Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

‘A preocupação do Papa é reabilitar a relação da Igreja com os oprimidos’, afirma Ana Inés Latorre

Vice-presidenta do novo comitê do Vaticano, a juíza brasileira conta da visão social do chefe da Igreja

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A juíza brasileira Ana Inés Algorta Latorre (sentada à esquerda) foi designada pelo Papa Francisco para a vice-presidência do novo Comitê Pan-Americano de Juízas e Juízes para os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana - Arquivo pessoal

Neste mês, a juíza brasileira Ana Inés Algorta Latorre foi designada pelo Papa Francisco para a vice-presidência do novo Comitê Pan-Americano de Juízas e Juízes para os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana. É uma pessoa jurídica de direito internacional e congrega magistrados envolvidos com questões de justiça social.

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Embora proposto pelo Vaticano, o comitê não exige que seus integrantes sejam necessariamente católicos. Mas devem estar afinados com os valores do comitê, ou seja, o trabalho em prol do acesso à justiça e da atenção às questões econômicas, sociais, culturais e ambientais alinhadas com a doutrina do Papa Francisco. Não trata apenas de religião e sim de temas muito mais abrangentes que podem ser abraçados, como ela observa, “por quem seja de outras religiões ou, até mesmo, de nenhuma”. Acompanhe:

Brasil de Fato RS – Neste mês, você foi designada pelo Papa Francisco para assumir a vice-presidência do novo Comitê Pan- Americano de Juízas e Juízes para os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana. Como ela se tornou uma entidade jurídica de fato?

Ana Inés – Um grupo de juízes argentinos teve essa iniciativa em 2017. Houve, então, um encontro no âmbito só da Argentina e ali já teve a participação do Papa Francisco. A partir desse encontro, o Papa chamou uma reunião de juízes das três Américas no Vaticano em junho de 2019. Fui nesse encontro como parte da delegação brasileira. No final, anunciaram que o Papa havia designado sete juízes e juízas para integrarem a junta promotora do comitê. Pensei: que trabalho bonito, gostaria muito que o meu nome fosse um dos sete. Acabei de pensar nisso e me chamaram... Fiquei como a pessoa do Brasil que integra a junta promotora.

Somos, de certa forma, integrantes da organização do Vaticano

Trabalhamos como um grupo de voluntários, sem personalidade jurídica. Promovemos debates, eventos e lançamos documentos sobre questões que afetaram os direitos humanos em vários países latino-americanos de lá para cá. E mais de um documento referente a situações do Brasil.

Em 2023, conversando com o Papa Francisco, acabou surgindo da parte dele essa forma que ele nos atribuiu, que é de uma pessoa jurídica de direito canônico, internacional, de caráter privado, uma associação de fiéis. Fui designada como vice-presidenta. E a gente, na verdade, vai ter que se inteirar sobre o que isso implica.


Papa Francisco criou o comitê como uma pessoa jurídica de direito canônico / Reprodução Vaticano

Já temos o nosso estatuto que foi, digamos assim, recepcionado pelo quirógrafo (tipo de diploma) papel. A partir de agora, somos, de certa forma, integrantes da organização do Vaticano. Temos personalidade jurídica, mas muitos reflexos práticos vamos perceber agora como se dão. Por exemplo, o Andres, que é o nosso presidente, estava averiguando como se faz para abrir uma conta bancária em nome dessa pessoa jurídica. E assim vamos.

A aproximação se deu muito mais devido à visão que o Papa tem sobre justiça social

Eu me vi, pela primeira vez na vida, estudando direito canônico... É curioso, porque o comitê não necessariamente é integrado por juízes de religião católica. Eu, por exemplo, tenho origens no catolicismo porque minha família é católica. Mas procurei outras vertentes, outras escolas, ao longo da minha vida, e a aproximação se deu muito mais em razão da visão que o Papa tem sobre justiça social, sobre as questões sociais, econômicas, ambientais, as preocupações com esse momento que vive o planeta Terra e a humanidade, muito mais do que em razão da fé católica.

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Na verdade, em momento algum foi questionado se éramos católicos ou não. De alguma forma, a nossa organização se alinha, ainda que as pessoas não necessariamente sejam católicas, com os valores do comitê, que é justamente o trabalho em prol do acesso à justiça, das questões econômicas, sociais, culturais, ambientais, alinhadas com a doutrina do Papa Francisco. Ele fala não só de religião. Fala de questões muito mais amplas e isso pode ser abraçado por quem seja de outras religiões ou, até mesmo, de nenhuma.

A preocupação é de reabilitar a relação da Igreja com os povos originários

BdF RS – É um rompimento de paradigmas.

Ana Inés – Com certeza, e (demonstra isso) até mesmo o fato do Papa ter nomeado o instituto a ser criado juntamente com o comitê, que vai funcionar como uma parte da Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano. O instituto se chama Frei Bartolomeu de Las Casas. O Las Casas foi um frei que teve uma atuação muito forte em prol dos povos indígenas.

De certa forma, a preocupação do Papa Francisco é de reabilitar a relação da Igreja Católica com os povos originários, com os povos escravizados, e se aproximar efetivamente desses que vêm sendo oprimidos. E reconhecendo também que, por momentos na história, a Igreja teve um papel que seria sujeito a críticas. Ele fez esse pedido de perdão também por essas questões históricas.

Sabemos que existem movimentos na Igreja em outro sentido, mais conservador

BdF RS – Mas essa visão do Papa Francisco está em disputa mesmo dentro da Igreja Católica...

Ana Inés – Claro. Mas a Igreja Católica é uma instituição que tem uma verticalidade então não tem como se questionar oficialmente a posição do Papa. Sabemos que existem movimentos dentro da Igreja em outro sentido, mais conservador. Esta disputa precede a figura do Papa Francisco, tanto que tivemos questões envolvendo a Teologia da Libertação e muitas outras.

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Acho que todas as instituições hoje em dia estão em disputa. As próprias instituições que integramos no nosso trabalho, nos nossos países, também estão em disputa com várias visões de mundo tentando prevalecer. No caso, é a visão que o Papa abraça ao se preocupar com os mais vulnerabilizados e com a busca de justiça social. Neste sentido, achamos importante desde o início apoiar essa visão.

O capítulo brasileiro escolheu a Amazônia como foco de atuação

BdF RS – Serás a única juíza brasileira a compor a diretoria desse novo comitê. Estás como vice-presidenta. O presidente, Roberto Gallardo, é da Argentina. O secretário Gustavo Moreno também é da Argentina. Tem juízas da Colômbia e do Peru, e um juiz do Chile, além de uma juíza dos Estados Unidos porque o comitê é pan-americano. Como atuar com toda essa diversidade?

Ana Inés – É muito interessante porque neste grupo temos perfis e posições muito diferentes dentro do sistema de justiça dos nossos países. O trabalho com esse pequeno grupo tem sido riquíssimo. Recebemos, cada um, como missão, trabalhar um capítulo, que seria uma filial, um capítulo nacional de cada um dos nossos países. Hoje, somos a junta diretiva.


"Pensei: que trabalho bonito, gostaria muito que o meu nome fosse um dos sete. Acabei de pensar nisso e me chamaram" / Arquivo pessoal

No Brasil, por exemplo, temos um capítulo integrado por vários colegas de vários ramos do poder Judiciário. E estamos abrindo a participação para pessoas que não são necessariamente do Judiciário, mas de outras áreas do Direito. Nossa coordenadora do capítulo é a Ananda Tostes, uma juíza do trabalho do Distrito Federal. E temos colegas do Brasil todo já integrados nesse capítulo brasileiro que escolheu a Amazônia como foco de atuação em razão das vulnerabilidades, da sua relevância não só para o Brasil, mas para o mundo, em razão da floresta e dela se encontrar ameaçada, dos povos originários, das crianças, da questão trabalhista. Lançamos o capítulo durante a pandemia com a presença dos agora ministros Sílvio Almeida e Sonia Guajajara, além do ministro Herman Benjamin, do STJ, e do reitor da Unisinos.

BdF RS – Na prática, qual será o efeito na vida das pessoas? Como os movimentos sociais podem contar com o trabalho do comitê na defesa das suas pautas?

Ana Inés – Temos uma preocupação de formação e o Instituto Bartolomeu de Las Casas vem para suprir essa necessidade. Vamos formar pessoas que vão atuar no sistema de justiça, que vão ter uma visão mais ampla para poder questionar as relações de poder e do colonialismo, do racismo, as várias opressões. A gente percebe que a formação do operador de justiça é muito restrita nesse aspecto.

Na nossa atuação procuramos nos aproximar dos movimentos sociais

Há uma necessidade muito grande de que as pessoas que ocupam esses espaços possam ter uma visão crítica, que leve em conta esses fatores todos. Na nossa atuação procuramos nos aproximar dos movimentos sociais. Podemos eventualmente promover debates e receber demandas.

BdF RS – De alguma forma, o trabalho do comitê vem alinhado com a proposta da economia de Francisco e Clara? (*)

Ana Inés – Com certeza, porque a atuação do Papa tem procurado atingir diferentes setores. Ele propõe uma economia que faça uma escolha por terra, teto e trabalho para todos. É nesse sentido que também a gente se integra como comitê, ao esforço por uma sociedade mais justa. Nós mais do ponto de vista do sistema de justiça e o pessoal da economia mais do ponto de justiça da construção das relações econômicas. Mas o objetivo é o mesmo.

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BdF RS – Vão ser cinco anos de trabalho à frente do comitê já que essa diretoria ficará até 2028. Existe algum planejamento, alguma programação para esse ano no Brasil?

Ana Inés – Para o Brasil ainda não temos. Mas haverá eventos neste ano no México e alguns eventos online de caráter internacional. O capítulo brasileiro está ativo e cheio de ideias.


O trabalho do comitê é em prol do acesso à justiça e da atenção às questões econômicas, sociais, culturais e ambientais alinhadas com a doutrina do Papa Francisco / Arquivo pessoal

BdF RS – Quem quiser buscar mais informações sobre o comitê e seu trabalho pode fazer contato de que maneira?

Ana Inés – Temos o nosso site, tanto do comitê internacional quanto do brasileiro, que é copaju.org, e o capítulo brasileiro tem outra página que é https://copajubrasil.org. Ali é possível acessar os nossos documentos todos, o histórico, o convite do Papa, todo o material está nesses dois links.

BdF RS – Mais alguma informação?

Ana Inés – Queria acrescentar que, mais recentemente, foram formados os capítulos Paraguai e México. O pessoal desses dois capítulos vai trabalhar em prol da expansão para que outros países das Américas possam ter os seus capítulos funcionando também.

BdF RS – Interessante esse nome “capítulos”. Vem da Bíblia?

Ana Inés – Não sei qual a origem, mas acho que vem das estruturas do Vaticano.

(*) Proposta pelo Papa Francisco, a Economia de Francisco e Clara baseia-se no amor, na solidariedade e na justiça social, defendendo uma escuta das necessidades da sociedade, sobretudo dos excluídos, ao invés do capital.


Edição: Ayrton Centeno