Rio Grande do Sul

Coluna

Setembro verde e amarelo

Imagem de perfil do Colunistaesd
"No dia 28 de setembro, aguardamos Rosa Weber se manifestar sobre a ADPF 442, que trata sobre a descriminalização do aborto no primeiro trimestre de gestação e que tramita desde 2017" - Foto: mariam pessah
Para viver, nos tem sido exigida uma resistência ancestral e uma grande capacidade de diálogo

Setembro tem se apresentado como um mês difícil de ser atravessado: o corpo que escreve estas palavras, por exemplo, tem passado as noites em estado de alerta com o som das fortes chuvas que denunciam, em linguagem da natureza, quão forte é o preço a se pagar pela insensatez humana.

Melhor dizendo: insensatez das oligarquias que insistem em tomar nossos territórios, corpos e destinos como bens, matéria-prima ou propriedade, tão ao gosto do patriarcado capitalista. Parece que para os homens brancos, de colarinho ou toga, nós não somos humanidade, assim como a natureza, para eles, não é um corpo coletivo vivo, multiespecífico e reagente. É a nossa grande ferida colonial.

Todos os anos, entra o mês e explodem as campanhas sobre prevenção ao suicídio, o tal Setembro Amarelo, no entanto, pouco realmente se fala sobre como tal prevenção, efetivamente, pode se realizar através da justiça social. Falar sobre suicídio sem fazer a escuta de quem sobreviveu a isso, ou sem politizar tal discussão parece, inclusive, surtir o efeito inverso: setembro é um mês de gatilhos.

Há diferenças marcantes entre as vidas suicidadas, e seria justo falar sobre essas mortes com coragem e honestidade: dentre perfis racializados, jovens indígenas e negros estão como o grupo com maior percentual; o suicídio é a principal causa de morte entre meninas e adolescentes; pessoas trans e homossexuais sofrem com ideação suicida de maneira muito mais intensa do que pessoas cisgênero e heterossexuais; mulheres tentam o suicídio mais vezes do que homens, como meio de escapar da violência que sofrem; homens, antes de se suicidar, não raro matam os filhos, companheiras ou ex, homicídios seguidos de suicídio.

Falar sobre prevenção do suicídio implicaria, portanto, em falar sobre temas explícitos e também invisibilizados, e fazer a correlação entre suicídio e racismo, machismo, homofobia e transfobia, suicídio e aborto, suicídio e o direito dos povos originários, suicídio e catástrofes climáticas. Suicidamo-nos por não suportar os fascismos e microfascismos cotidianos, por não ver saída. Será que a Suprema Corte pensa sobre isso, ou o manto da branquitude oligárquica abafa todas essas questões?

Acompanhar o julgamento do marco temporal, por exemplo, para além da espera tem sido uma verdadeira tortura. A estratégia de adiamento do tema, em que pese os esforços para a sustentação dos acampamentos e alguma visibilidade possível, vai adquirindo contornos outros: a diluição da pauta junto aos canais midiáticos, a desmoralização de um grupo de pessoas que dão o corpo diante do tribunal para a questão da preservação do que ainda resta de cultura e floresta amalgamados. De modo geral, a sociedade brasileira está ainda bastante alienada da importância desse tema, assim como a anistia nos alienou da resposta institucional cabível aos crimes cometidos pelo Estado contra a população durante os anos de ditadura militar.

Não é mera coincidência, sabemos, mas continuidade histórica, assim como a destruição completa de cidades gaúchas sob as chuvas torrenciais estão intimamente relacionadas com as queimadas de milhares de hectares de floresta tropical acentuadas durante o governo Bolsonaro, explodindo os rios áereos. Como experimentamos no passado, os argumentos sobre o reconhecimento das terras indígenas brasileiras giram em torno da reparação econômica daqueles que grilaram as terras estatais e que compõem os grupos econômicos ligados ao agronegócio. A reparação das comunidades afrodescendentes não tem recebido a mesma importância…

No dia 28 de setembro, por sua vez, aguardamos Rosa Weber se manifestar sobre a ADPF 442 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que trata sobre a descriminalização do aborto no primeiro trimestre de gestação e que tramita desde 2017. O parecer consistirá no último ato da magistrada, antes de sua aposentadoria compulsória em 2 de outubro, abrindo os trabalhos para o julgamento do documento que pede alterações na maneira como o poder Judiciário aplica o código penal de 1940, onde as penalidades para quem pratica o aborto estão previstas. Como temos acompanhado através de reportagens que inclusive tem sido retiradas de circulação, o Judiciário brasileiro tem feito uso bastante perverso do seu poder, instituindo decisões que nos dizem que o Estatuto do Nascituro já vigora, mesmo sem ser lei.

Assim como os territórios originários e as comunidades tradicionais, corpos com possibilidade gestante são negociados à medida que o aborto em si pode vir a deixar de ser moeda de barganha política. Sabemos que a resposta conservadora será violenta, independente do parecer do Supremo Tribunal Federal. No entanto, para os movimentos sociais ficam questões para serem amadurecidas: discutirmos mais e profundamente a interseccionalidade e os feminismos, e a necessidade de uma pedagogia que vá na direção da criação de consciência histórica, de gênero e racial. Setembro parece interminável.

Nessa encruzilhada estão os nossos corpos, as nossas vidas. Para vivê-las, nos tem sido exigida uma resistência ancestral, mobilizada e ancorada na capacidade de transmissão intergeracional e a necessidade de diálogo com questões contemporâneas que estão para além da maneira como o Estado suicidário organiza suas políticas de morte.

* Lara Werner é sanitarista com formação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e integra o programa Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade.

** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko