e acompanhamento que faço.

Não digo que aquela foi uma relação lésbica, pois meu conceito do que é ser lésbica é profundamente político. O continuum lésbico eu vivo com minhas amigas, inclusive trans lésbicas, irmãs de vida e imaginação, escrita e caminhada. Tortas com muito orgulho, e com as quais lamentamos toda a história que emergiu após a morte de Gal. Em sua memória, gratidão e profundo amor, que nunca mais nos calemos.

* Lara Werner é sanitarista com formação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e integra o programa Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade.

** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko