Rio Grande do Sul

Coluna

'Independência ou morte'. Como a primeira ainda recria a segunda

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"Mesmo que se evite a generalização, parece que a história da revolução Farroupilha, orgulho de tanta gente gaúcha, também guarda um desfecho cruel"
"Mesmo que se evite a generalização, parece que a história da revolução Farroupilha, orgulho de tanta gente gaúcha, também guarda um desfecho cruel" - Fotos: Divulgação/Piquete Lanceiros Negros Contemporâneos
Massacre dos Porongos é o contrário da memória que os festejos de 20 de setembro trazem da revolução

Minha terra tem palmeiras onde sopra o vento forte, da fome com medo muito, principalmente da morte. (Caetano Veloso e Torquato Neto, lembrados por Marilena Chauí em “Brasil. Mito fundador da sociedade autoritária”)

A cada 7 de setembro, quando o Brasil inteiro celebra a sua “independência”, o Rio Grande do Sul acrescenta o dia 20 do mesmo mês, como outra data que, para grande parte do seu povo, merece recordação festiva, a “revolução farroupilha”. Como acontece com todo o dado histórico, as razões que motivaram um e outro desses acontecimentos podem divergir, conforme o interesse que inspira o seu intérprete para analisá-los em suas causas e efeitos. Assim se previne qualquer lembrança do passado autoproclamar-se como único testemunho confiável de um fato, uma hipótese frequentemente presente na mídia que sacrifica a verdade.

Aqui, interessa-nos interpretar esses dois fatos, sob uma das suas características que nos parece comuns por contrariarem versões mais aceitas que de ambos se fazem como dignos de orgulho e glória nacionais. Na Constituição brasileira de 1824, por exemplo, promulgada dois anos depois da Proclamação da Independência, não aparece a palavra escravo e só os negros “libertos” reconhecidos como cidadãos brasileiros; ficou implícita a condição do escravo como não cidadão, escondendo-se o fato de, na verdade, temer-se ofender a propriedade dos “donos” dessas pessoas. No art. 179, porém, quando arrolou direitos dos cidadãos brasileiros, ela proibiu “açoites, tortura, marca de ferro quente e outras penas cruéis”. Logo em seguida, no art. 60 do Código Criminal do Império do Brasil (1832), a possibilidade de aplicação dessas penas voltou, inclusive a capital, sob a “justificativa” de, não reconhecido o escravo como cidadão, podiam ser aplicadas. Somente 52 anos depois, essa impiedade cessou em 13 de maio de 1988, pela abolição da escravatura.

Mesmo assim, até hoje, aí se revela uma frequente ausência de efeito prático. O nosso Código Penal, em seu artigo 149, prevê uma pena de 2 a 8 anos para quem reduz outrem à “condição análoga à de escravo” e a Constituição brasileira vigente, em seu artigo 243, impõe até a destinação de terras para a reforma agrária ou programas de habitação popular, “de qualquer região do país”, onde houver “a exploração de trabalho escravo na forma da lei” {...} “sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.         

Desde 1995 até 2022, contudo, o país já soma cerca de 60 mil pessoas resgatadas do trabalho escravo, conforme lê-se no site da OIT, em 2 de maio deste ano, baseado em “dados atualizados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico o de Pessoas”. Para vergonha do Estado gaúcho, o site da Agência Câmara dos Deputados já noticiara, em 31 de março passado, um caso que teve ampla repercussão por aqui: “Entre os mais recentes, está o resgate de 207 pessoas em condições análogas à escravidão em alojamentos de empresas que prestavam serviços para vinícolas do Rio Grande do Sul”.

Mesmo que se evite a generalização, portanto, parece que a história da revolução Farroupilha, orgulho de tanta gente gaúcha, também guarda um desfecho cruel, no que se julga bons efeitos da “independência” que as suas lideranças atribuem até hoje, como a sua principal motivação libertária.

O famoso episódio de traição da promessa de alforria que a liderança farroupilha fez aos escravos negros que serviam as suas tropas, no que passou a história como “Massacre dos Porongos”, em 14 de novembro de 1844, no atual município de Pinheiro Machado, é um atestado tão ignóbil e contrário à lembrança que os festejos de 20 de setembro fazem da revolução, que até hoje tenta-se alterar a letra do hino do Estado, retirando-se do seu texto “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. É como se o martírio imposto aos “lanceiros negros”, que integravam a tropa farroupilha, desarmados para serem mortos pelos federais do Duque de Caxias (hoje, ainda, patrono do nosso Exército...) sirvam de exemplo para povos oprimidos libertarem-se, pois esse seria o preço da paz.

Com vasta prova documental, o livro do historiador e ex-deputado estadual Raul Carrion “Os lanceiros Negros na Revolução Farroupilha”, conclui-se com esta constatação fúnebre: “O combate de Porongos decorreu de um acerto entre Caxias e Canabarro, com o objetivo de: 1) Eliminar o maior número possível de lanceiros negros, minimizando o problema criado pela exigência dos líderes farroupilhas de libertação dos negros que lutavam no Exército Farrapo; 2) Causar uma derrota estratégica às forças republicanas, removendo as últimas resistências à deposição das armas e à concertação d paz. Impõe-se a reparação histórica dessa traição.”

O sacrifício imposto à justiça devida à escravidão negra, traída por esse fato, não levou a Assembleia Legislativa do Estado, recentemente, a modificar o hino riograndense racista e escravocrata. Salvo melhor juízo, isso caracteriza a sociedade brasileira como a qualifica Marilena Chauí, em “Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária” (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2.000, p. 95) sobre os efeitos que a modernização teve entre nós:

“O foco da política passa a ser as liberdades ou iniciativas individuais, promovendo, no lugar do antigo Estado do Bem-Estar, uma ‘sociedade do bem-estar’ cuja função é dupla: em primeiro lugar, excluir, sem danos aparentes, a ideia de um vínculo necessário entre justiça social e igualdade socioeconômica; em segundo lugar, e como consequência, desobrigar o Estado de lidar com o problema da exclusão de ricos e pobres, pois a exclusão de ambos desestabiliza os governos e a inclusão de ambos é impossível. Percebe-se, portanto, que a inclusão econômica e a inclusão política de toda a população são afastadas porque julgadas impossíveis para a ‘governabilidade’. O significado desse fatalismo econômico e político é óbvio: a igualdade econômica (ou a justiça social) e a liberdade política (ou a cidadania democrática) estão descartadas. O que poderia ser mais adequado a uma sociedade como a nossa? Como se vê, não há o que comemorar.”

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko