Rio Grande do Sul

Coluna

Carta-requiem para Enid Backes

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Obrigada Enid, por teres enfatizado que a agressão a uma mulher era equivalente à agressão à humanidade como um todo" - Reprodução
Enid, teu legado não nos permite recuar diante de nenhum desafio

Enid, querida, a imprensa e as redes sociais têm dito coisas lindas sobre tua travessia, sobre o tanto que fizeste pelas mulheres do Rio Grande do Sul, este estado que insiste em fazer de nós “gauchinhas bem-querer” e que é tão negligente conosco. Não vou me aventurar a ficar aqui falando da tua trajetória, pois isso todas, todos e todes sabem.

Fui uma adolescente e jovem dos anos 1970 que, por razões afetivas, achava que o pensamento crítico e o feminismo eram franceses. Então eu lia Sartre e Simone. Acontecimentos com minha família me fizeram sonhar em ser militante, aqui, no nosso contexto, pelos Direitos Humanos. E fui, sou até hoje. Foi nesta militância que tive contato com o feminismo e que ouvi falar de ti, que pensava e fazia todo mundo pensar nos Direitos Humanos das Mulheres.

:: Parte uma das mais importantes militantes feministas do estado, a socióloga Enid Backes ::

Obrigada Enid, por teres enfatizado que a agressão a uma mulher era equivalente à agressão à humanidade como um todo. Isso foi grandioso, e é muito atual, sempre vai ser. Mesmo se minha tomada de posição política foi muito cedo a de ser anarquista, pois repudio qualquer forma de exercício de poder sobre o outro, não posso deixar de te agradecer por teres participado da fundação do Partido dos Trabalhadores, que fez e continua fazendo tanta diferença na vida de cada cidadã ou cidadão deste país. Afinal de contas, não me escapa que vivo em uma República.

Queria te dizer o quanto me preocupa que não estejas mais entre nós, pois vejo que apesar de toda a ideia de sororidade que se inscreveu em nossas vidas nos últimos anos, infelizmente as mulheres ainda não conseguiram se desapegar totalmente da devastação feminina, que parece ser quase tão estrutural quanto o machismo, na nossa cultura.

Com certeza, proporias muitas formas atuais para pensarmos este problema da concorrência fálica entre as mulheres, e ultrapassarias em muito o pensamento de Freud e Lacan sobre ele. Ah, ia me esquecendo de te dizer que sou psicanalista, de formação freudiana e lacaniana, embora totalmente dissidente de qualquer leitura doutrinária do pensamento deles, o que me distancia muito dos barões e das baronesas da ortodoxia psicanalítica.

Tenho a honra de te dizer que não sou uma “femme de pouvoir”, e que tua trajetória de luta pela dignidade feminina tem grande participação nesta minha escolha ética. E também, tua radicalidade me ensinou a não abrir mão da minha. Hoje sou uma psicanalista feminista e decolonial, o que causa muito desconforto em vários colegas do meu entorno profissional. Azar de quem se incomoda.

Aliás, cada vez fica mais claro que os incomodados são os retóricos da psicanálise, que esbanjam domínio teórico, mas que nada ou quase nada dizem de suas práticas. Ora, a psicanálise sendo essencialmente uma práxis, fica difícil, mesmo impossível, uma interlocução com exegetas, não achas? Sinceramente, o pior de tudo é quando esses exegetas assumem um discurso combativo e crítico, mesmo revolucionário, mas que não passa de uma retórica sofista, vazia de uma ação efetiva sobre aquilo do qual falam.

Perdoe o desabafo, Enid, mas é que como muitas feministas, tua partida me impactou, me deixou órfã da tua produção, tão corajosa e necessária de um pensamento combativo, incisivo e certeiro sobre o que nós, em psicanálise, chamamos de “o mal-estar da cultura”. Obrigada por tudo isso.

Mas enfim, não tenho somente queixas, tenho também coisas boas a te contar, embora elas estejam atravessadas por terríveis sintomas da nossa realidade social contemporânea. Quero te contar que construí, nos últimos anos, um projeto de clínica popular psicanalítica, o “Projeto Gradiva”, junto com um grupo de colegas também feministas e decoloniais. Juntas acolhemos, em tratamento gratuito, individual ou em grupo terapêutico, mulheres em situação de violência. São mulheres periféricas, pobres e em grande parte, negras, cuja condição socioeconômica não lhes permite acesso a este tratamento no âmbito privado.

Como deves saber, infelizmente a rede pública de assistência, nos últimos anos, sofreu um sucateamento dos serviços de saúde mental. Há quatro anos estamos nesta empreitada, e temos cerca de 50 mulheres em tratamento. Sustentar este trabalho não é fácil, mas é muito gratificante, romper com a lógica fálica do “ter para ser” e produzir novas possibilidades para essas mulheres, uma verdadeira reinvenção de sua condição feminina.

E recentemente, Enid, firmamos parceria com o Ministério dos Direitos Humanos para darmos escuta clínica a mulheres vítimas de escalpelamento, no Pará. Chocante, saber que em pleno século XXI isso possa acontecer, mas acontece, por um amontoado de negligências, inclusive de Estado. Não vai ser simples, sustentar este trabalho, mas vamos enfrentar e lutar para que, como as 50 mulheres que hoje atendemos, elas também possam mudar de situação para seguir em frente em suas vidas.

Confesso que te conto tudo isso como quem pede coragem a uma mãe, mas na verdade, essa coragem, Enid, já nos deixaste no quanto lutaste pelas mulheres durante tua vida, teu legado não nos permite recuar diante de nenhum desafio. Cada enfrentamento desses vai ser uma celebração da tua memória, e uma forma de te agradecer pelo tanto que fizeste por todas nós, nosso humilde Requiem.   

* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora  Bestiario, 2022).

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.   

Edição: Katia Marko