Rio Grande do Sul

MEMÓRIA

50 anos do golpe no Chile na casa de Diógenes Oliveira

No dia 11 de setembro, filhos de Diógenes abrem a casa onde o pai viveu por 36 anos como centro cultural

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Na segunda, dia 11 de setembro, às 19h, será exibido um depoimento inédito de Diógenes narrando sua participação no golpe do Chile ocorrido há 50 anos - Divulgação

O dia 11 de setembro marcou a história da humanidade. O golpe civil-militar no Chile, em 1973, punha fim ao sonho de um projeto político socialista implementado por vias democráticas. Salvador Allende, então presidente chileno, foi morto dentro do Palácio de La Moneda, bombardeado pelo exército liderado por Augusto Pinochet, sem seguir os conselhos de Fidel Castro para armar o povo chileno. Do lado de fora, milhares de refugiados políticos assistiam a mais um golpe, entre eles, Diógenes José Carvalho de Oliveira, adepto da luta armada. 

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Gaúcho, natural de Júlio de Castilhos, Diógenes nasceu em novembro de 1942. Iniciou sua militância na Legalidade, em Porto Alegre, onde liderava dois Grupos de Onze e ajudou na distribuição de armas expropriadas por Leonel Brizola da Taurus a partir do antigo edifício Mata Borrão, no centro da capital gaúcha. Em 1964, Diógenes era escriturário da CEEE, no prédio da antiga prefeitura. A partir do golpe, escapa por pouco da repressão, entra na clandestinidade, vai para o Uruguai reencontrar Brizola que o envia para Cuba, onde faz um intenso treinamento guerrilheiro na Sierra Maestra. Em um quartel de campanha, conhece Che Guevara. 

“A CIA estimou em no mínimo 150 e provavelmente bem mais de 200 os brasileiros instruídos na ilha - o número certeiro, nas décadas de 1960 e 1970, não se distancia dos 250. Che Guevara topou com dois deles, vinculados ao brizolismo. O gaúcho Diógenes Carvalho de Oliveira jogava xadrez em um quartel quando seu oponente e conterrâneo cutucou-o. Concentrado, não reparara na aproximação do argentino. Guevara parou, passou os olhos nas peças e não perdeu a piada: Se os brasileiros fizerem a guerra como jogam xadrez, estamos fodidos." (Marighella, Mario Magalhães)

De volta ao Brasil, Oliveira vai para São Paulo, onde é um dos fundadores da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O ano de 1968 foi explosivo no mundo e no Brasil, com o codinome de Luís, Diógenes participa fantasiado de soldado do assalto ao Hospital Geral do Cambuci, de onde são levados fuzis FAL e farta munição. A invasão da VPR ao hospital militar deixou o comando das Forças Armadas furioso e o comandante do 2° Exército, general Manoel Lisboa, desafia os comunistas a invadirem um quartel militar de verdade. Quatro dias depois, Diógenes salta de uma camionete veraneio em movimento lotada de explosivos que explode o quartel general do 2° exército. 

A organização começa a se dividir entre os que defendiam um trabalho mais teórico, de convencimento das massas, e os que defendiam o aprofundamento da luta armada. Como forma de evidenciar sua posição, Diógenes comanda o assalto a Casa de Armas Diana, a maior de São Paulo. Em meio a ação, desobedecendo a ordem dos guerrilheiros, o gerente estava telefonando para a polícia e, distante 100 metros do delator, Diógenes acerta um tiro na perna dele. 

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“O ano de 1968 se encerrou de maneira triunfal com a aquisição de vultuoso estoque de armas, retiradas à noite de 11 de dezembro da Loja Diana, em pleno centro de São Paulo. Realizado sob a chefia de Diógenes de Oliveira, o assalto não deixou rastros e desnorteou completamente os órgãos policias.”. (Combate nas Trevas, Jacob Gorender, página 146). 


Diógenes faleceu em outubro de 2022, três dias antes do dia em que Lula venceu Bolsonaro na eleição presidencial / Arquivo pessoal / Arquivo pessoal

A principal ação de Diógenes enquanto guerrilheiro urbano foi o justiçamento do capitão norte-americano Charles Chandler, veterano da guerra do Vietnã que, com o disfarce de estudante de sociologia, ensinava técnicas de tortura para os militares brasileiros em São Paulo. Descoberta a sua localização, VPR e ALN, as duas principais organizações de luta armada da época, formam o grupo de fogo com os mais destacados quadros de então: Diógenes José Carvalho de Oliveira, Pedro Lobo e Marco Antônio Braz de Carvalho. 

“Charles Chandler aparece no quintal para manobrar a perua Impala com a qual o governo norte-americano o presenteara. Aberto o portão, o carro começa a ganhar a rua de ré, mas é obstruído pelo Volkswagen que estaciona bem atrás. Travados os movimentos da perua, Diógenes José salta do fusca e descarrega seu Taurus 38 em direção ao capitão.” (Laque, João Roberto. Pedro e os Lobos. Página 210). 

Com este fato, passa a ser um dos homens mais procurados pela ditadura brasileira, assim como o capitão Carlos Lamarca que deserta do exército com uma kombi lotada de fuzis que passa para Oliveira esconder em um aparelho da organização enquanto Lamarca vai para o aeroporto se despedir da mulher e filhos que embarcam para Cuba. 

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Logo depois, em janeiro de 1969, Diógenes é preso. 

“Assim como muitos não resistiram às torturas e terminavam apontando companheiros das organizações guerrilheiras, muitos se tornaram famosos pelo silêncio, apesar dos sofrimentos nos porões da ditadura. Um deles foi Diógenes de Oliveira, um dos poucos que sabia como encontrar o líder guerrilheiro Carlos Lamarca. Apesar de intensas torturas, nunca revelou o paradeiro de Lamarca, tornando-se uma lenda no meio da esquerda brasileira.” (José Mitchell, Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar). 

Em 1970, é um dos cinco presos políticos trocados pelo cônsul japonês Nobuo Okuchi. Banido, Diógenes vira um apátrida. Em 1973, com o nome falso de um guatemalteco chamado Rafael Fernandez, desembarca no Chile, onde passa a fazer uma dupla militância. Além da VPR, pelo Partido Socialista Chileno passa a organizar a resistência em meio as tentativas da direita golpista de desestabilizar o país. Constitui um centro de treinamento ao pé da Cordilheira dos Andes e passa a organizar trabalhadores de uma fábrica de roupas para resistir com armas. No dia do golpe, planeja o bombardeamento do aeroporto de onde saiam os aviões fiat rumo ao Palácio de La Moneda. O partido se manifesta contrário a ação e, com o golpe, é implementado o toque de recolher. 

Militares do Brasil vão para o Chile reconhecer os guerrilheiros banidos que deveriam ser executados com os chilenos comunistas no Estádio Nacional. Após o abrandamento do toque de recolher, Diógenes vai visitar seu companheiro Pedro Chaves, que já havia sido levado para o Estádio Nacional. Oliveira, vulgo Rafa, arma um plano de fuga com seu vizinho e companheiro de partido Don Roberto Ribas. Em uma espécie de cortejo, Don Roberto vai em um carro na frente, Diógenes com sua então companheira Dulce Maia em outro veículo no meio e o filho de Don Roberto em outro carro atrás. Caso fossem parados em uma barreira policial, Diógenes e Dulce mudavam para o último carro dificultando a perseguição da repressão. 

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Apenas com uma chance, o grupo vai para a embaixada do México que estava fechada devido a hiperlotação de refugiados políticos. Já com a morte anunciada, o casal de guerrilheiros brasileiros avista uma possibilidade de sobreviver. O caminhão com pão para abastecer o contingente que ocupava a embaixada se aproxima, Diógenes e Dulce apenas se olham, saltam do carro apenas com a roupa do corpo, emparelham com o caminhão e entram juntos pelos portões da liberdade. Do lado de fora, os carabineiros atiram, mas as balas já não podem mais atingir Diógenes. 

Sua morte veio a ocorrer bem depois, em outubro de 2022, três dias antes do dia em que Lula venceu Bolsonaro na eleição presidencial. Na véspera do 2° turno, uma multidão em marcha pela Cidade Baixa na chamada “Caminhada da Vitória” para na esquina da casa de Diógenes, na rua Lopo Gonçalves com a José do Patrocínio, e lhe rende uma última homenagem. “Essa vitória também é do Diógenes, presente hoje e sempre”, ao que se segue um coro multitudinário. 


Na casa onde o velho guerrilheiro criou seus filhos e morou durante 36 anos, nasce agora um centro de memória / Arquivo pessoal

Pois bem, na casa onde o velho guerrilheiro criou seus filhos e morou durante 36 anos, nasce agora um centro de memória. Nessa residência, ex-guerrilheiros de diversas partes do Brasil passaram, ficaram hospedados, discutiram conjuntura e se rearticularam para lutar por memória, verdade e justiça. Nela, foram gravadas entrevistas, como para o livro Marighella de Mário Magalhães e documentários como “Em busca de Anselmo”, da HBO.

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Na próxima segunda, dia 11 de setembro, a partir das 19h, será exibido um depoimento seu inédito narrando sua participação no golpe do Chile ocorrido há 50 anos, com a presença de seu filho Guilherme de Oliveira. 

O evento contará com a presença de outros militantes políticos que lutaram contra a ditadura e apresentação do cantautor Ciro Ferreira que apresentará um repertório de músicas revolucionárias, como as de Victor Jara. A atividade marca a abertura da casa como centro cultural, contrariando o processo de gentrificação que vive Porto Alegre. Os filhos de Diógenes, Rodrigo e Guilherme decidiram não vender o espaço, com o intuito de manter viva a memória e as relações de afeto que envolvem a casa de um dos maiores nomes da história da luta armada latino-americana.

* Jornalista e filho de Diógenes Oliveira

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko